Mostrar mensagens com a etiqueta roberto calasso. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta roberto calasso. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Sobre a Ideia de Progresso









Toda a ideia de progresso é contrariada pela existência da Ilíada. A perfeição do primeiro excerto torna ridícula a pretensão de ascensão progressiva. Mas a Ilíada é, ao mesmo tempo, uma acção provocatória em relação às formas, desafia-as e envolve-as num leque que deve ainda abrir-se. E isso precisamente graças à nitidez imperiosa com que do seu interior é excluído, e quase expulso, o que depois, durante séculos, se articularia na palavra. Aquele início perfeito evoca obstáculos ausentes, Mallarmé.

Roberto Calasso, As Núpcias de Cadmo e Harmonia, pg. 108 
Cotovia, Lisboa: 1990. (trad.: Maria Jorge Vilar de Figueiredo).

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Catena Aurea

Hércules olhando a estátua do Pai
Experimentai, pois, ó deuses, para que todos saibais!
Do céu pendurai uma corrente feita de ouro
e agarrai nela, ó deuses todos e deuses todas!
Mas não arrastaríeis do céu para a planície terrena
Zeus, o sublime conselheiro, ainda que vos esforçásseis.
Porém no momento em que eu quisesse puxá-la,
arrastaria a própria terra e o próprio mar;
e de seguida ataria a corrente à volta do cume do Olimpo,
e todas as coisas ficariam suspensas no espaço:
em tal medida sou superior aos deuses e aos homens.

[εἰ δ᾽ ἄγε πειρήσασθε θεοὶ ἵνα εἴδετε πάντες: 
σειρὴν χρυσείην ἐξ οὐρανόθεν κρεμάσαντες 
πάντές τ᾽ ἐξάπτεσθε θεοὶ πᾶσαί τε θέαιναι: 
ἀλλ᾽ οὐκ ἂν ἐρύσαιτ᾽ ἐξ οὐρανόθεν πεδίον δὲ 
Ζῆν᾽ ὕπατον μήστωρ᾽, οὐδ᾽ εἰ μάλα πολλὰ κάμοιτε. 
ἀλλ᾽ ὅτε δὴ καὶ ἐγὼ πρόφρων ἐθέλοιμι ἐρύσσαι, 
αὐτῇ κεν γαίῃ ἐρύσαιμ᾽ αὐτῇ τε θαλάσσῃ: 
σειρὴν μέν κεν ἔπειτα περὶ ῥίον Οὐλύμποιο 
δησαίμην, τὰ δέ κ᾽ αὖτε μετήορα πάντα γένοιτο. 
τόσσον ἐγὼ περί τ᾽ εἰμὶ θεῶν περί τ᾽ εἴμ᾽ ἀνθρώπων.] 

Ilíada 8.18-27
Cotovia, Lisboa: 2005. (trad.: Frederico Lourenço)
*
Parece à primeira vista incrível, mas é a verdade: são sempre quatro ou cinco os que estão no segredo do tirano, são esses quatro ou cinco que sujeitam o povo à servidão. [...] Tal é a influência destes poucos sobre o caudilho que o povo tem de sofrer não só a maldade deste como também a deles. Essa meia dúzia tem ao seu serviço mais seiscentos que procedem com eles como eles procedem com o tirano. Abaixo destes seiscentos há seis mil devidamente ensinados a quem confiam ora o governo das províncias ora a administração dos dinheiros... [...]. E abaixo de todos estes vêm outros. Quem queira desenredar esta complexa meada descobrirá abaixo dos tais seis mil mais cem mim e milhões agarrados à corda do tirano; tal como em Homero Júpiter se gloria de que, puxando a corda, todos os deuses virão atrás.

