sábado, 19 de fevereiro de 2011

Graecum est non legitur

«Não sei a origem da frase portuguesa que corre mundo e está sempre presente numa situação encrencada. «Vi-me grego» para sair da enrascada em que estava metido. «Vi-me grego» é uma frase sublime de interpretação pois presta-se a invocações laicas do mais requintado agnosticismo. É possível que se duvide da minha interpretação, mas é preciso vir à Grécia para uma pessoa se ver grega, no sentido da maravilha, no gosto da coisa criada para admirar. «Vi-me grego» para responder, quer dizer, puxei de todos os meus recursos de inteligência a fim de conseguir argumentar um caso desesperado. É assim que eu entendo. A maior sublimação de um homem cá das bandas atlânticas é ver-se grego, saber bem o que perpetua um tipo de aflição em que se tem de deitar unhas a todos os argumentos, a todos os factos. «Vi-me grego» para perceber os gregos – fiz o possível quanto em mim existia de racional na comunicabilidade, mas mesmo assim o meu mundo ficou dentro de portas a ouvir o feitiço fértil da imaginação. Uma pessoa ver-se grega é parar o que a antiga musa canta, destilar do alambique o cordel invisível e enfrentar com a coragem de Sócrates a encruzilhada que parou diante das circunstâncias, semelhante à imensa mó de pedra que dentro do moinho estaca por falta de vento. É um mundo em que não há analogias e uma total falência de fuga. Um ser a contas consigo próprio, limpo, ermitão, anacoreta, cenobita, monge, destilado das entranhas, fértil, de suores frios, pingue. É ao mesmo tempo um momento perplexo, de êxtase, manoplas sofredoras, gritos de silêncio. Vejo-me grego ao meu olhar de novo para os Kouroi. Apanho-me em flagrante delito, sem fôlego para me entreter, repleto de felicidade que só depois compreendo ser felicidade, deifico estes transeuntes imobilizados definitivamente e vejo-me grego porque não consigo ser grego. (…) O ver-me grego é uma espécie de imensa parede branca que vejo cá dentro da cachimónia e onde tenho de grafitar uma solução, um caminho, colocar setas para ir de passeio para outra parede branca. Quanto mais me vejo grego na vida, mais consciência tenho de estar vivo, uma alegria de sentir que imortalizo com o meu próprio adubo. De forma que possuir este privilégio espantoso de me ver grego diante de uma verdade criada pelo Grego, ali em frente, palpável, de deslumbre à vista, é uma sensação harmoniosa, onde me sinto ligeiramente embalado no berço dos meus sentires, com um equilíbrio entre as razões do coração e as razões da razão. São momentos definitivos, descarados da força com que se introduzem para averiguar o bizarro de um bípede como eu à la recherche du temps perdu. (…)»


Ruben A., Um Adeus aos Deuses

Assírio & Alvim,Lisboa:2010

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