Gonçalo M. Tavares, na entrevista à Ler aqui já citada, interrogava-se sobre porque associamos tanto a ideia de narrativa à de personagem, explorando, como alternativa, o carácter narrativo de um pensamento: «O pensamento é a estória de uma ideia. Alguém que pensa está a ter uma ideia que desenvolve ao longo do tempo. Portanto, essa ideia é como se fosse uma personagem que se vai transformando. Tem até opositores. A personagem-ideia tem sempre um inimigo que é o contra-argumento. Pensar é uma narrativa». Quem quer que já tenha lido ainda que apenas os primeiros capítulos da Fenomenologia do Espírito de Hegel não pode senão concordar. Porém, se aqui recupero esta sugestão de Gonçalo M. Tavares, não é tanto a propósito do filósofo de Iena, mas sim por causa de Platão.
Acabei há pouco o Lísis, na tradução, já não disponível, de Francisco de Oliveira, editada em 1980 pelo então Instituto Nacional de Investigação Científica, cujo fundo está agora com a INCM. Com a leitura do Lísis concluí a minha viagem pelo corpus platónico, com os seus 34 diálogos, a Apologia e as treze cartas atribuídas ao filósofo. Exceptuando o Banquete, com que estou assaz familiarizado, por o ter estudado à cadeira de grego em dois semestres (primeiro em Portugal, com a tradutora, depois em Bristol, em Erasmus), li — ou, num ou noutro caso, mas não muitos, reli — todos os restantes este ano que agora se finda. Em abono da verdade, a maioria, visitei-os agora já neste semestre, quer por causa de um dos projectos que a Origem está a desenvolver e que deverá ver a luz do dia, se tudo correr bem, lá para Abril próximo, quer por causa da minha tese, que a isso me convidava. Assim se explicam as numerosas citações de Platão que têm pululado neste blogue nos últimos meses.
Vários dos diálogos que nos chegaram são tidos por espúrios, isto é, não-autênticos, por importantes platonistas. Alguns, como o Teages ou o Minos, são inclusive considerados, por consenso alargado, falsos, sendo o caso tanto mais grave quando nos debruçamos sobre as cartas, as quais são quase unanimente desqualificadas. Nunca estudei a fundo a questão, que agora me atrai, mas, enquanto leitor apenas, não tenho grandes queixas: a verdade é que o corpus platónico, na sua totalidade, é de uma coerência extraordinária. Diálogos menores e rotulados apressadamente de espúrios, como, por exemplo, o Segundo Alcibíades, são, na realidade, pequenos chefs-de-oeuvre, que iluminam aspectos importantes da filosofia platónica (outro exemplo: Os Amantes, também conhecido por Os Rivais, como o Toy Story 1). O meu conselho é, pois, a quem se lance numa empresa semelhante, que, sem quaisquer pruridos, leia cada um dos diálogos: os Antigos, apesar de tudo, deveriam saber algo sobre os textos de Platão, tanto mais que, caso (quase) único, nos chegou a obra completa do autor, e até outros diálogos que, esses sim, já desde Alexandria são classificados de não-autênticos.
Os diálogos platónicos serão, muito possivelmente, uma das ilustrações possíveis mais perfeitas da ideia avançada por Gonçalo M. Tavares, sendo que Platão tem uma predilecção por narrativas abertas. Não sei se terei algum dia lido a obra completa de um autor, mas não me arrependo do esforço investido neste caso: Platão é, indubitavelmente, um dos maiores escritores gregos — aliás, universais. Será difícil conceber uma melhor introdução à filosofia. Longe de tratados analíticos, como encontramos no seu discípulo, Platão brinda-nos, o mais das vezes, nos textos dos seus chamados primeiro e segundo períodos, com deliciosas narrativas onde, por entre as frestras dos argumentos, se entrevê o quotidiano ateniense com a mesma palpabilidade com que um escritor realista pinta detalhadamente um salão burguês. Há pormenores de uma subtileza desconcertante: indirectas, subentendidos, jogos de palavras. E depois há toda a capacidade imagética de Platão que, sem alcançar, claro, a ousadia de Ésquilo, desenvolve frequentemente metáforas tanto mais surpreendentes e inesperadas quando consideramos que estamos perante um texto que é fundamentalmente filosófico, mau grado tudo.