[On ne le croira pas du premier coup, mais certes il est vrai: ce sont toujours quatre ou cinq qui maintiennent le tyran, quatre ou cinq qui tiennent tout le pays en servage. [...] Ces six adressent si bien leur chef, qu’il faut, pour la société, qu’il soit méchant, non pas seulement par ses méchancetés, mais encore des leurs. Ces six ont six cents qui profitent sous eux, et font de leurs six cents ce que les six font au tyran. Ces six cents en tiennent sous eux six mille, qu’ils ont élevé en état, auxquels ils font donner ou le gouvernement des provinces, ou le maniement des deniers,... [...]. Grande est la suite qui vient après cela, et qui voudra s’amuser à dévider ce filet, il verra que, non pas les six mille, mais les cent mille, mais les millions, par cette corde, se tiennent au tyran, s’aident d’icelle comme, en Homère, Jupiter qui se vante, s’il tire la chaîne, d’emmener vers soi tous les dieux.]

La Boétie, Discurso Sobre a Servidão Voluntária, pg. 50-51
Antígona, Lisboa: 1997. (trad.: Manuel João Gomes)
*
Subindo a escada em caracol no interior do templo, podia chegar-se às galerias superiores e daí observar de perto o Zeus de Fídias. Segundo Quintiliano, essa obra «acrescentara algo à religião dos homens». O ouro e o marfim alternavam apenas com pedras preciosas, excepto no trono onde também aparecia o ébano. Zeus estava cingido por uma coroa de oliveira e tinha na mão direita uma Nike com uma fita e uma coroa. Na base do trono havia outras pequenas Nike, como elfos dançantes. E também se viam Esfinges aladas arrebatando nas suas garras donzelas tebanas, e Apolo e Artemusa, trespassando, mais uma vez, os filhos de Níobe. E os olhos, habituando-se à escuridão animada, vislumbravam sempre novas cenas, esculpidas nas traves do trono. Quanto mais para baixo se olhava, mais se multiplicavam as figuras. Só na base do trono havia vinte e nove, as Amazonas, Héracles com as suas tropas e Teseu. Um rapaz ajusta uma fita na fronte: será Pantarques, o jovem amante de Fídias? Vedações pintadas, onde se vêem de novo Teseu e Héracles, depois Pirito, Ájax, Cassandra, Hipodamia, Estérope, Prometeu, Pentesileia, Aquiles e duas Hespérides, impedem o acesso ao trono. Na parte superior, surgem novos seres: três Cáritas e três Horas. Depois, o olhar volta a inclinar-se para o escabelo, fixando-se no pé de Zeus, e até aí encontra figuras: Teseu, mais uma vez, e de novo as Amazonas e leões de ouro. Continuando a descer com os olhos até à plataforma que sustenta o enorme Zeus e os seus parasitas, outras cenas se distinguem: Hélios subindo para o seu carro, Hermes avançando, seguido por Héstia, Eros recebendo Afrodite saindo das águas e sendo coroada por Peito. Não faltam Apolo e Artemisa, Atena e Héracles, Anfitrite e Posídon, e Selene, sobre um cavalo. Zeus, gigante sentado e incrustado de criaturas, reflectia-se num pavimento de pedra negra e brilhante, onde o óleo para a manutenção do marfim escorria em abundância. 

[...] Os modernos mostraram-se receosos e perplexos perante as descrições. Demasiadas cores, demasiado fausto oriental, a suspeita de uma certa falta de gosto. Terá Fídias, na sua obra mais ambiciosa, perdido todas as qualidades que se admiram nos frisos do Parténon? O erro dos modernos é considerarem o Zeus de Fídias uma estátua, como o Hermes de Praxíteles. O Zeus de Fídias, porém, era outra coisa. Encerrado e fulgurante na cela do templo, talvez se assemelhasse mais a um dólmen, a um abadir, a uma pedra caída do céu, a que se tivessem agarrado, para viver, os outros deuses e heróis. Sobre o ouro e marfim pululava o movimento de um formigueiro. Zeus não susbstiria senão como suporte de animais e de lírios, de arcos e panejamentos, de velhas cenas eternamente repetidas. Mas Zeus não era apenas aquele guardião imóvel sentado no trono: Zeus era todas aquelas cenas, todos aqueles gestos, confusos e emaranhados, que lhe eriçavam o corpo e o trono com arrepios minúculos. Fídias demonstrara, sem querer, que Zeus não pode viver sozinho: mostrara, sem querer, a essência do politeísmo. 

