sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Uma Encomenda Para O Rei David

Decades after it was excavated, an ancient fortress in the heart of Tel Aviv, Israel, is offering new hints about its past, archaeologists at Tel Aviv University say. [...] The researchers unearthed an amphora (a large jar used to transport oil or wine) from the Greek isle of Lesbos at the crumbling edifice. The find is the earliest known example to date of Lesbian ceramic work in the Mediterranean.

What remains a mystery, the researchers say, is how the Lesbian amphora arrived at Tel Qudadi in the first place. It may have come aboard a Phoenician ship on a trading voyage around the Mediterranean. While a single find cannot prove the existence of trade between ancient Israel and Lesbos, the finding has implications for understanding trade routes between different parts of the Mediterranean.

notícia retirada daqui.

imagem : Safo, de Lesbos, representada num vaso
de 440-430 a. C., da oficina de Polignoto, Atenas.

Hoje Acordei Às Dez da Manhã. À Tarde, Encontrámos Tróia.

Alguns dos diários de Schliemann foram digitalizados e encontram-se agora acessíveis online no site da American School of Classical Studies at Athens. Os diários, daquilo que vi, estão escritos em inglês e francês, mesmo se adivinho que devem andar por lá algumas páginas em alemão também. Um aviso: a caligrafia, apesar de extremamente regular, pela sua inclinação, é um pouco difícil de decifrar à primeira vista, mas com alguma persistência uma pessoa habitua-se. A ver aqui e aqui.

Pensar É Uma Narrativa

Gonçalo M. Tavares, na entrevista à Ler aqui já citada, interrogava-se sobre porque associamos tanto a ideia de narrativa à de personagem, explorando, como alternativa, o carácter narrativo de um pensamento: «O pensamento é a estória de uma ideia. Alguém que pensa está a ter uma ideia que desenvolve ao longo do tempo. Portanto, essa ideia é como se fosse uma personagem que se vai transformando. Tem até opositores. A personagem-ideia tem sempre um inimigo que é o contra-argumento. Pensar é uma narrativa». Quem quer que já tenha lido ainda que apenas os primeiros capítulos da Fenomenologia do Espírito de Hegel não pode senão concordar. Porém, se aqui recupero esta sugestão de Gonçalo M. Tavares, não é tanto a propósito do filósofo de Iena, mas sim por causa de Platão.

Acabei há pouco o Lísis, na tradução, já não disponível, de Francisco de Oliveira, editada em 1980 pelo então Instituto Nacional de Investigação Científica, cujo fundo está agora com a INCM. Com a leitura do Lísis concluí a minha viagem pelo corpus platónico, com os seus 34 diálogos, a Apologia e as treze cartas atribuídas ao filósofo. Exceptuando o Banquete, com que estou assaz familiarizado, por o ter estudado à cadeira de grego em dois semestres (primeiro em Portugal, com a tradutora, depois em Bristol, em Erasmus), li — ou, num ou noutro caso, mas não muitos, reli — todos os restantes este ano que agora se finda. Em abono da verdade, a maioria, visitei-os agora já neste semestre, quer por causa de um dos projectos que a Origem está a desenvolver e que deverá ver a luz do dia, se tudo correr bem, lá para Abril próximo, quer por causa da minha tese, que a isso me convidava. Assim se explicam as numerosas citações de Platão que têm pululado neste blogue nos últimos meses.

Vários dos diálogos que nos chegaram são tidos por espúrios, isto é, não-autênticos, por importantes platonistas. Alguns, como o Teages ou o Minos, são inclusive considerados, por consenso alargado, falsos, sendo o caso tanto mais grave quando nos debruçamos sobre as cartas, as quais são quase unanimente desqualificadas. Nunca estudei a fundo a questão, que agora me atrai, mas, enquanto leitor apenas, não tenho grandes queixas: a verdade é que o corpus platónico, na sua totalidade, é de uma coerência extraordinária. Diálogos menores e rotulados apressadamente de espúrios, como, por exemplo, o Segundo Alcibíades, são, na realidade, pequenos chefs-de-oeuvre, que iluminam aspectos importantes da filosofia platónica (outro exemplo: Os Amantes, também conhecido por Os Rivais, como o Toy Story 1). O meu conselho é, pois, a quem se lance numa empresa semelhante, que, sem quaisquer pruridos, leia cada um dos diálogos: os Antigos, apesar de tudo, deveriam saber algo sobre os textos de Platão, tanto mais que, caso (quase) único, nos chegou a obra completa do autor, e até outros diálogos que, esses sim, já desde Alexandria são classificados de não-autênticos.

Os diálogos platónicos serão, muito possivelmente, uma das ilustrações possíveis mais perfeitas da ideia avançada por Gonçalo M. Tavares, sendo que Platão tem uma predilecção por narrativas abertas. Não sei se terei algum dia lido a obra completa de um autor, mas não me arrependo do esforço investido neste caso: Platão é, indubitavelmente, um dos maiores escritores gregos — aliás, universais. Será difícil conceber uma melhor introdução à filosofia. Longe de tratados analíticos, como encontramos no seu discípulo, Platão brinda-nos, o mais das vezes, nos textos dos seus chamados primeiro e segundo períodos, com deliciosas narrativas onde, por entre as frestras dos argumentos, se entrevê o quotidiano ateniense com a mesma palpabilidade com que um escritor realista pinta detalhadamente um salão burguês. Há pormenores de uma subtileza desconcertante: indirectas, subentendidos, jogos de palavras. E depois há toda a capacidade imagética de Platão que, sem alcançar, claro, a ousadia de Ésquilo, desenvolve frequentemente metáforas tanto mais surpreendentes e inesperadas quando consideramos que estamos perante um texto que é fundamentalmente filosófico, mau grado tudo.

Apesar do fascínio que exercem sobre nós os seus interlocutores, os verdadeiros protagonistas dos textos são claramente as ideias neles desenvolvidas — e o espantoso é que isto funciona: as palavras de Gonçalo M. Tavares não exprimem uma hipótese a averiguar, mas sim uma forma totalmente legítima de conceber, com igual rigor, o género narrativo, com que, já há dois milénios e meio atrás, Platão experimentava. Pegue-se, por exemplo, no Teeteto (um dos meus favoritos). O objectivo é definir o que é o conhecimento. Arrisca-se uma hipótese, mas de imediato surgem uma série de opositores, que é necessário combater (Sócrates recorre com alguma regularidade à metáfora da luta, do boxe e do pancrácio); são refutados, mas depois a própria definição, que lhes resistiu, prova-se, pelos seus próprios termos, débil, e é abandonada, mas não totalmente: sobre ela se constrói uma nova tentativa de definição do conhecimento, e renovam-se as hostilidades. O leitor interessa-se genuinamente pelo herói: a ideia. No fundo, a maioria dos diálogos platónicos são romances de aventuras, com a vantagem de, o mais das vezes, nos obrigarem a continuar, por nós próprios: o livro abre-se. Platão declara-o explicitamente no Filebo, ao não terminar o diálogo. Sócrates, depois de uma grande investigação em conjunto, conclui a tese que desenvolveu com Protarco; este concorda, o diálogo parece, para todos os efeitos, encerrado, e eis senão que Protarco: falta um pormenor Sócrates — por certo não te escusarás a no-lo elucidar. e pumba: fim do diálogo.

Platão, de facto, manifesta uma invulgar consciência literária: os artifícios a que recorre são de uma curiosa modernidade. Temos diálogos que são relatos em terceira ou quarta mão, se necessário (Banquete); e até um texto escrito dentro de um texto escrito (Teeteto), ou uma crítica à escrita num diálogo oral que, porém, nós estamos a ler, escrito (Fedro). E depois há o fantástico humor platónico (aprendido da ironia socrática?), de que, infelizmente, parece-me, pouco se fala. Que o jogo/brincadeira era uma coisa séria, sabia-o bem Platão, que não teme afirmar que mesmo os deuses gostam de uma boa piada. O Eutidemo é um diálogo, especialmente perto do fim, engraçadíssimo, mas até O Político é classificado por Stanely Rosen, um dos mais atentos leitores de Platão, como uma elaborada piada barroca (o que, parece-me, se aplica com igual propriedade à segunda parte do Parménides). A forma como Sócrates refuta alguns dos seus interlocutores não pode deixar, por vezes, de suscitar umas boas gargalhadas (e eu normalmente não me rio alto). O Crátilo, para quem sabe grego, é um gozo, com as etimologias surreais inventadas pelo personagem homónimo. Ou seja: não só é possível ter uma narrativa em que o protagonista é a ideia: o nosso personagem pode inclusive ser verdadeiramente cómico. É concebível pensar, então, tragédias e comédias de ideias: falta quem escreva as tragédias.

