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quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Os Bárbaros

sobre a imagem

[...]
Mas, ai! a nossa raça, sem divino, vagueia na noite,
E vive como no Orco. Presos só ao próprio labor,
Na forja bramante cada um se ouve só a si próprio, 
E com braço possante muito trabalham os bárbaros,
Sem descanso, mas sempre e sempre estéril,
Como as Fúrias, é a labuta destes pobres.
[...]

Hölderlin, O Arquipélago in Hölderlin. Poemas
Instituto de Cultura Alemã de Lisboa: 1945. (trad.: Paulo Quintela)

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Sócrates e Alcibíades

Socrates finds his student Alcibiades at heterai, de Henrik Siemiradzki.
«Porque amas tu, santo Sócrates,
Este jovem sempre? Não conheces nada maior?
Porque olha com amor,
Como pra os Deuses, tua vista para ele?»

Quem o mais fundo pensou é que ama o mais vivo,
Quem olhou fundo pra o mundo, entende excelsa juventude,
E os sábios inclinam-se
Ao fim às vezes pra o Belo.

[ »Warum huldigest du, heiliger Sokrates,
Diesem Jünglinge stets? kennest du Größers nicht?
Warum siehet mit Liebe,
Wie auf Götter, dein Aug' auf ihn?«

Wer das Tiefste gedacht, liebt das Lebendigste,
Hohe Jugend versteht, wer in die Welt geblickt,
Und es neigen die Weisen
Oft am Ende zu Schönem sich.]

Hölderlin, Poemas
Instituto de Cultura Alemã de Lisboa, Lisboa: 1945. (trad.: Paulo Quintela)

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Aos Nossos Grandes Poetas

[legenda]
As margens do Ganges ouviram do Deus da alegria
O triunfo, quando do Indo conquistando tudo
Vinha o jovem Baco, com vinho
Sagrado acordando os povos do sono.

Oh acordai-os, Poetas! acordai-os do sono também,
Os que inda dormem, dai-nos as leis, dai-nos
A vida, triunfai, Herósi! Só vos
Tendes direito de conquista, como Baco.

[Des Ganges Ufer hörten des Freudengotts
Triumph, als allerobernd vom Indus her
Der junge Bacchus kam, mit heilgem
Weine vom Schlafe die Völker wekend.

O wekt, ihr Dichter! wekt sie vom Schlummer auch,
Die jezt noch schlafen, gebt die Geseze, gebt
Uns Leben, siegt, Heroën! ihr nur
Habt der Eroberung Recht, wie Bacchus.]

Hölderlin, Poemas (de 1798, este)
 Instituto de Cultura Alemã de Lisboa, Lisboa: 1945. (trad.: Paulo Quintela)

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Soph. Ant. 354-356 - II

[continuação deste post]
Ora o ateniense do século V a.C., olhando em seu redor, não podia senão considerar que, no seu tempo, sob a batuta de Péricles, o Homem, e com ele a πόλις, e a πόλις, e com ela o Homem, haviam atingido um esplendor absolutamente único (o Parténon estava a ser construído então), uma comunhão justa, que atinge a sua expressão máxima na célebre Oração Fúnebre de Péricles. Como podia o Homem não ter orgulho, Stolz, na sua cidade, construção (em todos os sentidos, também no físico) sua? O grande erro de Creonte, do ponto de vista ético, não do ponto de vista da estrutura da tragédia, é não a ofensa aos deuses — porque dessa não está consciente e é basicamente sincero na sua piedade (não temos aqui tempo de explicar a afirmação) — mas a negação da democracia na figura de Hémon, é negar a cidade aos seus, alienar a πόλις, que se torna coisa estranha ao cidadão, divorciá-los. O orgulho grego, face aos persas, era, como se vê na tragédia de Ésquilo, a certeza de não serem escravos de ninguém (e Creonte, de forma sintomática, chama indirectamente δοῦλος, escrava, a Antígona no v.479), mas livres, porque sob a Lei, em cuja feitura, no caso ateniense, todos participavam (a vitória de Salamina, celebrada na peça de Ésquilo, é aliás crucial para a instauração da democracia na cidade). O Humano é comum: a poesia era representada no teatro de Diónisos e nos simpósios cantavam-se os versos dos poetas; os filósofos discutiam na ágora e nas palestras; as leis eram feitas na Ecclesia, a Assembleia, aberta a todos os cidadãos.

