— À noitinha e bastante tarde, porque voltei de Énoe; pois, vê lá bem que o meu escravo, o Sátiro, tinha-me fugido e eu estava mesmo para te avisar que ia procurá-lo, mas esqueci-me, por causa de qualquer outra coisa. Quando voltei, tínhamos acabado de jantar e estávamos para nos deitarmos, quando o meu irmão me disse que Protágoras tinha chegado. Estive para vir logo ter contigo, mas depois pareceu-me que já era demasiado tarde. Mas, assim que o sono em que caíra, por causa da fadiga, me deixou, levantei-me e corri para cá, sem demora.
Eu, que lhe conheço a energia e a paixão, perguntei:
— O que tens tu com isso? Por acaso ofendeu-te, Protágoras?
— Sim, pelos deuses — respondeu ele, com um sorriso —, porque só ele é sábio e não me faz sê-lo a mim.
— Mas, por Zeus — disse-lhe eu —, se lhe deres dinheiro e o persuadires, ele há-de te fazer sábio a ti também.
— Ó Zeus e deuses, se, na verdade, fosse assim! Não pouparia nem o que é meu nem o dos meus amigos.
[“ἑσπέρας δῆτα, μάλα γε ὀψὲ ἀφικόμενος ἐξ Οἰνόης. ὁ γάρ τοι παῖς με ὁ Σάτυρος ἀπέδρα: καὶ δῆτα μέλλων σοι φράζειν ὅτι διωξοίμην αὐτόν, ὑπό τινος ἄλλου ἐπελαθόμην. ἐπειδὴ δὲ ἦλθον καὶ δεδειπνηκότες ἦμεν καὶ ἐμέλλομεν ἀναπαύεσθαι, τότε μοι ἁδελφὸς λέγει ὅτι ἥκει Πρωταγόρας. καὶ ἔτι μὲν ἐνεχείρησα εὐθὺς παρὰ σὲ ἰέναι, ἔπειτά μοι λίαν πόρρω ἔδοξε τῶν νυκτῶν εἶναι: ἐπειδὴ [310δ] δὲ τάχιστά με ἐκ τοῦ κόπου ὁ ὕπνος ἀνῆκεν, εὐθὺς ἀναστὰς οὕτω δεῦρο ἐπορευόμην.” καὶ ἐγὼ γιγνώσκων αὐτοῦ τὴν ἀνδρείαν καὶ τὴν πτοίησιν, “τί οὖν σοι,” ἦν δ᾽ ἐγώ, “τοῦτο; μῶν τί σε ἀδικεῖ Πρωταγόρας;” καὶ ὃς γελάσας, “νὴ τοὺς θεούς,” ἔφη, “ὦ Σώκρατες, ὅτι γε μόνος ἐστὶ σοφός, ἐμὲ δὲ οὐ ποιεῖ.” “ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία,” ἔφην ἐγώ, “ἂν αὐτῷ διδῷς ἀργύριον καὶ πείθῃς ἐκεῖνον, ποιήσει καὶ σὲ σοφόν.” “εἰ γάρ,” ἦ δ᾽ ὅς, “ὦ Ζεῦ καὶ θεοί, ἐν [310ε] τούτῳ εἴη: ὡς οὔτ᾽ ἂν τῶν ἐμῶν ἐπιλίποιμι οὐδὲν οὔτε τῶν φίλων]
Platão, Protágoras 310c-e
Relógio d' Água, Lisboa: 1999. (trad.: Ana Elias Pinheiro)
O Reino do Céu é semelhante a um tesouro escondido no campo, que um homem encontra. Volta a escondê-lo e, cheio de alegria, vai, vende tudo o que possui e compra o campo. O Reino do Céu é também semelhante a um negociante que busca boas pérolas. Tendo encontrado uma pérola de grande valor, vende tudo quanto possui e compra a pérola.
[Ὁμοία ἐστὶν ἡ βασιλεία τῶν οὐρανῶν θησαυρῷ κεκρυμμένῳ ἐν τῷ ἀγρῷ, ὃν εὑρὼν ἄνθρωπος ἔκρυψεν, καὶ ἀπὸ τῆς χαρᾶς αὐτοῦ ὑπάγει καὶ πωλεῖ πάντα ὅσα ἔχει καὶ ἀγοράζει τὸν ἀγρὸν ἐκεῖνον. Πάλιν ὁμοία ἐστὶν ἡ βασιλεία τῶν οὐρανῶν ἀνθρώπῳ ἐμπόρῳ ζητοῦντι καλοὺς μαργαρίτας: εὑρὼν δὲ ἕνα πολύτιμον μαργαρίτην ἀπελθὼν πέπρακεν πάντα ὅσα εἶχεν καὶ ἠγόρασεν αὐτόν.]