Dito isto, vão ler Platão.

imagem: manuscrito da República, tradução latina (1401).

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

viragem a leste

Línguas estranhas nem gosto nem estudo
Bárbaros vocábulos — traduzir, nunca
Falar do chan? O que vai cambaleante
Faz morrer de riso o príncipe do Oeste.

Jiao Ran. Uma Antologia de Poesia Chinesa. Gil de Carvalho (trad.) Assírio & Alvim. (2010)

The Ultimate Aeneid Website

Aqui. Concordâncias, tradução palavra-a-palavra, comentário gramatical, paralelos homéricos, variantes textuais — e muito mais.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Estado da Nação

O recente comentário de um dos nossos leitores deu-me a conhecer mais um blogue centrado na Antiguidade (omito o 'Clássica' de propósito, pois fala-se também da Babilónia, de Israel, do Egipto e de outros povos vizinhos). Assim sendo, somos já quatro, na blogosfera portuguesa:

Origem da Comédia

Agradece-se a quem souber de outros em língua portuguesa (brasileiros, por exemplo) que nos deixe, em comentário, os links.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Política|Filosofia

A filosofia, Sócrates, não deixa, de facto, de ter o seu interesse, quando é estudada com moderação na juventude, mas, se se prolonga o seu estudo para além do conveniente, transforma-se numa autêntica calamidade. Por mais bem dotado que um homem seja, se se entrega à filosofia até uma idade avançada, perde necessariamente o contacto com todas aquelas realidades cuja experiência é indispensável a quem pretenda ser uma pessoa educada e digna de consideração.

Efectivamente, além de ignorar as leis da cidade, o filósofo não sabe tratar com os outros de negócios particulares ou públicos, nem tem qualquer experiência dos desejos e das paixões, numa palavra, falta-lhe inteiramente a experiência de vida. É por isso que, quando se vê a braços com qualquer questão pública ou privada, todos se riem dele, da mesma forma que os políticos, creio eu, se prestam ao riso, sempre que tomam parte nas vossas conversas e discussões.

Razão tem Eurípides quando afirma: a actividade em que cada um brilha e a que se aplica com ardos, «consagrando-lhe a maior parte do dia,/ é aquela em que consegue ser melhor». Aquelas, pelo contrário, em que é medíocre evita-as e diz mal delas, ao mesmo tempo que, por interesse, elogia a outra, considerando que, ao fazê-lo, é a si próprio que elogia.

Mas o melhor, em minha opinião, ainda é saber de todas. Assim, é bom ter alguns conhecimentos de filosofia, faz parte educação, e não vejo nada de vergonhoso num jovem a filosofar. Mas, quando um homem já maduro se ocupa ainda de filosofia, a coisa torna-se ridícula, Sócrates, e o que eu sinto em relação a uma pessoa dessas é algo de semelhante ao que me inspira o espectáculo de um homem que balbucia e brinca como uma criança. Quando eu vejo uma criança a balbuciar e a brincar, como é próprio da sua idade, acho isso agradável, gracioso e adequado à infância de um homem livre; se, pelo contrário, ouço uma criança a exprimir-se com toda a correcção, sinto que a coisa é desagradável, fere-me os ouvidos e parece-me ter algo de servil. Um homem que balbucia e que brinca não chega a ser um homem, é digno de riso e chicote.

Penso da mesma forma em relação aos que se dedicam à filosofia. Gosto de ver um jovem filosofar, acho isso conveniente e próprio de um homem livre; um jovem que não filosofa parece-me, pelo contrário, uma alma baia, incapaz de qualquer acção nobre e generosa. Mas se vejo um adulto que não desiste de filosofar, entendo que o que ele precisa é de chicote. Pois, como diaiz há pouco, um homem destes, por melhores dotes naturais que possua, deixa de ser verdadeiramente homem, a fugir assim dos centros frequentados da cidade e das assmbleias, onde, na expressão do poeta, os homens se ilustram, e a mergulhar no convívio de três ou quatro jovens, passando a vida a segredar com eles a um canto, sem que da sua boca saia nunca uma palavra livre, grande e eficaz.

Platão, Górgias 484d-485d
Verbo, Lisboa: 1973 (trad.: Manuel de Oliveira Pulquério).

[καὶ γὰρ τῶν νόμων ἄπειροι γίγνονται τῶν κατὰ τὴν πόλιν, καὶ τῶν λόγων οἷς δεῖ χρώμενον ὁμιλεῖν ἐν τοῖς συμβολαίοις τοῖς ἀνθρώποις καὶ ἰδίᾳ καὶ δημοσίᾳ, καὶ τῶν ἡδονῶν τε καὶ ἐπιθυμιῶν τῶν ἀνθρωπείων, καὶ συλλήβδην τῶν ἠθῶν παντάπασιν ἄπειροι γίγνονται. ἐπειδὰν οὖν ἔλθωσιν εἴς τινα ἰδίαν ἢ πολιτικὴν πρᾶξιν, καταγέλαστοι γίγνονται, ὥσπερ γε οἶμαι οἱ πολιτικοί, ἐπειδὰν αὖ εἰς τὰς ὑμετέρας διατριβὰς ἔλθωσιν καὶ τοὺς λόγους, καταγέλαστοί εἰσιν. συμβαίνει γὰρ τὸ τοῦ Εὐριπίδου: “λαμπρός” τέ ἐστιν “ἕκαστος” ἐν τούτῳ, “καὶ ἐπὶ τοῦτ᾽ ἐπείγεται”,“νέμων τὸ πλεῖστον ἡμέρας τούτῳ μέρος, ἵν᾽ αὐτὸς αὑτοῦ τυγχάνει βέλτιστος ὤν:ὅπου δ᾽ ἂν φαῦλος ᾖ, ἐντεῦθεν φεύγει καὶ λοιδορεῖ τοῦτο, τὸ δ᾽ ἕτερον ἐπαινεῖ, εὐνοίᾳ τῇ ἑαυτοῦ, ἡγούμενος οὕτως αὐτὸς ἑαυτὸν ἐπαινεῖν. ἀλλ᾽ οἶμαι τὸ ὀρθότατόν ἐστιν ἀμφοτέρων μετασχεῖν. φιλοσοφίας μὲν ὅσον παιδείας χάριν καλὸν μετέχειν, καὶ οὐκ αἰσχρὸν μειρακίῳ ὄντι φιλοσοφεῖν: ἐπειδὰν δὲ ἤδη πρεσβύτερος ὢν ἄνθρωπος ἔτι φιλοσοφῇ, καταγέλαστον, ὦ Σώκρατες, τὸ χρῆμα γίγνεται, καὶ ἔγωγε ὁμοιότατον πάσχω πρὸς τοὺς φιλοσοφοῦντας ὥσπερ πρὸς τοὺς ψελλιζομένους καὶ παίζοντας. ὅταν μὲν γὰρ παιδίον ἴδω, ᾧ ἔτι προσήκει διαλέγεσθαι οὕτω, ψελλιζόμενον καὶ παῖζον, χαίρω τε καὶ χαρίεν μοι φαίνεται καὶ ἐλευθέριον καὶ πρέπον τῇ τοῦ παιδίου ἡλικίᾳ, ὅταν δὲ σαφῶς διαλεγομένου παιδαρίου ἀκούσω, πικρόν τί μοι δοκεῖ χρῆμα εἶναι καὶ ἀνιᾷ μου τὰ ὦτα καί μοι δοκεῖ δουλοπρεπές τι εἶναι: ὅταν δὲ ἀνδρὸς ἀκούσῃ τις ψελλιζομένου ἢ παίζοντα ὁρᾷ, καταγέλαστον φαίνεται καὶ ἄνανδρον καὶ πληγῶν ἄξιον. ταὐτὸν οὖν ἔγωγε τοῦτο πάσχω καὶ πρὸς τοὺς φιλοσοφοῦντας. παρὰ νέῳ μὲν γὰρ μειρακίῳ ὁρῶν φιλοσοφίαν ἄγαμαι, καὶ πρέπειν μοι δοκεῖ, καὶ ἡγοῦμαι ἐλεύθερόν τινα εἶναι τοῦτον τὸν ἄνθρωπον, τὸν δὲ μὴ φιλοσοφοῦντα ἀνελεύθερον καὶ οὐδέποτε οὐδενὸς ἀξιώσοντα ἑαυτὸν οὔτε καλοῦ οὔτε γενναίου πράγματος: ὅταν δὲ δὴ πρεσβύτερον ἴδω ἔτι φιλοσοφοῦντα καὶ μὴ ἀπαλλαττόμενον, πληγῶν μοι δοκεῖ ἤδη δεῖσθαι, ὦ Σώκρατες, οὗτος ὁ ἀνήρ. ὃ γὰρ νυνδὴ ἔλεγον, ὑπάρχει τούτῳ τῷ ἀνθρώπῳ, κἂν πάνυ εὐφυὴς ᾖ, ἀνάνδρῳ γενέσθαι φεύγοντι τὰ μέσα τῆς πόλεως καὶ τὰς ἀγοράς, ἐν αἷς ἔφη ὁ ποιητὴς τοὺς ἄνδρας ἀριπρεπεῖς γίγνεσθαι, καταδεδυκότι δὲ τὸν λοιπὸν βίον βιῶναι μετὰ μειρακίων ἐν γωνίᾳ τριῶν ἢ τεττάρων ψιθυρίζοντα, ἐλεύθερον δὲ καὶ μέγα καὶ ἱκανὸν μηδέποτε φθέγξασθαι.]