E o Homem contemplou tudo isto, e viu como tudo era bom. E sentia orgulho (Stolz), tanto mais que conseguira tudo isto por si mesmo, ἐδιδάξατο, «ensinou-se» (ou, numa leitura bem mais rara, mas que a minha edição do texto grego da Cambridge, por Mark Griffith, regista: «they taught one another» — de novo a ideia da comunidade, da πόλις). Não há aqui um Prometeu que tenha educado o Homem: ele descobriu tudo sozinho. Como o escravo hegeliano de Kojève, a Natureza ofereceu-lhe resistência, ele trabalhou-a, e, nas coisas que produziu que estão fora de si, encontrou, reflectido, o seu eu, e acha por elas a certeza de si mesmo.

Mas a ambiguidade do conhecido δεινότερον (o mais assombroso, nos dois sentidos: de causar espanto/admiração e de inspirar medo) do começo do Canto é transferida também por Hölderlin para Stolz. O orgulho, de facto, tanto pode ser um sentimento profundamente positivo (um reconhecimento do valor de algo em que de certa forma tivemos parte, e cujo sucesso, por isso, nos deixa felizes), como, por exemplo, na tradição cristã, um pecado, ou, transferindo esta carga negativa para o mundo grego, e sem equiparar de forma alguma as duas realidades, uma hybris. Níobe, personagem com que Antígona, a um dado momento e por outras razões, se compara, é castigada precisamente porque se vangloriou, orgulhosa, da sua prole.

Podemo-nos perguntar até que ponto o orgulho de governar cidades («städtebeherrschenden Stolz»), no seu pior sentido, não é precisamente a falha, hamartia, que condena Creonte. Neste contexto, seria bom revertermos à nossa sugestão de traduzir beherrschen não por governar, o seu sentido vulgar, mas literalmente por dominar. A πόλις é confundida com o οἶκος, a casa (o domínio próprio do senhor, que impõe a sua regra), e isto não é apenas uma metáfora: Polinices é simultaneamente inimigo político de Creonte e seu sobrinho; os dois planos misturam-se, e a sensatez aconselharia a que, num caso destes, o rei não se pronunciasse. Creonte, para provar que não confunde as duas esferas, acaba por exagerar numa, a política (com isto não pretendo resumir o conflito em Antígona a este exagero, tal como ele não pode ser reduzido à obstinação de Antígona).

Note-se como, na tradução do adjectivo por Hölderlin, do ponto de vista etimológico, νόμος, a Lei, é substituído por Herr. O alemão é suficientemente ambíguo para que o possamos ler das duas maneiras, com boa vontade, mas o confronto com o grego deixa a nu os jogos do Poeta, que captura assim toda a ironia que se diz tão própria dos coros sofoclianos. A mesma expressão, na versão mais rica de Hölderlin, tanto pode designar, como vimos, um ímpeto íntrinseco ao Homem, partilhado, como o abuso hybrístico dele por um só. Mas é de fazer a pergunta mais séria, e fundamental para a compreensão da tragédia como um todo: é Creonte que abusa desta ὀργή ou, pelo contrário, ela é, em si mesma, um desafio aos deuses? Em suma: é a πόλις uma hybris?