Mt 13, 44-46 retirado da Nova Bíblia dos Capuchinhos.
Difusora Bíblica, Lisboa/Fátima: 1998. (trad.: Arnaldo Pinto Cardoso)
É uma coisa que me impressiona, quando nos debruçamos sobre os antigos: a forma total (wholehearted) como eles procuram a salvação, aqui sem as conotações que o termo possui em contexto religioso (mesmo se isso não seria de todo incorrecto), no sentido mais primeiro da palavra, que tem que ver com a ideia de saúde (salve!, a saudação latina, tinha precisamente esse significado), a saúde, portanto, do Homem, aqui, obviamente, não tanto num sentido físico mas mais "espiritual", se o termo não é anacrónico. A questão primordial da filosofia, e até, em certa medida, já antes de Sócrates — não precisamos de postular nenhuma guinada radical no rumo da filosofia, que inverte o sentido de marcha e toma como objecto principal as questões morais e éticas—, é, no fundo, e não negando a importância das investigações cosmológicas de vários dos pré-socráticos, como viver bem.
Ora a sabedoria era concebida como parte essencial desse caminho para a vida boa. Não é por acaso que surge a ideia socrática que a virtude é sobretudo uma capacidade intelectual (se eu sei, eu sou - daí também a urgência do imperativo do conhece-te a ti mesmo) ou que a felicidade máxima, em Aristóteles, na Ética a Nicómaco, é concebida como a contemplação (theoria), a actividade por excelência dos filósofos (o próprio deus, o mais feliz dos seres, não seria outra coisa senão contemplação da sua própria perfeição). O platonismo, é bom que o admitamos, converte-se, a partir de um dado momento, numa verdadeira religião, especialmente se entendermos o termo na sua etimologia primitiva (re-ligo, voltar a ligar [ao céu/mundo das ideias, subentende-se]). Clemente de Alexandria, nos Stromata, chega a considerar que a filosofia foi o (antigo) testamento que Deus deu aos gregos, como aos judeus deu os profetas e Moisés; a filosofia é a aliança de Deus com os gregos.
O próprio cristianismo conseguiu expandir-se também por este desejo de salvação, no sentido que acima demos ao termo (e não menos o judaísmo: terá sido em princípio pelo seu sucesso em converter os romanos que os judeus foram expulsos da capital em 19 d.C.). Havia uma preocupação muito presente com esse viver bem, que tornava a filosofia uma coisa encarnada, longe da especulação gratuita. E as pessoas sentiam-se perdidas, e procuravam um mestre (Orígenes interpreta precisamente o texto de Mateus nessa linha: «He seeks pearls among all kinds of doctrines which profess to proclaim the truth, and among those who teach such.», Mt Co 10, 8), que as guiasse, que as ajudasse a florescer, ou, nas palavras de Sócrates, a prepararem-se para a morte. O próprio percurso de Sócrates, que ele conta no Fédon, é um bom exemplo, mas mais ainda o de qualquer um dos seus discípulos (quem não lembra as censuras irónicas de Apolodoro aos seus ouvintes no início do Banquete?). Pela sabedoria, pela posse do mistério da vida boa, estes homens estavam prontos a deixar as suas coisas (tenho uma imagem muito nítida do Platão a queimar as suas peças de teatro, na véspera de seguir Sócrates).
E isto, isto é uma coisa que me impressiona, pela sua radicalidade. É certo que ainda hoje há quem ingresse em ordens religiosas, o que é uma escolha total. Mas o comum dos mortais abandonou, porque primeiro a abandonou a filosofia, a pergunta pela vida boa. Quem venderia hoje os seus bens (e os dos seus amigos) por tal coisa? Quando muito damos 20€ por um livro. Somos já incapazes de uma certa naiveté de que os gregos ainda dispunham. Já não acreditamos em mestres e desacreditámos das filosofias, não sem alguma razão e até culpa delas. Mas não é este o espaço para inquirir o porquê disto, e este post já está a descambar para um desabafo de café.
imagem: A Academia de Platão. Mosaico de Pompeia, séc. I d.C.
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