segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

O Nascimento da Filosofia


Giorgio Colli, O Nascimento da Filosofia
Edições 70, 2010.
Artur Morão (trad.)


Giorgio Colli tem os louros da fama pela filosofia graças ao seu trabalho relativo a Nietzsche, e este opúsculo denuncia esse contacto íntimo. O Nascimento da Filosofia não é só uma referência directa à Origem da Tragédia (pensada em italiano como La Nascita della Tragedia, sendo que o nome deste volume é La Nascita della Filosofia como aliás o é o nome do muy-humilde blog em cuja página isto ledes)  mais que isso, grande parte do livro é um combate directo com Nietzsche, com o apolíneo/dionisíaco pensados enquanto aparência/realidade ou paz/violência.

Porque Colli quer que a batalha seja de novo travada na filosofia que foi travada na tragédia. Apolo e Diónisos terão de se bater para dar origem à maravilha que é a filosofia, mas se na tragédia Diónisos triunfa, na filosofia será Apolo. Mas não o Apolo de olhar calmo. "A Grécia temeu Apolo mesmo antes de ele nascer" é o início do grande livro Ulisses e a Mente Colorida de Pietro Citati (Cotovia, 2005), onde o apadrinhamento por parte de Apolo é revelado tal como o deus: Apolo, etimoligizado por πόλλυμι apollymi, destruir totalmente. Aqui o Nascimento da Filosofia nascerá sob a mesma égide.

É um início mitológico, portanto, mas firmemente vertido num pensamento helénico: não há aqui espaço para “raízes orientais” ou “sabedoria egípcia”. Elas existiram, sim, mas aquilo que aconteceu na Grécia foi algo de tão fundamentalmente diferente que não pode ser explicado por segundas vias. É aí, na Sacrosancta Hélade, que o pensamento mitológico e religioso começou a escorrer e a solidificar-se sobre ele mesmo como a cera duma vela, até que olhamos de volta, e os materiais são os mesmos mas os resultados são irreconhecíveis como a linguagem dum poema o é da mesma linguagem num discurso político.

O oráculo é a primeira palavra. O sábio é aquele que recebe a palavra do deus. Daí que sempre o pensamento grego arcaico não possa ser separado da religião e da capacidade profética. Podemos perceber daqui a razão para Giorgio Colli ter apelidado à sua (incompleta) tradução dos vulgarmente-chamados Filósofos Pré-Socráticos “La Sapienza Greca” (A Sabedoria Grega) e nela ter incluído textos hoje tão não filosóficos como os testemunhos dos mistérios órficos e de Eleusis. A sophia não tem portanto nada que ver com o cisma que, por exemplo, Leo Strauss verá entre Razão e Revelação, e que Tertuliano tão celebremente imortalizou em Quid ergo Athenis et Hierosolymis? O que é que Atenas tem que ver com Jerusalém?

Quando o grego recebe o oráculo, tem consigo a palavra do deus. Mas nunca falará claramente o deus: que, como a natureza (que, a natureza), ama esconder-se. Heraclito é portanto uma espécie de hierofante, de poeta-profeta que lança o enigma – a palavra divina – para junto dos mortais para os quais a prova de fogo sapiencial será a sua capacidade de desvendar o enigma para compreender o oráculo, cuja verdade acaba por ser uma espécie de afirmação dionisíaca nietzschiana, esse oráculo enigmático que parece que existe mais enquanto contradições absurdas do que enquanto desafio humanamente concebível, e cuja portanto solução sempre diz a mesma coisa: Sim! ao mundo, Sim! à submissão à sabedoria do deus através da capacidade de adivinhar (Édipo sempre será o santo padroeiro da Filosofia: desvendar o enigma é ao mesmo tempo o maior culto possível: mas que resultado poderia advir do culto supremo ao Deus que Tudo Destrói? [A explorar: Édipo enquanto Judas, ou o amor-sabedoria enquanto traição de si]).