Os deuses parecem de facto manifestar nalgumas tragédias um salutar desprezo pelas instituições humanas, de que acabam fazendo pouco: caso paradigmático disso serão As Bacantes, de Eurípides. Não deixa de ser estranhamente macabro, aliás, que o coro na Antígona, literalmente do princípio (do párodo) ao fim (ao canto quinto), evoque o der kommende Gott, o deus a caminho, Diónisos, pedindo-lhe que venha até à cidade — e esta acaba, uma vez mais, destruída, mesmo se o deus, aparentemente, nunca chega. Noutras peças, pelo contrário, são os deuses que tomam a iniciativa de fundar instituições para o Homem, como Atena, no final da Oresteia, ela que cria o Areópago, o primeiro tribunal da cidade. Esta não parece ser a perspectiva do coro, que, como vimos, assevera que a organização política é uma coisa aprendida pelo Homem por si próprio, sem ajuda. É uma perspectiva que faz todo o sentido: afinal, que podem os deuses perceber da cidade? O Olimpo não é uma πόλις (não tem gente para isso, diria Aristóteles) e entre os deuses, por antropomórficos que sejam, as questões não se põem nos mesmos termos que entre os homens, que estão abandonados na aprendizagem de como lidarem consigo (recordemos aqui o poema final da Bíblia do Poeta, A Rosa do Mundo, intitulado Testamento, de Ewa Lipska [trad.: Aleksandar Jovanovic]: «Após a morte de Deus/ abriremos o testamento/ para saber/ a quem pertence o mundo/ e aquela grande armadilha/ de homens»). Os deuses são antes uma família (literalmente), o que, dentro da dinâmica de binómios da peça, os opõe directamente à πόλις (e ao lado de Antígona, claro).

E, todavia, sabemos que os deuses protegem a cidade (isso é-nos dito no párodo) e que tem de haver alguma verdade na intuição desse teólogo maior da Grécia, Ésquilo. Qual o interesse dos deuses em zelarem pela πόλις? Corro o risco de, chegado ao final desta especulação, ter percebido que teria sido melhor concordar com Protágoras e dizer que afinal nada posso saber sobre os deuses, pois «muitos são os obstáculos desse saber: a obscuridade e a brevidade da vida humana» [DK B4] (trad.: Ana Alves de Sousa e Maria Vaz Pinto). Parece-me, contudo, que este cuidado da parte dos deuses se deve tão somente ao facto de também o culto depender sempre de uma comunidade (não necessariamente a πόλις, é certo; pode ser a família, como na Antígona — mesmo se a coisa é mais complexa, mas não há aqui espaço para isso). Para os deuses, porém, a hierarquia é clara: a πόλις só pode subsistir enquanto assegurar o culto daqueles que a permitem. É por isso que a cidade, para ser «alta» [ὑψίπολις, v.370] (elevada? honrada?), tem de respeitar as leis dos deuses [368-9]. Isso é condição de possibilidade da sua prosperidade. A cidade não será, per se, hybrística, mas corre o perigo latente de, como no caso de Antígona, assistir à colisão das duas esferas, a dos deuses e a da cidade.

Poder-me-ão acusar de anacronismo: o grego não conseguia conceber o conflito cidade/deuses. Na Grécia, a religião tinha aliás um carácter cívico e político: a boa cidade respeitava os seus deuses. Mas todo o discurso oficial também não permitiria adivinhar o embate indivíduo/família vs. πόλις e esse dificilmente alguém negará que percorre toda a peça. É importante realçar que é no contexto desta oposição que surge a tensão deuses/cidade. Ela não é colocada isoladamente, sem contexto, género o Homem contra os deuses — o mais perto disso que a mitologia grega conhece é ainda Prometeu (de novo Prometeu). A tensão, porém, está lá. Um dos cinco binómios que conduzem a Antígona, na opinião de Steiner, é precisamente este (deuses/Homem). Ora se Antígona, isso é claro, nesta oposição, representa os deuses, então Creonte, a cabeça da πόλις, não pode senão simbolizar o Homem (por incómodo que isto seja: gostaríamos talvez de um melhor advogado), que, paradigmaticamente, acaba feito nada (v. 1325) pelos deuses. Num golpe de ironia, é a cidade, via Creonte, e não tanto Antígona (v.821), que se revela αὐτόνομος, aquela que dá as leis a si mesma, as leis que aprendeu, sozinha (ἐδιδάξατο) e orgulhosa (stolz). Se Antígona morre em virtude da sua «autonomia», porque ignora a πόλις, também assim a cidade, que ignora os deuses. A cidade é anterior ao Homem, os deuses antecedem a πόλις, e o que nos precede, se é condição de possibilidade de quanto somos, é também limitação (mesmo se não determinação). Mas ficamos por aqui, à soleira dessoutra reflexão que Antígona suscita, sobre a liberdade (ou não) de acção. Fim dos luftigen Gedanken.

