sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Sobre a Grandeza da Imparcialidade de Homero

Em primeiro lugar, portanto, é de decisiva importância que o canto de Homero não passe em silêncio os vencidos, testemunhe tanto em favor de Heitor como em favor de Aquiles, e que, embora a vitória dos gregos e a derrota dos troianos estivessem irrevogavelmente predeterminadas pelo decreto dos deuses, isso não torne Aquiles maior ou Heitor mais pequeno, ou a causa dos gregos mais justa e menos justa a defesa de Tróia. Homero celebra esta guerra da aniquilação, já centenária no seu tempo, em termos tais que, em certo sentido — quer dizer no sentido da comemoração poética e histórica — desfaz a aniquilação consumada. A grandeza da imparcialidade de Homero não é uma objectividade neutra em matéria de valores no sentido moderno, mas antes uma liberdade perfeita em relação aos interesses particulares e uma completa independência em relação ao juízo da história, ao mesmo tempo que é tributária, em vez de o ser da história, do juízo dos interessados e da sua ideia de grandeza. A imparcialidade de Homero assinala o começo de toda a historiografia e não apenas da do Ocidente. Porque aquilo que entendemos por história nunca antes e em parte alguma existira, do mesmo modo que desde então não houve história que não tenha sido escrita pelo menos indirectamente segundo o exemplo de Homero. Encontramos a mesma ideia em Heródoto quando este diz que quer impedir «de serem relegados para o esquecimento grandes e maravilhosas acções, umas cometidas pelos helenos, outras cometidas pelos bárbaros» (I, I) — ideia que, como Burckhardt correctamente um dia fez notar, «nunca teria ocorrido a um egípcio ou a um judeu» (Griechische Kulturgeschichte, III, p. 406).

Hannah Arendt, A Promessa da Política (pg. 138-9)
Relógio d'Água, Lisboa: 2007. (trad.: Miguel Serras Pereira).

3 comentários:

  1. Diga-se em abono da imparcialidade de Homero que a Ilíada pode justamente ser designada pelo Canto de Heitor, talvez mais do que o Canto da Ira de Aquiles. Contudo, quanto a Homero iniciar a historiografia, inclusivé "não apenas a do Ocidente", deve dizer-se que tal não corresponde à verdade; o Próximo Oriente Antigo (POA) dá-nos vários exemplos de historiografia bem anterior a Homero. Se não se quiser ir aos Semitas do POA ou ao Egito, em que a historiografia foi altamente apologética, podemos sempre ficar pela Anatólia e ler, por exemplo, os Anais de Hatusilli ou as Gestas de Suppiluliuma. Isto para além de considerar Homero um historiador, coisa que parece compreensivelmente esticada; há coordenadas históricas em que Homero se move, é certo, recolhendo linhas várias de tradições vivas no seu tempo; e há um certo equilíbrio narrativo que dá espaço a vencidos e vencedores, em mais um exemplo de sabedoria grega, mas daí a Homero ter um propósito historiográfico vai uma certa distância.

    Em todo o caso, grato pela proposta de reflexão.

    João Paulo Galhano

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  2. Caro João Paulo Galhano,

    Muito obrigado pelo seu comentário. Pessoalmente, creio que a Hannah Arendt o que interessa e a leva a chamar a Homero o «pai da História» é a imparcialidade dele, que permite, como bem referiu, que a 'Ilíada' seja quase o Canto de Heitor, mais que o de Aquiles. A ideia de História, em Arendt, aparece particularmente ligada a esta virtude, que ela nega aos povos vizinhos dos gregos. Reconheço, porém, que nunca li as outras obras que menciona. Aproveito até para lhe perguntar: estão acessívies em português (o que duvido)? Se não, que edição recomenda? Quanto a Homero ser considerado um historiador, creio que o mais importante não é tanto se ele o foi de facto (a começar peça questão da historicidade da própria guerra em causa), mas sim o ele ser entendido pelos antigos enquanto tal: a 'Ilíada' era, em boa medida, encarada como documento histórico, apesar da consciência de que se tratava de uma reconstrução poética dos acontecimentos. Por fim, Arendt valoriza também a ideia de a História (o registo do passado) ser feito com os olhos no futuro: como diz Helena na 'Ilíada', sofremos para que nos venham a cantar. O guerreiro precisa do poeta, como explica Cícero no 'Em Defesa do Poeta Árquias'. Esta consciência da luta contra o esquecimento que tudo engole, da precaridade dos feitos humanos, que, por isso, precisam de ser ecoados, amplificados, louvados, em suma: cantados, — isto está também presente na historiografia dos outros povos? Na minha ignorância, calo-me sobre a questão, porque não sei. Procuro apenas tornar mais claro o pensamento de Arendt, identificar exactamente o que são as premissas da ideia dela de História, para melhor entender a sua afirmação de Homero como o primeiro dos historiadores e a consequente negação do valor de todos os exercícios anteriores nos países circundantes. Mais uma vez, porém, obrigado pela sua leitura atenta do texto: é bom saber que os nossos posts são lidos e pensados.

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  3. Quanto aos textos historiográficos háticos, ou menos correctamente chamados hititas, pode encontrar alguns no ANET (J. B. Pritchard, 1969)ou, em português, em CARREIRA, José Nunes, "Historiografia Hitita", Lx: Ed. Colibri, 1999. De José Nunes Carreira temos também "História antes de Heródoto",Lx: Ed. Cosmos, 1993.

    Quanto à imparcialidade em história, parece-me que transcende a dicotómica abordagem vencidos-vencedores, talvez adoptada em resultado da herança de um certo enviesamento novecentista acerca das temáticas históricas, a dos acontecimentos e essencialmente político-militar. Mas seria decerto interessante estudar o filo-helenismo de Arendt.

    Cumprimentos e continuação de bom trabalho de divulgação da Antiguidade Clássica.

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