Leitores Atentos §9

Vê se isto será conveniente para ti e para mim, não vá acontecer-nos, caro amigo, algum desastre do género daquele que dizem que acontece às mulheres da Tessália que provocam eclipses da Lua.

τοῦθ᾽ ὅρα εἰ σοὶ λυσιτελεῖ καὶ ἐμοί, ὅπως μή, ὦ δαιμόνιε, πεισόμεθα ὅπερ φασὶ τὰς τὴν σελήνην καθαιρούσας, τὰς Θετταλίδας.

Platão, Górgias 513a
Verbo, Lisboa: 1973. (trad.: Manuel de Oliveira Pulquério)

Só hoje, ao reler o Górgias, quase dez anos depois de o ter lido pela primeira vez, é que, ao tropeçar nesta pequena frase de Sócrates, percebi as vinhetas abaixo reproduzidas de The Game of You, o quinto volume do Sandman de Neil Gaiman. Diga-se, para compreensão das mesmas, que na página anterior uma bruxa grega de nome Thessaly invoca a Lua e dialoga com a deusa para obter desta um favor bem importante. Posso adiantar que as consequências deste colóquio são particularmente catastróficas. A intertextualidade de Sandman, série, como aqui se prova, muito amiga dos clássicos, não cessa de me espantar. Tenho definitivamente de reler os vários volumes. Ano novo, leituras antigas.

(clicar na imagem para ampliar)

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Ainda Gonçalo M. Tavares Sobre Séneca

— Quando é que percebeu isso [a urgência de não perder tempo perante a consciência da morte]?
— Não sei. Há um livro que é determinante no meu percurso: as Cartas a Lucílio, de Séneca. Li-o com uns 18 ou 19 anos. É um livro que me acompanha muito. Logo a primeira carta é uma carta sobre o tempo. Lucílio é um discípulo a quem Séneca diz: «Caro Lucílio, já que te queixas de falta de tempo, relata-me o teu dia anterior, diz-me o que fizeste e quanto tempo gastaste com cada coisa; depois de teres feito essa lista, vê de entre as coisas que fizeste quais são as que consideras essenciais e quais são as acessórias, aquelas que poderias dispensar; depois de definires o essencial e o acessório, elimina amanhã o que é acessório e faz apenas as coisas essenciais». O que acho muito bonito nisto é ele aconselhar a fazer uma contabilidade do tempo. Isto é marcante para mim.

[...]

— Acontece-lhe com frequência sentir uma décalage grande entre a ideia com que ficou de uma leitura antiga e a sensação que tem, mais tarde, com a releitura?
— Não faço assim tanta releituras. O que me acontece muito, desde há muito tempo, é que leio sublinhando e escrevendo pequenas notas. Lembro-me, por exemplo, nas Cartas a Lucílio, que houve certas coisas que achei muito significativas e que agora há outras coisas a que não dei atenção nenhuma e que me parecem afinal determinantes.

em entrevista com Carlos Vaz Marques à Ler deste mês.

Biquinis romanos
















Depois de se saber que o exército romano na Bretanha utilizava peúgas, neste blogue chama-se a atenção para os mosaicos da vila romana de Piazza Amerina, ca. séc IV d.C, onde estão representadas raparigas romanas naquilo a que chamamos biquinis e que na época seria o «equipamento» usado no ginásio. Aqui podem ver-se alguns dos restantes frescos.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Para Lá de Oxirrinco

A edição de Natal do The Economist contém um interessante artigo sobre o que poderia ser chamado de arqueologia paleográfica (trabalho com palimpsestos), encoberto numa reportagem igualmente curiosa em torno dos escribas irlandes e das suas possíveis ligações a Bizâncio e ao Egipto. O artigo vem ainda acompanhado de um pequeno texto sobre recuperação e digitalização de manuscritos antigos. Aconselho a leitura dos dois: provam bem como o estudos de civilizações antigas é uma excitação: a qualquer momento podem aparecer novos textos que revolucionam totalmente o nosso entendimento de um dado assunto. Deixo apenas dois excertos, um de cada um dos artigos, para aguçar a curiosidade.
The ever-growing ability to decipher palimpsests is perhaps the most exciting way in which modern technology is throwing light on the role of the written word during the dark ages. One of the most spectacular feats in this field concerns the so-called Archimedes Palimpsest. American scientists, using technology designed to monitor objects in space, looked underneath a Byzantine liturgical manuscript and found a hitherto unknown text from one of the fathers of mathematics and engineering. In addition to the work by Archimedes, there was material from an orator which throws fresh light on ancient Athenian politics. (aqui).
Other big players in the digitising of manuscripts include the Mormons. They have an interest in old writing which might confirm the teachings revealed to their founder, Joseph Smith. But the finest display of Mormon expertise in recovering texts involved material that is far from religious. Scholars from Brigham Young University (BYU) deciphered carbonised papyrus found at a villa in Herculaneum, which was destroyed by a volcano along with Pompeii. Much of it was philosophical writing from the school of Epicurus, who saw pleasure as life’s main goal; and there was a Roman comedy. (aqui).

sábado, 25 de dezembro de 2010

Concordamos

Gente Famosa Nascida no Império Romano


A Origem da Comédia deseja um feliz Natal a todos os seus leitores.
Obrigado pela vossa fidelidade.

Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος. οὗτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν. πάντα δι' αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ χωρὶς αὐτοῦ ἐγένετο οὐδὲ ἕν. ὃ γέγονεν ἐν αὐτῷ ζωὴ ἦν, καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν ἀνθρώπων. [...] Καὶ ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο καὶ ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν.

No princípio existia o Verbo; o Verbo estava em Deus; e o Verbo era Deus. No princípio Ele estava em Deus. Por Ele é que tudo começou a existir; e sem Ele nada veio à existência. Nele é que estava a Vida de tudo o que veio a existir. E a Vida era a Luz dos Homens. [...] E o Verbo fez-se carne — e veio habitar connosco.

Jo 1, 1-4, 14 retirado da Nova Bíblia dos Capuchinhos.
Difusora Bíblica, Lisboa/Fátima: 1998. (trad.: Geraldo Oliveria Morujão).

imagem: Adoração dos Pastores, El Greco (1596-1600),
@ National Museum of Art of Romania, Bucharest.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Sobre a Grandeza da Imparcialidade de Homero

Em primeiro lugar, portanto, é de decisiva importância que o canto de Homero não passe em silêncio os vencidos, testemunhe tanto em favor de Heitor como em favor de Aquiles, e que, embora a vitória dos gregos e a derrota dos troianos estivessem irrevogavelmente predeterminadas pelo decreto dos deuses, isso não torne Aquiles maior ou Heitor mais pequeno, ou a causa dos gregos mais justa e menos justa a defesa de Tróia. Homero celebra esta guerra da aniquilação, já centenária no seu tempo, em termos tais que, em certo sentido — quer dizer no sentido da comemoração poética e histórica — desfaz a aniquilação consumada. A grandeza da imparcialidade de Homero não é uma objectividade neutra em matéria de valores no sentido moderno, mas antes uma liberdade perfeita em relação aos interesses particulares e uma completa independência em relação ao juízo da história, ao mesmo tempo que é tributária, em vez de o ser da história, do juízo dos interessados e da sua ideia de grandeza. A imparcialidade de Homero assinala o começo de toda a historiografia e não apenas da do Ocidente. Porque aquilo que entendemos por história nunca antes e em parte alguma existira, do mesmo modo que desde então não houve história que não tenha sido escrita pelo menos indirectamente segundo o exemplo de Homero. Encontramos a mesma ideia em Heródoto quando este diz que quer impedir «de serem relegados para o esquecimento grandes e maravilhosas acções, umas cometidas pelos helenos, outras cometidas pelos bárbaros» (I, I) — ideia que, como Burckhardt correctamente um dia fez notar, «nunca teria ocorrido a um egípcio ou a um judeu» (Griechische Kulturgeschichte, III, p. 406).

