sábado, 28 de maio de 2016

Tradutores confusos: Horácio e a palavra "Latino"


Algumas semanas atrás traduzi para esta página um poema do Horácio. Nele lemos o poeta a pedir à lira ("barbitus"), o receptor do poema, que cantasse um poema «dic Latinum, / barbite, carmen!» A minha tradução poderá ter soado estranha a qualquer pessoa por desconhecente que seja da língua latina. Pois nela lê-se, «Venha daí, / Lira minha, um composto poema». Uma comparação visual bastaria para suspeitar de algo estranho: onde está o "Latinum" na minha tradução, visivelmente identificável com "Latino"? A minha escolha angustiou-me durante estas semanas desde então decorridas, e várias vezes pensei em escrever um texto que a explicasse. Este é esse texto.

É com efeito verdade que uma tradução literal dos versos acima citados leria algo como "canta, minha lira, um poema Latino." E uma tal opção não seria de forma alguma desprovida de mérito. Ocorre perguntar o que dizemos quando em Latim enunciamos a palavra "Latinum".

A resposta instantânea está correcta: Latino refere-nos ao Lácio, portanto a Roma; numa segunda instância refere-nos para a língua nele falada, a língua romana, e para tudo o que tenha que ver com a República Romana. O sentido da expressão, porém, vai além deste sentido imediato.

Numa passagem famosa da sua Educação do Orador, Quintiliano cita a seguinte passagem:

mihi non invenuste dici videtur aliud esse Latine, aliud grammatice loqui. Ac de analogia nimium.
Não me parece desapropriado dizer que uma coisa é falar Latim, outra é falar Gramática.

Institutio Oratoria. I.6.27

Esta passagem tem de si uma vasta Nachleben, pois a sua compreensão parcial ou mesmo falsa deu no Renascimento bastantes frutos, nomeadamente nos debates em torno do estilo a ser escolhido no uso da língua latina. Nesse Renascimento, estava em causa o processo de purificação e purgação da língua latina de solecismos e barbarismos, e a posição de que não basta juntar palavras pseudo-latinas, numa sequência indiferente de casos, para se estar a falar gramaticalmente. Ou seja, não bastaria falar latim, era preciso falar [latim] gramaticalmente.

Não é, porém, isso que Quintiliano está a dizer, de forma alguma. Todo o capítulo 6, no qual a frase acima citada se insere, serve para fundamentar a afirmação de que «Sermo constat ratione vetustate auctoritate consuetudine.», ou seja, «O discurso consta de racionalidade, antiguidade, autoridade, e hábito.», e a justificação dessa afirmação passa pela demolição de que a língua devesse ser racional, ou seja, devesse obedecer a regras firmes e pré-estabelecidas. Para se opor a tal decisão Quintiliano cita exemplo atrás de exemplo de palavras que se recusam a inserir-se no padrão racional da língua, aquilo a que hoje em dia chamamos simplesmente excepções. Quintiliano porém insere a existência de excepções num plano maior e mais grandioso de vindicação da tradição a que hoje em dia chamaríamos, na senda de Burke, a democracia dos vivos, dos mortos, e daqueles por nascer. Não é um obstruccionista, não nega o papel da racionalidade nem do uso contemporâneo; mas tempera-os. 

Esta posição insere-se num debate certamente ainda vivo na época de Quintiliano em torno precisamente do tema da racionalidade linguística. Júlio César participou ele mesmo no debate com um tratado "Sobre a Analogia" (ver passagem de Quintiliano acima), em que, embora exortasse «tanquam scopulum sic fugias inauditum atque insolens verbum» (fr. 3 lib. I), "foge sempre das palavras inauditas ou sem tradição como fugirias dos escolhos", acaba de forma ligeiramente contraditória por perscrever o uso de várias "novidades" linguísticas, como sejam o uso da letra em imitação do digamma Grego pré-Clássico (Ϝ) para significar o V v /v/ (que, como é sabido, na grafia do latim clássico se grafava de forma idêntica a u), a decisão de escrever palavras como "maximum" em vez de "maxumum", "lacrima" em vez de "lacruma" (decisão essa que, segundo Cassiodoro, "propter tanti viri auctoritatem", ou seja "devido ao prestígio de um tão grande homem" acabou por fazer com que fosse a forma por 'i' a vingar, afirmação face à qual temos o direito de manter um saudável cepticismo), e finalmente dever-se-ia também ao mesmo Júlio César (segundo Prisciano) a introdução do famoso ens para traduzir o Grego ὄν "ente", passo fundamental no desenvolvimento da filosofia e metafísica ocidental e tão lamentado por Heidegger.

Voltando a Quintiliano, se a frase "aliud latine aliud grammatice" sugere uma adesão não à Grammatica mas sim à Latinitas, somos levados a concluir que por "Latinitas" se deve entender adesão não só às regras mas também às características e às idiossincracias da língua latina. "Latine loqui" torna-se por conseguinte numa frase ambígua, passível de ser traduzida quer por "Falar latim" quer por "Falar bom latim." A expressão traz à memória a endíade pseudo-etimológica utilizada pelo Zarathustra de Nietzsche que afirma que «Ich will deutsch und deutlich mit euch reden.» ("Desejo falar convosco em alemão e claramente.").

Isto traz-nos de volta ao "carmen Latinum", ao "poema latino" que Horácio se propunha cantar. Comecemos por uma interpretação básica do poema. Quaisquer que sejam as conotações permitidas pela palavra em todo o espectro da língua latina, qual é aquela sugerida pelo poema?