imagem: Ismena e Antígona, de Emil Teschendorff

Soph. Ant. 354-356 - I


καὶ φθέγμα καὶ ἀνεμόεν
φρόνημα καὶ ἀστυνόμους
ὀργὰς ἐδιδάξατο

Assim começa a terceira estrofe (segunda, do ponto de vista técnico: a anterior é uma antístrofe) do primeiro canto (gosto muito do nome songs que se encontra em certos textos ingleses para designar os estásimos e creio só haver vantagens em o importar: mais lírico e mais próximo, retira esoterismo às clássicas e lembra a natureza musical do texto, mesmo se, em abono da verdade, tenho de admitir que introduz alguma confusão, pois que o párodo, a bem dizer, não deixa também de ser um canto) da Antígona de Sófocles, a famosa Ode ao Homem (vv.332-375). Na tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, a tradução standard, editada pela Gulbenkian (utilizo, porém, a edição do FESTEA, aqueles livrinhos a5 simpáticos, de capa branca, distribuídos com as representações do Thíasos, o grupo de teatro clássico da FLUC), lê-se:
A fala e o alado pensamento,
as normas que regulam as cidades
sozinho aprendeu
Rocha Pereira ignora por completo ὀργὰς, impulsos, que subsome no adjectivo que, no grego, qualifica o nome: ἀστυνόμους, composto que reúne ἄστυ, cidade, e νόμος, termo problemático, polissémico, que poderíamos arriscar traduzir aqui por lei (donde palavras como autónomo, aquele que se dá as suas leis). Não me recordo já de como, na recentíssima tradução feita por Marta Várzeas para o TNSJ, para a encenação da peça por Nuno Carinhas, este passo era vertido, e, como dizia Wittgenstein, sobre o que não podemos falar, melhor é que guardemos silêncio. Tenho porém comigo a tradução de Fernando Melro, editada na série de clássicos da Inquérito, ainda menos exacta (e em prosa), donde desapareceu também o ὀργὰς:
Ele conhece a palavra, o pensamento alado, os costumes urbanos
(Apenas para que se entenda melhor esta tradução, diga-se que νόμος, um dos significados mais comuns que tem e que há pouco, por conveniência, omiti, é precisamente o de costume). Das que conheço, só a tradução publicada pela Verbo, no âmbito da mítica série dos Livros RTP, da autoria de António Manuel Couto Viana (que nem tenho a certeza que tenha traduzido directamente do original), não escamoteia o termo grego:
o homem que, por si próprio, aprendeu a falar e tem pensamentos rápidos como o vento, e criou em si um carácter que regula a vida em sociedade
ὀργὰς aparece-nos aqui como carácter, o que não é uma tradução totalmente desacertada, mesmo se a carácter corresponde mais o grego ἦθος. Se formos ao dicionário (o Middle Liddell, conhecido dos estudantes de Clássicas), encontramos como significados para ὀργὰς impulso natural, propensão, temperamento, disposição, natureza. Hölderlin, porém, na sua famosa recriação poética (aqui o termo de Frederico Lourenço é apropriado), escreve assim estes versos:
Und die Red' und den luftigen
Gedanken und städtebeherrschenden Stolz
Hat erlernet er
algo como:
E o Discurso e os aéreos
Pensamentos e o Orgulho de governar cidades
Ele aprendeu
(aéreos não deve aqui ser lido no sentido pejorativo que, em combinação com pensamentos, tende a ter na nossa língua; com aéreos quis apenas manter-me o mais próximo possível do étimo do adjectivo alemão, luftigen, que vem de Luft, «ar»). A tradução de ὀργὰς por Stolz, «orgulho», é ilustrativa da peculariedade da versão de Hölderlin, que dialoga reciprocamente com o original de Sófocles, apurando-o e aparando-o (nos dois sentidos deste verbo). Hölderlin não se contenta em traduzir ὀργὰς por Trieb, «impulso», «ímpeto», a tradução costumeira no alemão: ele interroga esse temperamento (Stimmung, para usar o termo heideggeriano) para o definir, aperta-o — espremo-o, poderíamos dizer — até à depuração (como para se fazer um perfume é preciso triturar os botões das flores como uvas no lagar), que é aqui uma concretização. Hölderlin afia a palavra como a faca, ele que apontou o lado mortífero do discurso entre os gregos (Hipólito, lembrava, morre directamente por causa das palavras do pai: a palavra é uma arma, cf. Neil Gaiman, Sandman #4, o duelo entre Dream e Choronzon), quer extrair a sua verdade.