Hannah Arendt, A Promessa da Política (pg. 138-9)
Relógio d'Água, Lisboa: 2007. (trad.: Miguel Serras Pereira).

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Hobbes em Atenas

Those who put in order laws and customs and established kingship and government in cities brought life into a state of much security and tranquillity and banished turmoil. If anyone gets rid of these things, we shall live the life of the beasts, and one man on meeting another will practically devour him.

Colotes, citado por Plutarco em Contra Colotes 1124d
in Malcolm Schofield, "Epicurean and Stoic Political Thought" in Christopher Rowe & Malcolm Schofield (eds.),
The Cambridge History of Greek and Roman Political Thought. CUP, Cambridge: 2000

domingo, 19 de dezembro de 2010

Jacqueline de Romilly

Morreu Jacqueline de Romilly, eminente académica de origem francesa e autora de obras que marcaram uma época dos Estudos Clássicos. Entre nós, quem primeiro deu a notícia, parece-me, foi Ricardo Nobre. A fonte da notícia está aqui.

Curso Intensivo de Latim - Janeiro

O Curso Intensivo de Latim oferece uma introdução à língua latina como chave de acesso a todo um património literário, científico, filosófico, jurídico, artístico e espiritual, de que é herdeiro todo o Ocidente. Estudar-se-ão textos simples, preferencialmente adaptados e seleccionados de acordo com a formação do público inscrito, passando por pequenas expressões latinas, densas de significado, que tendem a ser usadas erroneamente ou antes a ser suprimidas.

O curso integra um forte componente gramatical (que inclui a aquisição das principais estruturas da língua) com o estudo ocasional da etimologia que ilumina as diversas línguas maternas. Pretende assim ser também um auxílio para todos quantos desejam conhecer e dominar melhor as estruturas da sua própria língua.

3 horas / dia
15 horas / semana, durante duas semanas.

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Mais informações aqui.

informação encontrada no De Rerum Natura

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Leo Strauss sobre o Ménon de Platão


Leo Strauss, um dos grandes filósofos políticos do século XX, e, a par de Gadamer, dos mais visíveis leitores de Platão do mesmo século, apresenta aqui uma série de conferências sobre o diálogo de Platão Menon, a partir do qual se propõe "demonstrar qual a natureza da Filosofia Política." Allan Bloom, um dos seus discípulos, oferece as gravações.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O Latim Mata

In a composition a little girl once wrote: "Lady Jane Grey studied Greek and Latin, and a few days thereafter she died." In a more scholarly source, the Corpus Inscriptionum Latinarum, there is record of another fatality in a battle with Greek and Latin. An epitaph by a father runs as follows: "To Dalmatius, his very dear son, a boy of remarkable talent and learning, whose unhappy father was not permitted to enjoy his companionship for even seven full years, for, after studying Greek without an instructor, he took up Latin in addition, and in three days' time he was snatched from the world. Dalmatius, his father, set up this stone." The African Emperor Septimius Severus was shrewder. He kept his foreign accent till his old age. He never mastered Latin and Latin never mastered him.

Eugene McCartney, "Was Latin Difficult For a Roman?", The Classical Journal 23, 3: 163-182.

domingo, 12 de dezembro de 2010

The War That Never Ends

O vídeo acima é um pequeno excerto de The War That Never Ends, um telefilme (com a participação, inclusive, de Ben Kingsley) feito pela BBC, de 1991, a partir da peça homónima, de John Barton, por sua vez uma colagem de textos platónicos e, sobretudo, da História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides, em jeito de telejornal, pelo qual se vai sabendo do adensar das hostilidades até ao estalar da guerra. Por esta descrição, é possível que pareça a alguns uma coisa extremamente aborrecida (quase como unicamente uma declamação dos textos), mas a verdade é que a montagem suscita a minha curiosidade. A coisa aparentemente nunca foi editada em vídeo, muito menos em DVD. Se alguém, porém, me puder pô-la nas mãos de alguma forma, fico agradecido.

Os melhores archeiros do mundo conhecido

agora o que ele quer descobrir é por que se chamava balear à funda, e vai de livro em livro, rebusca, impacienta-se, até que, finalmente, o precioso, o inestimável Bouillet lhe ensina que os habitantes das baleares eram considerados, na Antiguidade, os melhores archeiros do mundo conhecido, que era, evidentemente, todo, e que daí tinham tomado as ilhas o nome, pois em grego atirar diz-se ballô, não há nada mais claro, qualquer revisor é capaz de ver a etimológica linha recta que liga ballô a Baleares

José Saramago, História do Cerco de Lisboa, Caminho, 2008 (8ª edição).

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

So You Think You Have Friends In High Places


Born in Etterbeek, Brussels to Germaine Geens and Vic Van Rompuy, he attended Sint-Jan Berchmanscollege in Brussels (until 1965) where Ancient Greek and Latin were his main subjects. Later he studied at the Katholieke Universiteit Leuven and received a bachelor's degree in philosophy (1968) and a master's degree in applied economics (1971). He worked at the Belgian central bank from 1972 to 1975.


Um sério adversário para o Mark Zuckerberg.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Spartan High School Musical

e muitos mais sketches do Horrible Histories para uma pessoa se rir aqui (Aristóteles e Arquimedes ao piano, em duas partes), aqui (troca de mulheres entre uma família espartana e uma ateniense), aqui (Alexandre o Grande discute o nome da sua próxima cidade), aqui (Calígula prepara o seu próximo discursos), aqui (a história de Roma em dois minutos), aqui (os cristãos na arena) — bem, procurem.

Truth of Troy - Excertos de um Documentário BBC

CODEX - Revista Discente de Estudos Clássicos.

Informação recebida pela Origem da Comédia.

Anunciamos a publicação do quarto número (v.2,n.2) da CODEX - REVISTA DISCENTE DE ESTUDOS CLÁSSICOS (ISSN 2176-1779). Uma Publicação do IAC-USP e do Proaera-UFRJ. Aproveitamos para comunicar que estamos recebendo textos para o quinto número da revista. Para ler a revista, é preciso cadastrar-se (gratuitamente). A revista está integrada ao sistema SEER, do CNPq.

http://www.letras.ufrj.br/proaera/revistas/index.php/codex/issue/current

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Os Pais da História

(clicar sobre a imagem para ampliar

De «Em voo (2)»

Em defesa de Pirro
A Juliano (Antologia Palatina, VIII, 576)

Juliano, curaste-me
de espantos, não de dúvidas.
Contra Pirro disseste:
Não sabia, o céptico,
se era morto, se vivo.
A morte sabia-o bem.

E tu, como o sabes tu?

Octavio Paz, Árvore Adentro, Luís Alves da Costa (trad.), Vega, 1994

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Etnografia Filosófica #2

It appears certain to me, by a great variety of proofs, that Cambyses was raving mad; otherwise he would not have set himself to make a mock of holy rites and long-established usages (nomaia). For if one were to invite men to choose out of all customs (nomoi) in the world such as seemed to them the best, they would, after examining them all, end by prefering their own; so convinced are they that their own usages are the best. Unless, therefore, a man was mad, it is not likely that he would make a sport of such matters. That people have this feeling about their customs may be seen by many very proofs: among others, by the following. Darius, after he had got the kingdom, called into his presence certain Greeks who were at hand, and asked what he should have to pay them to eat the bodies of their dead fathers; to which they replied, that there was no sum that would tempt them to do such a thing. He then sent for certain Indians, of the race called Callatians, men who eat their fathers, and asked them, while the Greeks stood by, and understood by means of an interpreter all that was said, what he should have to give them to burn the bodies of their fathers at their decease. The Indians exclaimed aloud, and bade him forbear such language. Such is men's wont herein; and Pindar was right, in my judgement, when he said: 'Nomos is king (basileus) of all'.

Heródoto, Histórias III.38
in Richard Winton, "Herodotus, Thucydides and the Sophists" in Christopher Rowe & Malcolm Schofield (eds.),
The Cambridge History of Greek and Roman Political Thought. CUP, Cambridge: 2000.

Lagerfeld Fotografa O Olimpo

Karl Lagerfeld concebeu e fotografou 21 modelos que deram corpo (literalmente) à edição 2011 do calendário Pirelli, um clássico que vai já na sua 38ª edição. Sob o mote Mythology, Lagerfeld atirou-se ao imaginário das lendas e mitos da cultura greco-romana, com o seu panteão de deuses e deusas. Em 36 imagens a preto e branco, captadas no seu estúdio em Paris, o homem que o mundo conhece como um dos nomes mais influentes da moda retrata 24 temas, com enquadramentos e iluminação que remetem para o visual das estátuas clássicas.

notícia (resumida) do P2, de 1/12.
o calendário pode ser visto aqui, com direito a making-of.