Roberto Calasso, As Núpcias de Cadmo e Harmonia, pg. 169-171 
Cotovia, Lisboa: 1990. (trad.: Maria Jorge Vilar de Figueiredo)

domingo, 23 de dezembro de 2012

Do Valor do Original

...μούνην γὰρ κραδίην νοερὴν λίπον...
...deixaram apenas o «coração pensante»*...
Fragmentos Órficos 210a Kern
*usamos a tradução de Calasso, em As Núpcias... [p. 295],
 que foi quem nos deu a descobrir o fragmento.

διαβούλιον καὶ γλῶσσαν καὶ ὀϕϑαλμούς,
ὦτα καὶ καρδίαν ἔδωκεν διανοεῖσϑαι αὐτοῖς.
[Deus] Dotou-os de inteligência, língua e olhos,
de ouvidos e dum coração para pensar.
Sir 17, 6, retirado da Nova Bíblia dos Capuchinhos
Difusora Bíblica, Lisboa/Fátima: 1998. (trad.: Arlindo Gomes Furtado)

Só ao fazer este post me apercebi da (parcial) falsidade da ligação que pensava existir entre os dois textos, que li com poucos dias de diferença, primeiro o último. A expressão «um coração para pensar» obrigou-me, na altura, a parar, parecendo resumir em si todo um programa para uma filosofia nova e sobretudo necessária, que leve a sério o desejo, a relação & os afectos. Pouco me importava que a nota esclarecesse que, para os hebreus, o coração era a sede do pensamento e que, portanto, a frase nada tinha de extraordinário: o que me interessava era o paradoxo que o tempo ali operara, e a sua potência. Ao ver agora o texto grego, percebo que entendi mal o texto: o «para pensar» refere-se não exclusivamente ao coração mas a todos os órgãos antes listados, como deixa claro a tradução do King James: «Counsel, and a tongue, and eyes, ears, and a heart, gave he them to understand». E eu que entretanto até já publicitara a expressão «um coração para pensar» junto de um amiga. Valham-nos pois os gregos e Proclo, que nos salvou, como Atena o de Zagreu (a quem se refere o fragmento), esse «coração pensante», para alimentar a contemplação & a luz.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Tέλος

A certa altura da sua história, quando todos os palácios tinham sido incendiados e já não se via o ouro, a certa altura da sua história de que bem pouco sabemos, porque não nos foram deixados nem palavras nem monumentos, os Gregos optaram pela perfeição em detrimento do poder. O poder sonha com uma expansão indefinida, a perfeição não pode sonhar. O perfeito é apenas um entre os inúmeros pontos do processo que transforma constantemente a existência. Mas este ponto tem um defeito oculto, que aterroriza os Gregos: o ponto perfeito é aquele que conclui, que mata. 

Roberto Calasso, As Núpcias de Cadmo e Harmonia, pg. 238
Cotovia, Lisboa: 1990. (trad.: Maria Jorge Vilar de Figueiredo).

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A troca de uma letra

Quando os Gregos tinham de apelar para uma autoridade última, não citavam textos sagrados, mas Homero. A Grécia baseava-se na Ilíada. E a Ilíada baseava-se num jogo de palavras, na troca de uma letra. Briseida, Criseida. O objecto da disputa que está na origem do poema é Briseida Kallipareos, «das belas faces». Só uma letra separa as duas donzelas. E não é «por causa das donzelas», repete infantilmente Aquiles, que se origina a disputa, mas por causa da substituição, como se o herói pressagiasse que naquele acto se apertava o nó que nenhum herói, nem ninguém das gerações que se seguiram aos heróis, desataria.

Roberto Calasso, As Núpcias de Cadmo e Harmonia, Maria Jorge Vilar de Figueiredo (trad.), Livros Cotovia, 1990.