Ora qual a natureza do impulso, ὀργή, que guia o homem (beherrschenden, em städtebeherrschenden, contém Herr, 'senhor'; uma tradução mais apropriada do verbo seria não tanto 'governar' mas 'dominar', enfatizando o lado masculino do poder) na condução da cidade? Hölderlin responde: o orgulho. O homem tem na cidade, politicamente compreendida, na πόλις, a тιμή (a honra que lhe é devida) máxima de ser Homem. O Homem é ζῷον πολιτικόν (bicho político, na célebre definição de Aristóteles, Pol. 1253a): é na comunidade que se faz humano («A πόλις é a mestra do Homem», Simónides, fr. 90 West). A πόλις suprema é a cidade do último Homem (não confundir com a figura do mesmo nome no Zaratustra de Nietzsche): a perfeição das estruturas políticas (aqui no sentido mais lato do termo, o grego) corresponde ao grau final de humanização do Homem. Num regime injusto, nem todos os homens podem ser bons, e o mal, mesmo se pequeno a princípio, tem a rapidez dos coelhos a reproduzir-se e do bambu a crescer; um regime justo com homens maus, por sua vez, não se aguenta, porque os prejudica.

Se o Homem não pertence fundamentalmente à Natureza (verdade que atinge no mito do Génesis a sua formulação arquetípica máxima) — poder-se-ia dizer da relação Homem-Natura o que dizem os cristãos sobre a sua relação com o mundo: estamos no mundo mas não somos do mundo, adaptando: estamos na Natureza, mas não somos da Natureza, ou se calhar seria mais justo dizer o inverso, mas também mais trágico, porque situação irreversível, ontologicamente mais violenta, presos num sítio não naturalmente (literalmente, aqui, o advérbio) nosso e todavia impedidos de sair — ele tem portanto de arranjar o seu habitat, de o construir: é a πόλις, o espaço que cria para si. A linguagem da πόλις é, de facto, a do fabrico: Creonte, que tudo define em função da cidade («não teria por amigo próprio um varão que quisesse mal à nossa terra» [187-8], trad.: MHRP), fala explicitamente em «fazer amigos» (τοὺς φίλους ποιούμεθα) [190]. Verum quia factum, afirmava Vico, «verdadeiro porque feito». A πόλις é a realidade humana por excelência, a sua maior criação, obra colectiva, no duplo sentido de ser, como dizia Lincoln, for e by (era em Atenas sob Péricles que Sófocles pensava quando escreveu esta Ode) the people.

A πόλις é o espaço que o Homem recortou no real para si, o seu τέμενος (o espaço delimitado e consagrado a um deus, para o seu templo). A Natureza é-lhe contrária, como vimos, mas ele triunfou sobre ela, como canta o coro: navega o mar, esventra a terra pelo seu alimento, captura as aves, doma o cavalo, caça a besta dos bosques e até das doenças vai começando a saber escapar. Afirma-se então como humano, numa tríplice vertente: poeta (φθέγμα, som da voz/Rede, discurso), filósofo (φρόνημα/Gedanken, pensamentos) e, em último lugar, legislador (ἀστυνόμους ὀργὰς/städtebeherrschenden Stolz, orgulho de governar cidades). Faz parte da natureza intrínseca do Homem, do seu «princípio de crescimento» (φύσις), esta sua ὀργή (impulso, ímpeto). Ele cresce precisamente na medida em que cumpre com este princípio, como acima vimos. A legislação é uma maneira de potenciação do humano, de afirmação do que é dele.

[a continuar]

imagem: Antígona e Creonte, desenho de Jean Cocteau.