Filoctetes e Heraclito.

Chamamos a atenção para este post. E aproveitamos e citamos Heraclito.

ARCO (βιός). Acentua-se assim a palavra arco (τόξον = βιός) por distinção à palavra "vida" (βίος); originariamente, entretanto, igualavam-se, e eram denominadas homonimamente as palavras "arco" (βιός), "arco" (τόξον) e "vida" (ζωή = βίος). Heraclito, o obscuro, de facto diz: "o nome do arco, vida; sua obra, morte."

Βιός - ὁξύνεται τὸ τόξον, διὰ τὴν πρὸς τὸν βίον διαστολήν· ἔοικε δὲ ύπὸ τῶν ἀρχάων ὁμωνόμως λέγεσθαι βιὸς τὸ τόξον καὶ ἡ ζωή. Ἡράκλειτος οὖν ὁ σκοτεινός, "τῷ τόξῳ ὄνομα βίος, ἔργον δὲ θάνατος."


Heraclito (DK B48), Fragmentos Contextualizados
Lisboa, INCM: 2005. (trad.: Alexandre Costa)

Aproveito para apontar que há uma gralha. Falta o acento circunflexo em τῳ na versão impressa.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Eurípides/Crítias Contra Os Deuses

Também Eurípides, o poeta trágico, não quis manifestar as suas ideias, receando o Areópago, mas deu-as a entender do seguinte modo: pôs em cena Sísifo como representante desta opinião e fê-lo exprimir-se a favor da sua ideia. Disse [...]:

Houve um tempo em que a vida humana era desordenada
e serva de uma força selvagem
quando nem existia nenhuma recompensa para os indivíduos honestos
nem havia castigo para os maus.
E parece-me que, em seguida, os homens instituíram leis
punitivas a fim de que a justiça fosse soberana
[de todos igualmente] e que fizesse da insolência uma escrava.
Se alguém cometesse uma falta seria penalizado.
Em seguida, uma vez que as leis os impediam
de praticar manifestos actos de violência
e eles os praticavam às ocultas, parece-me que nesta altura
[pela primeira vez] um certo homem, ousado e sábio na maneira de pensar
inventou o receio [dos deuses] para os mortais, para que
os malvados tivessem receio de fazer
ou dizer ou pensar [algo] às ocultas.
Por isso, introduziu o divino:
«Há uma potestade florescente, com vida indestrutível,
que, com o espírito, ouve e vê, e, com suma inteligência,
vigia estas acções, dotada ela própria de uma natureza divina.
Ouvirá tudo o que se disser entre os mortais
e poderá ver tudo [o] que é feito.
Se, em silêncio, planeares algum mal,
isso não passará desapercebido aos deuses. A inteligência
é nela [suma]». Fazendo esta afirmação,
introduziu a mais agradável das doutrinas
e encobriu a verdade com um discurso falso.
Defendia que os deuses habitavam num lugar que,
só de o mencionar, assustava imenso os homens.
Sabia que daí partiam os receios para os mortais
e os consolos para a sua vida desditosa,
vindos da esfera celeste, onde via
existirem relâmpagos e terríveis estrondos
de trovão e o estrelado corpo do céu,
obra admiravelmente variegada do sábio artífice, o tempo.
Daqui avança a massa incandescente da estrela
e a tempestade de chuva sai em direcção à terra.
Em tais medos envolveu os homens,
pelos quais [ele] integrou bem a divindade
no discurso e num local conveniente;
e com as leis destruiu a ausência de leis.
[...] Penso que foi desta maneira que alguém, pela primeira vez, persuadiu
os mortais a pensarem que existia uma raça de deuses.

Sexto Empírico, Contra os Matemáticos 9.54 = Crítias DK 88 B 25
(o fragmento é atribuído por Diels-Kranz e outros, mau grado o testemunho de Sexto Empírico, a Crítias, um dos trinta tiranos, da família de Platão)
in Sofistas - Testemunhos e Fragmentos. INCM, Lisboa: 2005. (trad.: Ana Alexandre Sousa e Maria José Vaz Pinto)

imagem: estátua de bronze de Zeus @ Museu Arqueológico de Atenas

O Nascimento da Filosofia


Giorgio Colli, O Nascimento da Filosofia
Edições 70, 2010.
Artur Morão (trad.)


Giorgio Colli tem os louros da fama pela filosofia graças ao seu trabalho relativo a Nietzsche, e este opúsculo denuncia esse contacto íntimo. O Nascimento da Filosofia não é só uma referência directa à Origem da Tragédia (pensada em italiano como La Nascita della Tragedia, sendo que o nome deste volume é La Nascita della Filosofia como aliás o é o nome do muy-humilde blog em cuja página isto ledes)  mais que isso, grande parte do livro é um combate directo com Nietzsche, com o apolíneo/dionisíaco pensados enquanto aparência/realidade ou paz/violência.

Porque Colli quer que a batalha seja de novo travada na filosofia que foi travada na tragédia. Apolo e Diónisos terão de se bater para dar origem à maravilha que é a filosofia, mas se na tragédia Diónisos triunfa, na filosofia será Apolo. Mas não o Apolo de olhar calmo. "A Grécia temeu Apolo mesmo antes de ele nascer" é o início do grande livro Ulisses e a Mente Colorida de Pietro Citati (Cotovia, 2005), onde o apadrinhamento por parte de Apolo é revelado tal como o deus: Apolo, etimoligizado por πόλλυμι apollymi, destruir totalmente. Aqui o Nascimento da Filosofia nascerá sob a mesma égide.

É um início mitológico, portanto, mas firmemente vertido num pensamento helénico: não há aqui espaço para “raízes orientais” ou “sabedoria egípcia”. Elas existiram, sim, mas aquilo que aconteceu na Grécia foi algo de tão fundamentalmente diferente que não pode ser explicado por segundas vias. É aí, na Sacrosancta Hélade, que o pensamento mitológico e religioso começou a escorrer e a solidificar-se sobre ele mesmo como a cera duma vela, até que olhamos de volta, e os materiais são os mesmos mas os resultados são irreconhecíveis como a linguagem dum poema o é da mesma linguagem num discurso político.

O oráculo é a primeira palavra. O sábio é aquele que recebe a palavra do deus. Daí que sempre o pensamento grego arcaico não possa ser separado da religião e da capacidade profética. Podemos perceber daqui a razão para Giorgio Colli ter apelidado à sua (incompleta) tradução dos vulgarmente-chamados Filósofos Pré-Socráticos “La Sapienza Greca” (A Sabedoria Grega) e nela ter incluído textos hoje tão não filosóficos como os testemunhos dos mistérios órficos e de Eleusis. A sophia não tem portanto nada que ver com o cisma que, por exemplo, Leo Strauss verá entre Razão e Revelação, e que Tertuliano tão celebremente imortalizou em Quid ergo Athenis et Hierosolymis? O que é que Atenas tem que ver com Jerusalém?

Quando o grego recebe o oráculo, tem consigo a palavra do deus. Mas nunca falará claramente o deus: que, como a natureza (que, a natureza), ama esconder-se. Heraclito é portanto uma espécie de hierofante, de poeta-profeta que lança o enigma – a palavra divina – para junto dos mortais para os quais a prova de fogo sapiencial será a sua capacidade de desvendar o enigma para compreender o oráculo, cuja verdade acaba por ser uma espécie de afirmação dionisíaca nietzschiana, esse oráculo enigmático que parece que existe mais enquanto contradições absurdas do que enquanto desafio humanamente concebível, e cuja portanto solução sempre diz a mesma coisa: Sim! ao mundo, Sim! à submissão à sabedoria do deus através da capacidade de adivinhar (Édipo sempre será o santo padroeiro da Filosofia: desvendar o enigma é ao mesmo tempo o maior culto possível: mas que resultado poderia advir do culto supremo ao Deus que Tudo Destrói? [A explorar: Édipo enquanto Judas, ou o amor-sabedoria enquanto traição de si]).