Apesar do fascínio que exercem sobre nós os seus interlocutores, os verdadeiros protagonistas dos textos são claramente as ideias neles desenvolvidas — e o espantoso é que isto funciona: as palavras de Gonçalo M. Tavares não exprimem uma hipótese a averiguar, mas sim uma forma totalmente legítima de conceber, com igual rigor, o género narrativo, com que, já há dois milénios e meio atrás, Platão experimentava. Pegue-se, por exemplo, no Teeteto (um dos meus favoritos). O objectivo é definir o que é o conhecimento. Arrisca-se uma hipótese, mas de imediato surgem uma série de opositores, que é necessário combater (Sócrates recorre com alguma regularidade à metáfora da luta, do boxe e do pancrácio); são refutados, mas depois a própria definição, que lhes resistiu, prova-se, pelos seus próprios termos, débil, e é abandonada, mas não totalmente: sobre ela se constrói uma nova tentativa de definição do conhecimento, e renovam-se as hostilidades. O leitor interessa-se genuinamente pelo herói: a ideia. No fundo, a maioria dos diálogos platónicos são romances de aventuras, com a vantagem de, o mais das vezes, nos obrigarem a continuar, por nós próprios: o livro abre-se. Platão declara-o explicitamente no Filebo, ao não terminar o diálogo. Sócrates, depois de uma grande investigação em conjunto, conclui a tese que desenvolveu com Protarco; este concorda, o diálogo parece, para todos os efeitos, encerrado, e eis senão que Protarco: falta um pormenor Sócrates — por certo não te escusarás a no-lo elucidar. e pumba: fim do diálogo.
Platão, de facto, manifesta uma invulgar consciência literária: os artifícios a que recorre são de uma curiosa modernidade. Temos diálogos que são relatos em terceira ou quarta mão, se necessário (Banquete); e até um texto escrito dentro de um texto escrito (Teeteto), ou uma crítica à escrita num diálogo oral que, porém, nós estamos a ler, escrito (Fedro). E depois há o fantástico humor platónico (aprendido da ironia socrática?), de que, infelizmente, parece-me, pouco se fala. Que o jogo/brincadeira era uma coisa séria, sabia-o bem Platão, que não teme afirmar que mesmo os deuses gostam de uma boa piada. O Eutidemo é um diálogo, especialmente perto do fim, engraçadíssimo, mas até O Político é classificado por Stanely Rosen, um dos mais atentos leitores de Platão, como uma elaborada piada barroca (o que, parece-me, se aplica com igual propriedade à segunda parte do Parménides). A forma como Sócrates refuta alguns dos seus interlocutores não pode deixar, por vezes, de suscitar umas boas gargalhadas (e eu normalmente não me rio alto). O Crátilo, para quem sabe grego, é um gozo, com as etimologias surreais inventadas pelo personagem homónimo. Ou seja: não só é possível ter uma narrativa em que o protagonista é a ideia: o nosso personagem pode inclusive ser verdadeiramente cómico. É concebível pensar, então, tragédias e comédias de ideias: falta quem escreva as tragédias.
Dito isto, vão ler Platão.
imagem: manuscrito da República, tradução latina (1401).
(Curioso a nota do Lísis. Li-o precisamente ontem.) Sobre o "pensamento enquanto narrativa", Ulrich do Musil. Ou melhor dizendo, é algo generalizado n'O Homem Sem Qualidades, apesar de ele, mais do que qualquer outra personagem no romance, encarnar precisamente essa "história do pensamento", neste caso mais concretamente na ortografia que eu desgosto mas que neste caso serve, "estória do pensamento". É nestas alturas qu mais faz sentido a geneologia literária que leva de Sócrates(/Platão) ao Musil, e deste ao GMT. (Mas mantenhamos as nossas perspectivas intactas.)
