quarta-feira, 3 de novembro de 2010

A Condição Humana (fr. 1 W), de Semónides (e Outros)

Ó rapaz, é Zeus tonitruante que detém o desfecho
de tudo quanto existe e tudo dispõe como quer.
Não há inteligência nos homens, mas vivemos
efémeros como gado, sem sabermos
como o deus terminará cada coisa.
Porém a esperança e a credulidade
alimentam-nos a vontade do impossível.
Uns esperam que venha o dia, outros as estações.
Não há ninguém que não julgue chegar ao ano
seguinte, amigo da riqueza e da prosperidade.
Mas a velhice, nada invejável, apanha um homem
antes de chegar à sua meta; a outros mortais
destroem as doenças miseráveis; e Hades envia
outros para debaixo da negra terra, mortos por Ares.
Outros agitados na tempestade marítima
e nas ondas numerosas do mar purpúreo
morrem, quando não conseguem sustento em terra.
Outros ainda atam uma corda ao pescoço em desgraçado
destino e deixam por sua vontade a luz do sol.
Assim, nada existe sem misérias, mas incontáveis
desgraças e sofrimentos inesperados existem
para os mortais. Mas se eu tivesse o poder de persuadir,
não estaríamos apaixonados pelas desgraças,
nem daríamos cabo do coração com dores amargas.

in: Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Cotovia, Lisboa: 2006. (trad.: Frederico Lourenço).

Semónides é sobretudo conhecido pela sua Sátira Contra as Mulheres (fr. 7 W), uma virulenta diatribe misógina, mas o poema acima é facilmente superior ao texto a que deve a sua fama e merecia maior reconhecimento. Não pretendo levar aqui a cabo uma análise do fragmento, mas não resisti a sublinhar os versos a negrito. A comparação entre o Homem e o gado, que veremos recuperada, num sentido muito diferente, por Platão, na sua filosofia política (primeiro por Trasímaco, no livro primeiro da República, depois pelo Estranho de Eleia, no Político), é bruta, esse o termo, como as várias analogias entre a mulher e os animais na Sátira, mas, na forma como é explicada, irrefutável e, por isso, pela sua violência verdadeira, tanto mais incómoda.

Salústio, muito mais tarde, vai começar a sua Bellum Catilinae sublinhando a diferença entre o gado (pecora) e os humanos, mas Semónides descarta essa divisão estabelecida para sublinhar como, no que realmente interessa, o Homem não se distingue das bestas que esperam o abate (relembrar, aqui, o «monólogo» de Gloria na fila para as inscrições na maratona de dança, em They Shoot Horses, Don't They?, de Sydney Pollack [1969]). Não sabemos, como os bois, quando o deus «terminará cada coisa», legitur «cada vida», e Semónides não deixa de elencar uma série de possibilidades, da simples velhice ao suicídio. Dizia Gloria, no filme de Pollack, que o que nos distingue do gado, mas não é qualquer prova de superioridade, muito menos de felicidade, é sabermos que vamos ser abatidos, não estarmos ignorantes do facto (ainda sobre a recepção explícita, no cinema, desta comparação, vide o famoso exemplo de montagem intelectual na Greve de Eisenstein [1925], recuperado por Coppola na cena final do Apocalypse Now, onde, com maior acuidade, na figura de Kurtz, se ilustra a lucidez da consciência da morte, diferenciadora do Homem face ao búfalo abatido no exterior do templo).

Claro que, de acordo com Heidegger, essa diferença não nos marca assim tanto, na medida em que a maior parte dos humanos, na maior parte do tempo, leva o que ele chama de uma vida inautêntica, desatento ao facto certo da sua própria mortalidade, que, porém, de acordo com o mesmo filósofo, o grego não esquece e intui com a clarividência maravilhosa, e, sobretudo, destemida, que lhe permite chamar-se a si mesmo, como sinónimo de ἄνθρωπος, θνητός, o mortal, porque é isso que somos já («you're dying one minute at the time», recorda Tyler Durden), não se trata de um horizonte que nos espera, mas algo que condiciona desde já a nossa forma essencial de relação de nós connosco próprios. E esse acontecimento, que é já, que é a nossa condição (a efemeridade de que fala Semónides, associando-a, num movimento de profunda ousadia poética, aos bois: procurem relembrar-se da última vez que viram as duas coisas relacionadas nos termos explícitos em que ele o faz), a sua data ou a sua hora, ninguém o sabe (cf., num contexto escatológico, Mt 24, 36-44; lembrar também a parábola feliz das dez virgens).

Por fim, note-se como, na incerteza do dia, Semónides nega de forma frontal ao (des)conhecimento humano o nome nobre de inteligência. Tudo é reduzido à vanidade do proémio do Fausto: «E afinal vejo: o nossa saber é nada!» (trad.: João Barrento, na edição da Relógio; o alemão, porém, é mais radical, e mais próximo do niilismo epistemológico do poeta grego: «Und sehe, daß wir nichts wissen können!»). Não podemos saber, de facto, a hora da morte, ou sequer, se quisermos afastarmo-nos desta interpretação mais tanatológica do passo, a fortuna das empresas em que nos lançamos. É que, de facto, «aos deuses cabe cumprir/e levar tudo a bom termo» (Álcman, Grande Partenéion, trad.: Frederico Lourenço): os humanos não podem adivinhar os resultados dos seus esforços, devido à sua contigência e limitação. E a coisa mais importante, até a forma em que se nos aparecerá - eis-nos impedidos de a conhecermos. Não é, pois, insensato negar ao Homem, sob este ponto de vista, a inteligência, assim apoucada a uma espécie de habilidade técnica de melhor domesticar a natureza, sem, contudo, a conseguir fundamentalmente alterar ou responder ao anseio humano mais premente.

Se Platão definia o Homem como bípede sem penas, será talvez justo, e superior, fazer Semónides defini-lo com um boi com consciência (e o sobrehumano de Nietzsche não se diferenciava precisamente, inter alia, pela sua consciência, ao saber da qualidade mitológica da verdade que erige, sem se enganar em relação a ela, sábio de tudo ser máscara?). E, todavia, Semónides reconhece como a natureza humana está composta de maneira a não se deixar abater por essa indeterminação fulcral do dia (parecendo antecipar Hume, o poeta reconhece como a Natura é infinitamente mais sábia do que o nosso limitado saber, tratando de nos dotar com as qualidades psicológicas necessárias à nossa sobrevivência): «Porém a esperança e a credulidade/ alimentam-nos a vontade do impossível.» O Homem, portanto, seria definido com maior propriedade como essa tensão (recordar Heraclito, frg. 8) entre a (in)certeza do inevitável (a morte) e a vontade do impossível (a esperança). E agora dizei-me que os gregos, bem antes de Pródico, não dominavam a arte de bem de-finir. Sem querer fazer sombra a Píndaro, mas uma definição de Homem deste calibre bem merece ser justaposta ao seu célebre verso (ver ainda esta).

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