terça-feira, 9 de novembro de 2010

A lei de Píndaro e Musil sobre tradução erótica

Nota: título de post enganador, lasciate ogne speranza etc.

“I don’t understand any of it,” Agathe replied. “But do you know that a boy in his class once translated a passage from Shakespeare quite literally, and the effect was touching, beginning with ‘Cowards die many times before their deaths,’ and without any feeling for what the boy had done, Hagauer simply crossed it out and replaced it, word for word, with the old Schlegel version!

“And I remember another instance, a passage from Pindar, I think: “The law of nature, King of all mortals and immortals, reigns supreme, approving with extreme violence, with almighty hand,’ and Hagauer polished it: ‘The law of nature, that reigns over all mortals and immortals, rules with almighty hand, even approving violence.”

[...]

Frowning, Ulrich stared at his sister. “The person who won’t try to ‘restore’ an old poem but leaves it in its decayed state, with half its meaning lost, is the same as the person who will never put a new marble nose on an old statue that has lost its own,” he thought. “One could call it a sense of style, but that’s not what it is. Nor is the person whose imagination is so vivid that he doesn’t mind when something’s missing. It’s rather the person who cares nothing for perfection and accordingly doesn’t demand that his feelings be ‘whole’ either. She’s capable of kissing,” he concluded with a sudden twist,” without her body going all to pieces over it.

Robert Musil, Der Mann ohne Eigenschaften


O fragmento Das Höchste, O Supremo, é o fragmento central da tradução de Hölderlin dos Fragmentos de Píndaro.



Das Höchste

Das Gesetz,
Von allen der König, Sterblichen und
Unsterblichen; das führt eben
Darum gewaltig
Das gerechteste Recht mit allerhöchster Hand.


O supremo

A lei,
De todos o rei, mortais e
Imortais; exerce precisamente
Por isso com violência
A mais justa justiça, com mão soberana.

Νόμος πάντων βασιλεύς
θνατν τε κα θανάθων
γει δικαιν τ βιαιότατον
περτάτ χειρί.


De longe o mais surpreendente nesta tradução é a alteração de δικαιῶν τὸ βιαιότατον (que poderíamos traduzir como “justificando a maior força”) para “exerce com violência a mais justa justiça”. O foco fica completamente desviado. O comentário é terrível. “O imediato, considerado de modo estrito, é para os mortais impossível, tanto quanto para os imortais.” “A estrita mediação é porém a lei”— o que nos diz que a ilusão --o dolo-- sugerido pelos fragmentos anteriores, sobre a necessidade de a lei humana espelhar a divina para poder melhor preencher o quadro do destino cósmico, não passava duma perversa sedução dos deuses que amam e destroem como a rosa floresce, sem porquê. Mediar a esfera do divino —traduzir de deus para humano, poderíamos dizer— é unir as duas pontas através da lei, mas compreender que isso nada tem de hospitalidade: a lei terá de ser exercida com força, não por ela justificar a força, mas porque a divisão entre mortais e imortais é dolorosa e não pode existir junção ao plano da mais alta legislação. “o Deus tem de distinguir mundos diferentes, em conformidade com a sua natureza, pois a benevolência celeste, por si mesma, tem de ser sagrada, não híbrida.” Compreendermos a necessidade da lei, rei de todos, é compreender que o caminho entre humano e divino não pode ser nunca completamente trilhado: o híbrido, isto é, o centauro, nunca é meio-deus, é sempre meio-animal: a possibilidade humana fica sempre aquém das expectativas, sempre abaixo da mediania universal, desde o momento em que Júpiter assumiu o trono real. ““Rei” significa aqui o superlativo, o qual é o sinal unicamente do supremo fundamento do conhecimento, não do poder supremo.” O deus é a lei, na medida exacta em que o deus não é verdade: a verdade é violenta porque se funda lei do deus, que a ninguém presta contas.

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