Depois de ele ter dito estas palavras, Pródico acrescentou:
— Parece-me bem o que dizes, Crítias. É, de facto, necessário que, aqueles que assistem a discussões destas ouçam ambos os interlocutores, de modo imparcial, mas não passivo — é que são coisas diferentes. É preciso ouvir os dois do mesmo modo, mas não atribuir a cada um o mesmo valor, antes mais ao sábio e menos ao mais ignorante. Pela minha parte, Protágoras e Sócrates, suponho que concordarão em discutir sobre os argumentos mas sem contender — é que os amigos discutem com os amigos, com cordialidade, enquanto que aqueles que contendem são os que estão em desacordo e se odeiam uns aos outros — assim, a nossa conversa será muito melhor.
[εἰπόντος δὲ αὐτοῦ ταῦτα, ὁ Πρόδικος, καλῶς μοι, ἔφη, δοκεῖς λέγειν, ὦ Κριτία: χρὴ γὰρ τοὺς ἐν τοιοῖσδε λόγοις παραγιγνομένους κοινοὺς μὲν εἶναι ἀμφοῖν τοῖν διαλεγομένοιν ἀκροατάς, ἴσους δὲ μή—ἔστιν γὰρ οὐ ταὐτόν: κοινῇ μὲν γὰρ ἀκοῦσαι δεῖ ἀμφοτέρων, μὴ ἴσον δὲ νεῖμαι ἑκατέρῳ, ἀλλὰ τῷ μὲν σοφωτέρῳ πλέον, τῷ δὲ ἀμαθεστέρῳ ἔλαττον. ἐγὼ μὲν καὶ αὐτός, ὦ Πρωταγόρα τε καὶ Σώκρατες, ἀξιῶ ὑμᾶς συγχωρεῖν καὶ ἀλλήλοις περὶ τῶν λόγων ἀμφισβητεῖν μέν, [337β] ἐρίζειν δὲ μή—ἀμφισβητοῦσι μὲν γὰρ καὶ δι᾽ εὔνοιαν οἱ φίλοι τοῖς φίλοις, ἐρίζουσιν δὲ οἱ διάφοροί τε καὶ ἐχθροὶ ἀλλήλοις—καὶ οὕτως ἂν καλλίστη ἡμῖν ἡ συνουσία γίγνοιτο]
Platão, Protágoras 337a
Relógio d' Água, Lisboa: 1999. (trad.: Ana Elias Pinheiro)
Este é o início da pequena intervenção de Pródico no Protágoras de Platão. Pródico de Ceos foi um dos mais importantes sofistas do século V a.C., tendo-se distinguido pelo seu cuidado na definição exacta dos conceitos, trabalho que, a seu ver, constituía os prolegómenos de toda a correcta educação. Ao procurar, por exemplo, desmontar a aparente sinonímia entre dois nomes, Pródico acabava também, necessariamente, por, muito socraticamente, se podemos usar aqui o advérbio, inquirir sobre a verdadeira natureza das coisas, única forma legítima de, afinal, conseguir a definição precisa das mesmas. Platão, como o excerto acima transcrito revela, bem como a continuação do mesmo (a ler aqui), não deixa de caricaturar nos seus diálogos, e neste especialmente, em que Pródico intervém, a obsessão do sofista pelo rigor semântico. Pródico podia ser quase um personagem queirosiano, com o seu tique linguístico próprio, a sua fixação com o uso do termo certo e com as distinções entre palavras próximas.
E, todavia, ao ler este passo do Protágoras, não pude deixar de sentir que Platão, ao divertir o leitor à custa do filósofo de Ceos, não lhe estava a fazer justiça. Só aquela diferença entre imparcial e passivo bastaria para o justificar, tal é a penetração (insight) que manifesta (eu mesmo ainda não sei bem como a rentabilizar, mas sinto que me virá a ser muito proveitosa: é como um equivalente linguístico daquelas nuances psicológicas que o Proust desdobra à nossa frente). E se aceitássemos todos o significado que Pródico propõe para discutir (e o seu correlato, contender), deixaríamos de vez de ter de acrescentar sempre, em relatando uma conversa a um amigo, «discutimos, mas amigavelmente, atenção», que é dos apêndices semânticos da língua portuguesa que mais me irrita, mau grado a sua necessidade (um pouco como, em certos contextos, ainda temos de explicar, quando falamos numa crítica, que era uma crítica positiva, e não uma crítica crítica, uma crítica bota-abaixo, como um ouvinte desatento talvez fosse levado a pensar: por isso às vezes me dou à preguiça de importar do inglês o termo, neutro, review).
Pródico, dizia, ficaria justificado só por esta subtileza semântica, própria de um bom escritor e que revela uma profunda sensibilidade à língua. Como se explicou acima, o objectivo último deste procedimento era conduzir a um mais profundo conhecimento das coisas, pelo rigor na sua definição. Parece-me ter sido uma empresa bem sucedida, pelo menos por este fragmento fenomenal que nos chegou, um verdadeiro poema (ou uma tagline publicitária para um perfume), citado por Estobeu, do século V d.C. (Est. 4.20.65 ou Pródico DK B7 - tradução da edição dos fragmentos dos sofistas da INCM, 2005):
o dobro do desejo é o amor, e o amor a dobrar é a loucura.
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