Adivinhar é portanto desvendar enigmas, que são oráculos. Heideggerianamente lido, a Verdade (cuja palavra grega é Alêtheia, desvelamento) é o deixar cair a trama da palavra e da linguagem humana, é a capacidade de cortar o nó górdio através do intelecto, para que a Sophia divina possa soar. Esse agir do intelecto é problemático: mas o que transpira é que não é apenas um poder humano que lhe traz acesso. Para o próprio logos parece ser necessário esperar pelo deus que ilumine o espírito mortal com o seu raio para que se lhe tenha acesso. É uma espécie de simbiose perfeita entre as mesmas Razão e Revelação, na medida em que o deus permite ao humano que o humano caminhe na direcção dele. O deus dá o fiat, e o humano faz. Quem é amado pelo deus tem acesso intelectual à sabedoria dos seus oráculos (ou, apoiando-me em Lutero: “desvendo oráculos portanto sou amado pelo deus”). Mas lembremos: a profecia, segundo um passo do Fedro muito referido e citado por Colli, a capacidade profética, é uma mania, uma loucura concedida por Apolo para que os humanos tenham os melhores dos bens. O deus enlouquece aqueles a quem ama. (Ouçamos porém e ainda duas sentenças antigas: “morrem cedo aqueles a quem os deuses amam” (vide) e “aqueles a quem os deuses querem destruir, enlouquecem antes”.)

Estes adivinhos, estes Heraclitos e Parménides, Édipos e Homeros, são os poderosos amantes do deus, que não toleram nada a não ser o amor absoluto, que como gregos terão de ser excelentes no amor, pela concepção grega de que não vale a pena viver se não se é o melhor no combate da sua escolha: para estes o combate é o maior de todos, a sophia, e falar com o deus significa que o outro não fale — não pode, o deus supraabunda de excelência, e o igual, como diria Platão, ama o igual. Os humanos são aquilo que os deuses não poderão jamais ser, invejosos, mas obrigarão o deus a optar por eles e a destruir o adversário — ou a serem eles mesmos destruídos. São duelos de sagacidade, cuja arma é o intelecto, cuja recompensa é a sabedoria, cuja pena é a morte.

Nota-se que este é o pico, este saudosismo absoluto por aquele tempo em que a sabedoria era ainda viva e o deus era o terceiro que caminhava junto aos sábios-adivinhos que se apunhalavam com lâminhas lógicas. Mas também os deslindadores de enigmas se transformam (pois a corrupção toca até a Sacra Hélade, não o diz Colli mas suspeitamos). Diz ele ainda & porém que este é dos “fénomenos culminantes da cultura grega, e um dos mais originais.” Compreendemos: a relação com a palavra divina terá de existir, embora porém fora duma relacção de resolução de enigmas, onde quer que o humano se bata com o divino. Mas é da Grécia que há filosofia.

“Quando o fundo religioso se esmoreceu e o impulso cognoscitivo já não precisa de ser estimulado por um desafio do deus, quando uma competição pelo conhecimento entre homens já não requer que eles sejam adivinhos, eis que aparece um agonismo simplesmente humano.” Os homens continuam a combater, mas deixa de estar em jogo o acesso místico ao divino, deixa de estar em jogo a morte. A dialéctica formal é um mera brincadeira, uma progressão mínima de refutação em refutação. Não se apercebem, mas o deus já morreu aqui, já morreu quando o ser humano se vira para o outro ser humano e deixa a imagem do deus presente apenas na sua ausência. Como poderia dizer o idealismo, vinte séculos mais tarde, o deus desapareceu tão-só porque os humanos deixaram de o contemplar e de O olhar no Seu rosto de fogo.

Os dialécticos — Sócrates é assim o primeiro podre, a gangrena dum mundo — poderão porém muito: poderão conjurar todo o poder de Apolo para si, recrutarão o deus-que-acerta-ao-longe até às últimas consequências. A dialéctica serve precisamente para destruir as opiniões erradas. São métodos de conflicto que permitem desmontar através de recursos lógicos aquilo que o adversário trouxer. Mas qualquer pessoa que leia os chamados diálogos aporéticos de Platão poderá ter a intuição bastante de que a dialéctica, o método socrático, nada pode construir, pode apenas deitar por terra. Se o adversário anima uma ideia, logo lhe será provado que essa ideia se contradiz em si mesma — o sentido paradoxal do enigma heraclitiano há muito perdido, mas não nos faz lembrar Colli das tentativas risíveis por parte de certa filosofia analítica que reduz Heraclito (e outros) a lógica algébrica e o proclama falso porque auto-contraditório? — o que poderia resultar nas mãos de alguém com convicções firmes e com uma sabedoria a defender: o paradigma disso é Zenão, que possui a sabedoria do seu mestre Parménides, mas usa ainda assim da dialéctica (os seus paradoxos) para “demonstrar” a falsidade da oposição. Mas isso é abrir o jogo àqueles que não têm a sabedoria: baixar a guarda da sabedoria até que um dialéctico mais forte surja em cena.

Os Sofistas, autênticos semi-deuses, poetas da obliteração, não terão esses pruridos éticos nem esse pudor religioso: abrirão brechas e explodirão a sabedoria por dentro: não se limitarão a destruir as afirmações erradas, mas todas elas serão alvo da sua Palavra de Morte: Nada existe. Se algo existe, não pode ser conhecido. Se pode ser conhecido, não pode ser comunicado — Górgias é o novo hierofante, que arranca a sua coroa à cabeça ensanguentada do seu predecessor.

Daqui para a frente é outro mundo. Já não temos sábios. Colli refere-se frequentemente àquelas alturas em que Platão suspira saudosamente pela “idade dos sábios”, ao passo que ele e os seus contemporâneos não têm mais que filosofia, um amor por uma sabedoria que não há-de chegar nem pode chegar. A dialéctica tornar-se-á solipsística ou demagógica e começarão a transpor a sua arte para o domínio da política (renegando assim o que ainda poderia haver de sensato na práctica da theologia): assim nascerá a retórica, que pede a sua confirmação nem ao deus, nem ao adversário, mas sim às massas. A alternativa é a manutenção da índole filosófica desta retórica literária através da transposição em modelo escrito da reflexão sapiencial. Platão é assim o primeiro que assume a literariedade dos seus escritos, que já não é um sábio, não é um sofista, não é um orador, é um filósofo. Mas desiste da sophia, tem de desistir da sophia para poder escrever seja o que for: em última instância tem de desistir do próprio deus.

Porque se há mau-da-fita neste livro, para além dos sofistas, é a própria escrita. Faz portanto todo o sentido que, tudo o que nele é dito não obstante, haja uma recuperação subreptícia constante da ideia das doutrinas não-escritas platónicas. É então um livro problemático por muitas razões, especialmente, e aí posso notá-lo por mais familiaridade, nas secções adereçadas a Platão. É além de tudo perigoso, e não só por cair no mesmo erro da Origem da Tragédia (da qual Willamowitz se queixou, anos mais tarde da sua retumbante crítica, que era na realidade “mais filosofia que filologia”). Aqui Giorgio Colli cai no mesmo erro, ou melhor dizendo, na mesma particularidae: Nascimento da Filosofia, talvez, mas apenas na medida em que a ontogénese possa reproduzir a filogénese. Mais que uma descrição dos princípios, é um bater-se das críticas religiosas e relativistas, com triunfo anunciado das últimas para prejuízo da humanidade. Nesse sentido é perspicaz, mas não se pode fluctuar quando alguém bebeu já o mar inteiro. Tudo isto dito, recomendo àquelas pessoas que já tenham algum interesse vincado na época grega arcaica e no pensamento de nietzsche: como foi sendo visto, o jogo de ideias desses dois campos é constante (e o verdadeiro interesse do livro), mas tal signiica que acabe por não ser jamais uma verdadeira introdução, mas sim uma perspectiva religioso-filosófica sobre este brilhante período da filosofia.

domingo, 5 de dezembro de 2010

O Deus do Bunga-Bunga

[ainda a propósito disto]
Como podemos admirar hoje a virilidade do deus Marte ou a sensualidade da deusa Vénus? Deixando intactas as estátuas que os representam ou preenchendo as lacunas? Existe uma altura certa na vida para aprender a resolver esses problemas. Há uma idade certa para perguntar onde estão os braços da Vénus de Milo ou a cabeça da Vitória de Samotrácia. E outra para compreender que nem uma coisa nem a outra precisam de lá estar. Há no entanto pessoas que nunca crescem - ou que o fazem subtraindo problemas. Aos 74 anos, o primeiro-ministro italiano, Sílvio Berlusconi, é não só o segundo político transalpino que está há mais tempo no cargo como o primeiro que consegue dirigir o seu país como se fosse um verdadeiro adolescente.

Evidentemente, há uma crise. Financeira, política. Em Dezembro, o futuro do seu Governo jogar-se-á no Parlamento e no Senado de Roma. À margem disso, o premier (como gostam de dizer os italianos) vai entretendo os seus compatriotas com piadas e escândalos. Diz-se agora que participa em orgias onde se pratica o bunga-bunga, ao que parece uma invenção de outro decano da adolescência, o coronel Khadafi, da Líbia (a revista americana Slate apresenta uma hermenêutica completa da expressão "bunga-bunga" em vários idiomas, mas não consegue decifrar o mistério). O bunga-bunga talvez ajude a explicar por que é que a uma estátua do deus Marte e da deusa Vénus, na residência oficial do primeiro-ministro foram acrescentados um pénis e um braço que faltavam.