A ideia principal do poema é uma de conquista daquilo que de melhor a cultura Grega possuía de forma a poder ser absorvido na cultura latina que a havia conquistado. Se fosse hoje, e aceitando a definição de apropriação cultural como «a power dynamic in which members of a dominant culture take elements from a culture of people who have been systematically oppressed by that dominant group», então tendo em conta a escravatura a que milhares de Gregos tinham sido sujeitos nos séculos antecedentes, e a pilhagem sem precedentes das cidades da Aqueia (como os Romanos lhe chamavam), então o século XXI ver-se-ia certamente obrigado a condenar a obra de Horácio, tal como todo o projecto Romano da "Græcia capta", magistralmente expresso no primeiro parágrafo das Disputações Tusculanas:

sed meum semper judicium fuit omnia nostros aut invenisse per se sapientius quam Græcos aut accepta ab illis fecisse meliora, quæ quidem digna statuissent, in quibus elaborarent.

Mas eu fui sempre da opinião de que, qualquer que seja o tema, ou fomos nós a inventá-lo ou então, se se tratar de alguma coisa à qual os Gregos se dedicaram e elaboraram, recebêmo-la deles, certo, mas depois tornámo-la melhor.

Felizmente, porém, os nossos adoráveis & imperiais romanos tinham uma perspectiva vastamente diferente da forma de lidar com apropriação cultural. Graças à sua insensibilidade temos o Horácio. Que neste poema leva a cabo a dita apropriação cultural de padrões gregos através da conquista do metro alcaico. É Alceu, o poeta da ilha de Lesbos (hoje Lesvos), aquele mencionado na segunda estrofe, o "Lesbius civis", que eu traduzi como "alguém de Lesbos". A ele devemos um dos mais influentes metros da poesia grega e, à conta de pessoas como Catulo e Horácio, também da poesia latina. É a famosa estrofe Sáfica, assim chamada por referência à poetisa Safo, contemporânea de Alceu, que apesar de não o ter inventado aperfeiçoou-o e acabou por lhe ser associado na terminologia literária.

É fácil distinguir o poema ouvindo a gravação renascentista que eu partilhei juntamente com o poema. Ainda assim, diga-se que uma estrofe sáfica consiste em três versos sáficos (-x---|xx-x-x) seguidos de um verso adoneu (-xx-x), em que 'x' simboliza uma sílaba breve,'u' uma sílaba longa, e 'x' é 'ancípite', ou seja pode ser uma ou outra, e finalmente '|' significa uma 'cesura', ou seja uma quebra métrico-semântica a meio do verso.

Uma estrofe sáfica é, portanto, o seguinte:

-x---|xx-x-x
-x---|xx-x-x
-x---|xx-x-x
-xx-x

E é precisamente na conquista deste metro que consiste a vitória de Horácio sobre a Grécia. É na possibilidade de pegar na lira e no metro que "o homem de Lesbos foi o primeiro a modular" (Lesbio primum modulate civi) e torná-lo em algo Latino que consiste o triunfo de Horácio.

Em que é que isso deixa o tradutor? A língua portuguesa, mesmo que in extremis seja capaz de acolher métrica quantitativa (assim nos referimos ao estilo de métrica greco-latina de alternância de sílabas breves e longas), é-lhe ainda assim, por motivos sobejamente óbvios, extremamente resistente. Estou a par de uma única tentativa sustentada de tentar escrever em português em tais metros, o livro do Frederico Lourenço Clara Suspeita de Luz de 2011 (um projecto passível de ser irmanado a outros tais, principalmente em inglês e em alemão no século XIX). Mas 99.999% das traduções de poemas latinos nem sequer ousam, ou se ousam fixam-se meramente no eco do número de sílabas. Eu não fui diferente, com a única memória da métrica original na evocação de métrica qualitativa (a portuguesa) a fazer referência aos versos Adoneus do poema original.

A questão transforma-se, portanto, na seguinte: será a tradução de "Latinum" por "Latino" digna? Honrará ela o poema? Ou, sendo que essa mesma tradução desistiu de traduzir aquilo que o torna especificamente latino, não o desonrará antes? A visão positiva diria que deixaria exposta a cicatriz da proverbial insatisfação da tradução. Mas essa insatisfação, francamente, já se tornou daqueles clichés do discurso literário, do tipo que se enuncia com voz grave e pousada por pessoas que são poetas, e eu no que me toca fartei-me.

Isso não obstante, pareceu-me que traduzir por "Latino" era demasiado arrogante quer para o tradutor quer para os leitores da tradução, que são deixados sem um referente, na exacta medida em que em vão buscarão a suposta latinidade métrica (a única) do poema dela privado. Por oposição a essa presunção, há um reconhecimento de um fracasso pessoal na tradução por "composto". Uma tradução insuficiente, mas honesta na sua insuficiência, e que preferiu optar pelo sentido alternativo da palavra, sentido esse vivo e real para a língua em que o poema está escrito, mesmo se no poema em questão está apenas latente, como eco duma ligação à língua da qual é servidor. 

O Horácio certamente teria certamente entendido que o sentido principal seria o da relação métrica, com o alternativo, acima exposto, quase desactivado a uma primeira leitura. Não podemos porém duvidar de que estaria consciente da insinuação que rastejava na palavra, prestes a manifestar-se a um leitor atento. Aquilo que em Latim é meramente implícito, na minha tradução é explícito. Humildemente explícito, pretendendo-se que essa humildade mais não seja que um sinal de respeito pelo meu querido e pachorrento dominus.

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