Adivinhar é portanto desvendar enigmas, que são oráculos. Heideggerianamente lido, a Verdade (cuja palavra grega é Alêtheia, desvelamento) é o deixar cair a trama da palavra e da linguagem humana, é a capacidade de cortar o nó górdio através do intelecto, para que a Sophia divina possa soar. Esse agir do intelecto é problemático: mas o que transpira é que não é apenas um poder humano que lhe traz acesso. Para o próprio logos parece ser necessário esperar pelo deus que ilumine o espírito mortal com o seu raio para que se lhe tenha acesso. É uma espécie de simbiose perfeita entre as mesmas Razão e Revelação, na medida em que o deus permite ao humano que o humano caminhe na direcção dele. O deus dá o fiat, e o humano faz. Quem é amado pelo deus tem acesso intelectual à sabedoria dos seus oráculos (ou, apoiando-me em Lutero: “desvendo oráculos portanto sou amado pelo deus”). Mas lembremos: a profecia, segundo um passo do Fedro muito referido e citado por Colli, a capacidade profética, é uma mania, uma loucura concedida por Apolo para que os humanos tenham os melhores dos bens. O deus enlouquece aqueles a quem ama. (Ouçamos porém e ainda duas sentenças antigas: “morrem cedo aqueles a quem os deuses amam” (vide) e “aqueles a quem os deuses querem destruir, enlouquecem antes”.)

Estes adivinhos, estes Heraclitos e Parménides, Édipos e Homeros, são os poderosos amantes do deus, que não toleram nada a não ser o amor absoluto, que como gregos terão de ser excelentes no amor, pela concepção grega de que não vale a pena viver se não se é o melhor no combate da sua escolha: para estes o combate é o maior de todos, a sophia, e falar com o deus significa que o outro não fale — não pode, o deus supraabunda de excelência, e o igual, como diria Platão, ama o igual. Os humanos são aquilo que os deuses não poderão jamais ser, invejosos, mas obrigarão o deus a optar por eles e a destruir o adversário — ou a serem eles mesmos destruídos. São duelos de sagacidade, cuja arma é o intelecto, cuja recompensa é a sabedoria, cuja pena é a morte.

Nota-se que este é o pico, este saudosismo absoluto por aquele tempo em que a sabedoria era ainda viva e o deus era o terceiro que caminhava junto aos sábios-adivinhos que se apunhalavam com lâminhas lógicas. Mas também os deslindadores de enigmas se transformam (pois a corrupção toca até a Sacra Hélade, não o diz Colli mas suspeitamos). Diz ele ainda & porém que este é dos “fénomenos culminantes da cultura grega, e um dos mais originais.” Compreendemos: a relação com a palavra divina terá de existir, embora porém fora duma relacção de resolução de enigmas, onde quer que o humano se bata com o divino. Mas é da Grécia que há filosofia.

“Quando o fundo religioso se esmoreceu e o impulso cognoscitivo já não precisa de ser estimulado por um desafio do deus, quando uma competição pelo conhecimento entre homens já não requer que eles sejam adivinhos, eis que aparece um agonismo simplesmente humano.” Os homens continuam a combater, mas deixa de estar em jogo o acesso místico ao divino, deixa de estar em jogo a morte. A dialéctica formal é um mera brincadeira, uma progressão mínima de refutação em refutação. Não se apercebem, mas o deus já morreu aqui, já morreu quando o ser humano se vira para o outro ser humano e deixa a imagem do deus presente apenas na sua ausência. Como poderia dizer o idealismo, vinte séculos mais tarde, o deus desapareceu tão-só porque os humanos deixaram de o contemplar e de O olhar no Seu rosto de fogo.