Podia o deus Marte ser representado sem um pénis? Na pátria do bunga-bunga, não. Nem que fosse acrescentado um pénis de plástico. Os restauradores que trabalharam na estátua do tempo do imperador Marco Aurélio optaram por um pénis magnético, que pode ser removido. Uma inovação. E é como se o deus romano da guerra tivesse tomado Viagra. Um clássico.

E está o Cavaliere a postos para a batalha pelo seu futuro político. Tem a bênção do falso pénis de um deus romano. Que estranhos pensamentos não inspiraria a Berlusconi a estátua castrada? Mas tudo isto é Berlusconi e tudo isto é a Itália actual. Um pastiche e uma piada de mau gosto. O país do falso e do kitsch. Onde Pompeia cai aos bocados e o primeiro-ministro falsifica uma estátua. Até porque não existem dados precisos sobre a medida do pénis do deus Marte.

Mas não vale a pena chorar mais. Mario Agello, colunista do jornal italiano Il Messagero, descobriu uma virtude na falsificação - e isso por o pénis do deus Marte ser magnético. Lembra ele que, quando os regimes comunistas caíram na Europa de Leste, foi preciso inúmeras estátuas em tamanho gigante de Lenine e de Estaline. Mas quando o berlusconismo chegar ao fim, bastará remover um pénis de uma estátua romana, para a Itália se despedir do deus do bunga-bunga.

artigo de Miguel Gaspar na Pública de 28 de Novembro.

Considerações Sobre o Uso da Metáfora em Platão, ou O Argumento Como Um Rio

Athenian Stranger: Let us be on our guard against an argument that is wily in every way, lest with its youthful vigor it cajole us, who are elderly, and get away, making us laughable, and seem like people who reached for great things but failed to obtain even the smaller. Consider therefore: suppose it was necessary for us, being three, to cross a very swift flowing river, and I, happening to be the youngest of us and experienced in many currents, said that I ought to try it first by myself, leaving you in safety and investigating whether it is fordable for more elderly men such as you, or just how it is. If it appeared to be, I would then call to you and help you across with my experience, while if it were unfordable for you, the risk would be mine. Now the argument coming up is rather swift and perhaps almost unfordable for your strength. Lest it create in you a dizziness and whirling, sweep you away by asking unfamiliar questions, and engender an unpleasant unsightliness and unseemliness, it seems to me that I ought now to proceed thus: first I should question myself, while you listen in safety, and then after this I again should answer myself, and go through the entire argument this way, until what pertains to the soul is completed and it has been demonstrated that soul is prior to body.

Kleinias: You seem to us, stranger, to have spoken in an excellent way. Do as you suggest.

Athenian Stranger: Come then, if ever we should invoke the aid of a god, it's now that this should happen - at the demonstration of their own existence let their aid be invoked in all seriousness - and holding on as if to some safe cable, let's set forth into the present argument.

Platão, Leis X.892d-893b
University of Chicago Press, Chicago: 1980. (trad: Thomas L. Pangle)

[Ἀθηναῖος
φυλάττωμεν δὴ παντάπασιν ἀπατηλὸν λόγον, μή πῃ πρεσβύτας ἡμᾶς ὄντας νεοπρεπὴς ὢν παραπείσῃ καὶ διαφυγὼν καταγελάστους ποιήσῃ, καὶ δόξωμεν μείζονα ἐπιβαλλόμενοι καὶ τῶν σμικρῶν ἀποτυχεῖν. σκοπεῖτε οὖν. εἰ καθάπερ ποταμὸν ἡμᾶς ἔδει τρεῖς ὄντας διαβαίνειν ῥέοντα σφόδρα, νεώτατος δ᾽ ἐγὼ τυγχάνων ἡμῶν καὶ πολλῶν ἔμπειρος ῥευμάτων, εἶπον ὅτι πρῶτον ἐμὲ χρῆναι πειραθῆναι κατ᾽ἐμαυτόν, καταλιπόντα ὑμᾶς ἐν ἀσφαλεῖ, σκέψασθαι εἰ διαβατός ἐστι πρεσβυτέροις οὖσι καὶ ὑμῖν, ἢ πῶς ἔχει, καὶ φανέντος μὲν ταύτῃ, καλεῖν ὑμᾶς τότε καὶ συνδιαβιβάζειν ἐμπειρίᾳ, εἰ δὲ ἄβατος ἦν ὡς ὑμῖν, ἐν ἐμοὶ τὸν κίνδυνον γεγονέναι, μετρίως ἂν ἐδόκουν λέγειν, καὶ δὴ καὶ νῦν ὁ μέλλων ἐστὶ λόγος σφοδρότερος καὶ σχεδὸν ἴσως ἄβατος ὡς τῇ σφῷν ῥώμῃ: μὴ δὴ σκοτοδινίαν ἴλιγγόν τε ὑμῖν ἐμποιήσῃ παραφερόμενός τε καὶ ἐρωτῶν ἀήθεις ὄντας ἀποκρίσεων, εἶτ᾽ ἀσχημοσύνην ἀπρέπειάν τε ἐντέκῃ ἀηδῆ, δοκεῖ δή μοι χρῆναι ποιεῖν οὑτωσὶ τὰ νῦν ἐμέ, ἀνερωτᾶν πρῶτον ἐμαυτόν, ἀκουόντων ὑμῶν ἐν ἀσφαλεῖ, καὶ μετὰ ταῦτα ἀποκρίνασθαι πάλιν ἐμέ, καὶ τὸν λόγον ἅπαντα οὕτω διεξελθεῖν, μέχριπερ ἂν ψυχῆς πέρι διαπεράνηται καὶ δείξῃ πρότερον ὂν ψυχὴν σώματος.

Κλεινίας
ἄριστ᾽, ὦ ξένε, δοκεῖς ἡμῖν εἰρηκέναι, ποίει τε ὡς λέγεις.

Ἀθηναῖος
ἄγε δή, θεὸν εἴ ποτε παρακλητέον ἡμῖν, νῦν ἔστω τοῦτο οὕτω γενόμενον—ἐπί γε ἀπόδειξιν ὡς εἰσὶν τὴν αὑτῶν σπουδῇ πάσῃ παρακεκλήσθων—ἐχόμενοι δὲ ὥς τινος ἀσφαλοῦς πείσματος ἐπεισβαίνωμεν εἰς τὸν νῦν λόγον.]

sábado, 4 de dezembro de 2010

E Não Só Pompeia

The temple of Poseidon at Sounion is one of Greece's most romantic ruins. Immortalised by Byron, who carved his name into one of its columns, it is among the country's greatest crowd-pullers, drawing more visitors than any other site in the Attica area surrounding Athens after the Acropolis. But the 5th-century BC treasure is also a picture of neglect, its sandstone fortifications, once the glory of ancient Greece, a jumble of stones reinforced by metallic supports. For three years, a study painstakingly outlining the walls' renovation has lain on the desk of Dimostheni Ziro, the architect in charge of the department overseeing restoration of ancient monuments. Yet it has done little more than collect dust.

[..] In the past six months alone, more than 100 such studies have crossed Ziro's desk, all detailing the renovation of sites in need of urgent attention. "Most require interventions worth between €500,000 (£424,700) to €1m," he says. "But if you multiply that by 100, the money is simply not enough. We need help from Europe. My hope is that the ancient walls at Sounion will be included in the programme of EU-funded projects."

Across Greece, temples, towers, castles and ancient theatres have fallen victim to the ravages of time and neglect with some so severely damaged by earthquakes that they face collapse. Cuts in government spending have seen more museums close, nationwide, than at any other time.

But private initiative is making a mark, with individuals stepping in. "More and more people in Greece understand that in the absence of [official support] they have to play a role if they wish to safeguard the future of monuments in their localities," said Costas Carras, who runs Elliniki Etairia, a conservation society that has been likened to Britain's National Trust. "We raised 65,000 euro for the 4th century BC tower on Kea which only a few years ago had been standing to its full height – the money has been vital in saving a monument that literally faced collapse."

Ler artigo completo no The Guardian.

imagem: o templo de Súnion; fotograma de Megalexandros (1980), de Theo Angelopoulos

Brasil

mas gostamos de dar notícias destas.

