…aquelas mãos fantasmagóricas, aquele eu separável, o perigoso demónio de Homero dotado de vida e energia próprias sobre o qual não temos qualquer poder e que nos obriga a fazer coisas que doutro modo não faríamos, tudo aquilo que Platão pretende banir, raspar todas as ficções até chegar à verdade nua, ao animal humano bani-los sim, banir o modo lídio e o modo iónico e a flauta mais do que tudo a flauta é pior do que todos os instrumentos de corda juntos inventada unicamente para dar prazer e Homero, banir Homero e todos os poetas e pintores e escultores cujos poemas e Vénus nuas celebram as mulheres como instrumentos de prazer pense-se no primeiro andamento da Sonata Kreutzer, no presto dizes tu, será legítimo permitir que seja tocada num salão cheio de mulheres com vestidos decotados? Valha-me Deus Pozdnichev e voltamos ao ponto onde começámos, com aquilo de o prazer ser mau em qualquer circunstância, de estarmos aqui para ser punidos e da necessidade de o sermos de maneira que mataste a tua mulher enquanto o galã hotentote com gostos musicais se escapa por debaixo do piano, não sei se tudo isto não é um acesso daquelas paixões e emoções de que Platão nos queria salvar através da censura ou mesmo da proibição de todas as artes, a arte nasce de uma mistura de doença e fraqueza, loucura e suicídio, Keats tubercoloso e Beethoven surdo, Dostoiévski epiléptico, Byron coxo e Homero cego se é que Homero existiu de facto, Baudelaire e Schiller e loucura e suicídio em quantidade suficiente para agradar ao próprio Deus, Schumann e Kleist suicidas, Hölderlin louco e o mais infeliz deles todos sim, ali sentado de olhar vazio e bata branca exposto diante das visitas pela sua odiosa irmã, não é o facto de ela ter traído o homem, o artista, o ter vendido não isso era previsível, o homem é supérfluo, um mero veículo ou invólucro da obra mas esta sim foi o que a irmã traiu, nesta reside a imortalidade de um autor e foi isso que ela corrempeu, o que é pior do que o homicídio Pozdnichev, pior do que o homicídio senão pergunta ao teu mestre Tolstói, Pozdnichev, e que isso te sirva de consolo, sim e entre todos os artistas entre todos os suicidas falhados Levotchka dar-te-ia razão.
Sociedade Civil
Há 2 dias
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