Os dialécticos — Sócrates é assim o primeiro podre, a gangrena dum mundo — poderão porém muito: poderão conjurar todo o poder de Apolo para si, recrutarão o deus-que-acerta-ao-longe até às últimas consequências. A dialéctica serve precisamente para destruir as opiniões erradas. São métodos de conflicto que permitem desmontar através de recursos lógicos aquilo que o adversário trouxer. Mas qualquer pessoa que leia os chamados diálogos aporéticos de Platão poderá ter a intuição bastante de que a dialéctica, o método socrático, nada pode construir, pode apenas deitar por terra. Se o adversário anima uma ideia, logo lhe será provado que essa ideia se contradiz em si mesma — o sentido paradoxal do enigma heraclitiano há muito perdido, mas não nos faz lembrar Colli das tentativas risíveis por parte de certa filosofia analítica que reduz Heraclito (e outros) a lógica algébrica e o proclama falso porque auto-contraditório? — o que poderia resultar nas mãos de alguém com convicções firmes e com uma sabedoria a defender: o paradigma disso é Zenão, que possui a sabedoria do seu mestre Parménides, mas usa ainda assim da dialéctica (os seus paradoxos) para “demonstrar” a falsidade da oposição. Mas isso é abrir o jogo àqueles que não têm a sabedoria: baixar a guarda da sabedoria até que um dialéctico mais forte surja em cena.

Os Sofistas, autênticos semi-deuses, poetas da obliteração, não terão esses pruridos éticos nem esse pudor religioso: abrirão brechas e explodirão a sabedoria por dentro: não se limitarão a destruir as afirmações erradas, mas todas elas serão alvo da sua Palavra de Morte: Nada existe. Se algo existe, não pode ser conhecido. Se pode ser conhecido, não pode ser comunicado — Górgias é o novo hierofante, que arranca a sua coroa à cabeça ensanguentada do seu predecessor.

Daqui para a frente é outro mundo. Já não temos sábios. Colli refere-se frequentemente àquelas alturas em que Platão suspira saudosamente pela “idade dos sábios”, ao passo que ele e os seus contemporâneos não têm mais que filosofia, um amor por uma sabedoria que não há-de chegar nem pode chegar. A dialéctica tornar-se-á solipsística ou demagógica e começarão a transpor a sua arte para o domínio da política (renegando assim o que ainda poderia haver de sensato na práctica da theologia): assim nascerá a retórica, que pede a sua confirmação nem ao deus, nem ao adversário, mas sim às massas. A alternativa é a manutenção da índole filosófica desta retórica literária através da transposição em modelo escrito da reflexão sapiencial. Platão é assim o primeiro que assume a literariedade dos seus escritos, que já não é um sábio, não é um sofista, não é um orador, é um filósofo. Mas desiste da sophia, tem de desistir da sophia para poder escrever seja o que for: em última instância tem de desistir do próprio deus.

Porque se há mau-da-fita neste livro, para além dos sofistas, é a própria escrita. Faz portanto todo o sentido que, tudo o que nele é dito não obstante, haja uma recuperação subreptícia constante da ideia das doutrinas não-escritas platónicas. É então um livro problemático por muitas razões, especialmente, e aí posso notá-lo por mais familiaridade, nas secções adereçadas a Platão. É além de tudo perigoso, e não só por cair no mesmo erro da Origem da Tragédia (da qual Willamowitz se queixou, anos mais tarde da sua retumbante crítica, que era na realidade “mais filosofia que filologia”). Aqui Giorgio Colli cai no mesmo erro, ou melhor dizendo, na mesma particularidae: Nascimento da Filosofia, talvez, mas apenas na medida em que a ontogénese possa reproduzir a filogénese. Mais que uma descrição dos princípios, é um bater-se das críticas religiosas e relativistas, com triunfo anunciado das últimas para prejuízo da humanidade. Nesse sentido é perspicaz, mas não se pode fluctuar quando alguém bebeu já o mar inteiro. Tudo isto dito, recomendo àquelas pessoas que já tenham algum interesse vincado na época grega arcaica e no pensamento de nietzsche: como foi sendo visto, o jogo de ideias desses dois campos é constante (e o verdadeiro interesse do livro), mas tal signiica que acabe por não ser jamais uma verdadeira introdução, mas sim uma perspectiva religioso-filosófica sobre este brilhante período da filosofia.

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