No Alemão [...], o que todo o mundo vai dizer é que "antes" - ou seja, há uma semana - os traficantes gingavam por aqui, bem armados. E agora o que se vê é o Estado numa azáfama. Primeiro, são os emails que o povo foi mandando à polícia, e a polícia imprimiu e estendeu, tipo roupa na corda, com molas ("Parabéns a todos os policiais, heróis da nossa cidade, do nosso país!", e por aí fora). Depois é a tenda da Defesa Civil, que busca voluntários. Depois a carrinha da Ouvidoria (Secretaria de Estado do Trabalho e da Renda), e pelo meio de tudo isto polícia civil, militar, federal, e soldados de boina vermelha.

Quando de repente aparece a fachada do banco Santander (sucursal pioneira aqui), a AfroReggae fica por cima. É a mais influente ONG brasileira no mundo das favelas. Um graffiter pinta a porta, o que só por si entretém as crianças. Cada degrau anuncia uma coisa diferente (dança, circo, serviço social...). Empurrando a porta, há uma fila de gente deitada no chão, e estão todos a fazer ginástica. No canto, três miúdos jogam cartas. Por trás deles há três estantes. O painel de actividades anuncia uma "Antígona" em cartaz. 

fonte: Público

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

De novo Pompeia - infelizmente

Não gostamos de dar notícias destas.


"Terça-feira, desabou o muro que rodeia a Casa do Moralista, no dia seguinte tombaram dois ao longo da Via Stabiana, uma das principais ruas da cidade que em 79 d.C. foi soterrada por lava e cinzas do Vesúvio. 

Os desabamentos foram, no entanto, suficientes para reacender a polémica sobre a falta de apoio à preservação do local, mais audível desde que, a 6 de Novembro, ruiu a Casa dos Gladiadores, um dos edifícios mais importantes da cidade."

Nosso Penoso Benefício

Como todos os grandes pedagogos, Boorsch, ao andar de um lado para o outro da sala ou ao voltar-se para nós, era a "figuração", a actualização visível do seu tema. Mergulhou-nos nos três discursos existentes de Andócides, um advogado e retórico rebarbativo do século IV a.C. Quando eu e o meu companheiro nos atrevemos finalmente a perguntar se o Monsieur Boorsch não se importaria de nos fazer pastar em campos mais verdes — Demóstenes, talvez, ou os poetas —, a réplica foi humilhante. Qualquer idiota seria capaz de haver-se e até deleitar-se com a eloquência e o lirismo manifestos. Era precisamente um modelo medíocre, um formalista em tons de cinzento, que conseguiria pôr a nu as estruturas gramaticais, os recursos retóricos do antigo grego per se. Por isso ficámo-nos por Andócides e com aquilo a que Boorsch chamava os seus estratagemas infalíveis na declinação dos verbos irregulares, para nosso penoso benefício.

George Steiner, Errata: revisões de uma vida. Margarida Vale de Gato (trad.) Relógio d'Água (1997)



busto de Demóstenes

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Mad Men — Sobre o Significado Grego de «Utopia»

(nota explicativa: está-se a falar de Israel)

Pára Tudo:

A História da Guerra do Peloponeso de Tucídides, em tradução portuguesa, por Raul Rosado Fernandes e M. Gabriela P. Granwehr, vai ser lançada na loja do Museu Calouste Gulbenkian, dia 16 de de Dezembro, às 18h30.

Eu só tenho um comentário a fazer:
(vídeo roubado ao Miguel)

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Uma Reconstrução Possível do Fórum Romano

Origens do Planeamento Urbano

Foi Hipodamo, cidadão de Mileto, e filho de Eutifonte, quem inventou o traçado das cidades e delineou as ruas do Pireu. Adoptou um estilo de vida deveras original, a ponto de alguns considerarem que vivia de modo afectado, devido à sua farta cabeleira e ricos adornos, além das suas roupas simples mas quentes que usava não só no Inverno como no Verão, querendo ser considerado um especialista em todas as coisas da natureza. Foi o primeiro, entre os que não eram políticos, a tentar dizer algo sobre o melhor regime.

Aristóteles, Política II.1267b21-30
Vega, Lisboa: 1998. (trad.: António Amaral e Carlos Gomes)

[Ἱππόδαμος δὲ Εὐρυφῶντος Μιλήσιος (ὃς καὶ τὴν τῶν πόλεων διαίρεσιν εὗρε καὶ τὸν Πειραιᾶ κατέτεμεν, γενόμενος καὶ περὶ τὸν ἄλλον βίον περιττότερος διὰ φιλοτιμίαν οὕτως ὥστε δοκεῖν ἐνίοις ζῆν περιεργότερον τριχῶν τε πλήθει καὶ κόσμῳ πολυτελεῖ, ἔτι δὲ ἐσθῆτος εὐτελοῦς μὲν ἀλεεινῆς δέ, οὐκ ἐν τῷ χειμῶνι μόνον ἀλλὰ καὶ περὶ τοὺς θερινοὺς χρόνους, λόγιος δὲ καὶ περὶ τὴν ὅλην φύσιν εἶναι βουλόμενος)πρῶτος τῶν μὴ πολιτευομένων ἐνεχείρησέ τι περὶ πολιτείας εἰπεῖν τῆς ἀρίστης.]

Além disso, considera-se geralmente mais agradável e conveniente para todo o tipo de actividades a disposição das casas particulares no modo regular e recente por Hipodamo...
ἡ δὲ τῶν ἰδίων οἰκήσεων διάθεσις ἡδίων μὲν νομίζεται καὶ χρησιμωτέρα πρὸς τὰς ἄλλας πράξεις, ἂν εὔτομος ᾖ καὶ κατὰ τὸν νεώτερον καὶ τὸν Ἱπποδάμειον τρόπον...

Aristóteles, Política VII.1330b22-24
Vega, Lisboa: 1998. (trad.: António Amaral e Carlos Gomes)

Segundo os nossos testemunhos, Hipodamo desenhou ainda o traçado da nova cidade de Rodes e da colónia pan-helénica de Túrios.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Marxismo + Gregos + Cristianismo + Misticismo = Simone Weil

A parte do sobrenatural neste mundo é secreta, silenciosa, quase invisível, infinitamente pequena. Mas é decisiva. Prosérpina não acreditava que o seu destino se modificasse só por comer um bago de romã; e a partir desse instante o outro mundo foi a sua pátria e o seu reino.

Esta operação decisiva do infinitamente pequeno é um paradoxo que a inteligência humana tem dificuldade em reconhecer. Por este paradoxo se realiza a sábia persuasão de que fala Platão, essa persuasão por meio da qual a providência divina leva a necessidade a orientar a maior parte das coisas para o bem. A natureza, que é um espelho das verdades divinas, apresenta por toda a parte uma imagem deste paradoxo. Assim os catalisadores e as bactérias. Em relação a um corpo sólido, um ponto é infinitamente pequeno. Contudo, em cada corpo há um ponto que prevalece sobre toda a massa pois se for sustentado o corpo não cai; esse ponto é o centro da gravidade.

Mas um ponto suspenso somente impede uma massa de cair se esta estiver disposta simetricamente à volta dele, ou se a assimetria comportar determinadas proporções. O fermento só faz levedar a massa se lhe estiver misturado. O catalisador não age senão pelo contacto dos elementos da reacção. Do mesmo modo, há condições materiais para a operação sobrenatural do divino, presente neste mundo sob forma do infinitamente pequeno.

A miséria da nossa condição submete a natureza humana a uma gravidade moral que continuamente a atrai para o baixo, para o mal, para uma submissão total à força. «Deus viu que as ideias do coração do Homem tendiam sempre, constantemente para o mal». É essa a gravidade que leva o Homem, por um lado, a perder metade da sua alma, segundo um provérbio antigo, no dia em que se torna escravo*, e por outro lado a dominar sempre, segundo o termo empregue por Tucídides, em toda a parte onde tem o poder de o fazer. Tal como a força da gravidade propriamente dita, também esta gravidade tem as suas leis. Quando as estudamos, nunca conseguimos ser tão frios, lúcidos e cínicos como seria preciso. Neste sentido, e em certa medida, é necessário ser-se materialista.

Mas um arquitecto estuda não só a queda dos corpos como também as condições do equilíbrio. O verdadeiro conhecimento da mecânica social implica o das condições em que a operação sobrenatural de uma quantidade infinitamente pequena de bem puro, colocada no devido lugar, pode neutralizar a gravidade. Os que negam a realidade do sobrenatural assemelham-se verdadeiramente a cegos. Também a luz não luta, não pesa nada e é por ela que as plantas e as árvores crescem para o céu apesar da gravidade. Não se come, mas as sementes e os frutos que se comem não amadureceriam sem ela.

*nota para os curiosos: Od. 17.322-323.

Simone Weil, Fragmentos. Londres 1943.
in Opressão e Liberdade. Livraria Morais Editora, Lisboa: 1964. (trad.: Maria de Fátima Nunes).