O costume é para o homem um deus.*
ἦθος ἀνθρώπωι δαίμων.Heraclito DK B119.
in Hélade, de Maria Helena Rocha Pereira
Asa, Porto: 2003.
Direi frontalmente: Stepan Trofímovitch sempre desempenhou entre nós um papel especial e, por assim dizer, cívico, gostando deste papel até à paixão — a tal ponto que, segundo me parece, não podia viver sem ele. Não significa que eu o compare a um actor teatral: Deus me livre de semelhante coisa, até porque o respeito muito. Neste caso, tratava-se por certo de um hábito, ou melhor, de uma propensão imutável e nobre, desde os anos da infância, para o deleitoso sonho da sua bela posição cívica. Por exemplo, agradava-lhe muitíssimo a sua situação de «perseguido» e, por assim dizer, «deportado». Existe em ambos os termos uma espécie de brilho clássico que o seduziu de uma vez por todas e que, elevando-o paulatinamente a seus próprios olhos, durante muitos anos, o içou a um pedestal bem alto e muito gratificante para o seu amor-próprio. Num romance satírico inglês do século passado, um tal Gulliver, no seu regresso do país dos liliputianos, onde as pessoas não tinham mais do que umas três polegadas de estatura, como se habituara tanto a considerar-se a si mesmo um gigante, andava pelas ruas de Londres gritando que se afastassem, que tivessem cuidado ou ele as pisaria, continuando a imaginar que era gigante e os outros todos pequeninos. Riam-se dele e insultavam-no, e os cocheiros mal-criados chegavam mesmo a dar-lhe com os chicotes; no entanto, seria isso justo? O que não faz o hábito? Pois bem, o hábito levou quase à mesma situação o nosso Stepan Trofímovitch, porém de uma forma mais inocente e inofensiva, se me é permitida a expressão, já que ele era uma excelentíssima pessoa.
[...]
— Vejo que o capitão não mudou nada nestes quatro anos e tal — disse Nikolai Vsevolodovitch, num tom um pouco mais carinhoso. — Afinal, é verdade que toda a segunda metade da vida humana se compõe tão-só de hábitos adquiridos durante a primeira metade.
Dostoiévski, Demónios
Presença, Lisboa: 2008. (trad.: os Guerra).
* Fique claro que eu discordo desta tradução. É um fragmento muito complicado de verter, mas esta não me parece, de facto, a melhor solução. Contudo, funcionava muito bem neste post, tanto mais que, aparentemente (pelo menos ao fim de todas as minhas investigações nada acho), Aristóteles nunca disse explicitamente (i.e., ipsis verbis), como eu julgava (e esperava citá-lo aqui), que o hábito é uma segunda natureza, mesmo se vários passos da sua Ética apontam nesse sentido. Coube pois a Heraclito representar, ainda que talvez indevidamente, essa posição, neste diálogo.
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