ResponderEliminarLembrar-te-ás certamente deste livro, que infelizmente ainda não tive o prazer de ler. Ulrich é a personagem perptuamente em tentativa, é o ensaiística, ou o ensaiólogo: uma espécie de Nietzsche levado à sua mais-verdade (ao contrário da Clarisse). As ideias, como os sentimentos, são sempre Uma ideia, é sempre A ideia, mas que se desenrola em combate na mente de cada personagem, e por entre personagens no interior do livro (o HSQ nunca poderia ser acabado precisamente porque o pressuposto é semelhante ao dos diálogos aporéticos). Que é essencialmente um diálogo platónico: até às consequências últimas de por vezes a estrutura narrativa se assemelhar a uma mera moldura (mas Musil, como Platão, triunfa sobre tão paroquiais condescendências).
Há um capítulo fabuloso no terceiro volume (dos capítulos retirados) em que uma personagem ganha acesso de maneira um pouco desonesta aos pensamentos mais íntimos de Ulrich, e se espanta por este para si mesmo ser "tão vacilante": afinal de contas, o Sócrates que em todos os diálogos parecia conduzir a conversa de maneira magistral, é humano e duvida: não há uma chave-mestra do pensamento, uma Ideia das Ideias que domina o diálogo, apesar do modo como as restantes personagens ou se submetem intelectualmente a este homem, ou são racionalmente obrigadas a submeterem-se.
Essa revelação surge-me semelhante ao primeiro momento na leitura dum diálogo de Platão em que nos apercebemos que Sócrates realmente pode estar a falhar logicamente —em oposição a ser Platão a estar a falhar logicamente: não é por falha deste que Sócrates falha (Platão tem de estar consciente do erro de Sócrates, ou temos pelo menos de suspeitar isso), é porque Sócrates como Sócrates é... mortal— e, quer leve mesmo assim a melhor sobre os seus adversários (por exemplo, neste mesmo Lísis), quer triunfe a aporia (por exemplo, no Protágoras), nos apercebemos que a ideia é necessariamente uma mancante: é humana, e como humana falta-lhe algo. (Pormenor interessante: Ulrich é matemático e pugilista.)
Quando me foram encaminhadas por um colega estas suas linhas eu não pude acreditar no que lia! Portanto, não posso deixar de as ler sem uma profunda ironia. Como é suposto que você, um aluno de Clássicas, ainda para mais um "bom" aluno (aspas propositadas, já que nesta vossa altura qualquer aluno tem o mínimo de 15 valores até de olhos cerrados), não ter lido Platão, e admitir de uma forma tão clara que não o fez?
ResponderEliminarQualquer sofista saberá urdir palavras sem fim, falsas moralidades, debitar o conhecimento roubado nos ombros de gigantes, mas não vejo aqui nada muito diferente daquilo que Luciano criticava em "Πρὸς τὸν ἀπαίδευτον καὶ πολλὰ βιβλία ὠνούμενον". Eu próprio li (perdão, estudei, para que se evitem críticas infantis) todas as obras de Platão em menos de três meses, e nem por isso me atrevo a andar pelas ruas e departamentos de Coimbra a gritar aos quatro ventos que o fiz. Plutarco, Varrão, Aulo Gélio, Cícero, Quintiliano, Menandro, todos eles criticavam, de uma ou outra forma, essa petulância, e se consegue escrever 100 linhas sobre temas mais que batidos, seria muito mais interessante era que tivesse alguma humildade na forma como o faz.
Não há a mínima glória em ter um olho em terra de cegos, e deveria sabê-lo tão bem como eu. Se incita outros a lerem Platão, eu posso dizer-lhe que ele certamente ficaria desapontado com as suas hórridas palavras.