It was no dream; or say a dream it was,
Real are the dreams of Gods.
Keats, Lamia 1.126-7
Com tanta coisa boa que há para ler, e tão pouco o tempo, é normal que, quando verificamos que o livro a que nos dedicámos nas últimas horas ou dias é, de facto, um produto menor, que não compensou o nosso esforço, fiquemos um tanto ao quanto, se não aborrecidos, pelo menos com pena: afinal, a vida é breve, e nunca se ouviu falar de bibliotecas no paraíso (salvo com Borges). E, todavia, é impressionante a fecundidade, isto é, a capacidade de gerar novas obras, destas obras menores, chamemos-lhes assim, capazes de rivalizarem, nesse aspecto, com alguns dos mais importantes títulos da literatura mundial. Não pude deixar de confirmar quanto os caminhos da inspiração são insondáveis ao ler agora a Lamia de Keats.
Este Verão, nas minhas explorações da história da Igreja dos primeiros séculos, tropecei na Vida de Apolónio, de Filóstrato, sofista que viveu na passagem do segundo para o terceiro século depois de Cristo. Trata-se da biografia de um filósofo do século I, homem muito reputado no seu tempo, com fama de homem santo. Alguns escritores pagãos quiseram equipará-lo a Cristo e daí eu, interessado nas polémicas anti-cristãs e nos escritos apologéticos, me ter atirado aos três volumes da série da Loeb sobre Apolónio. Trata-se de uma narrativa interessante, mas desigual: o segundo volume é bem mais cativante que o primeiro. No cômputo geral, porém, é um livro que só interessará hoje a um público muito específico, apesar de ter algumas passagens que, tivera o texto sempre aquela qualidade, seria, sem dúvida, mais lido, ou do retrato curioso, porque até inesperado, que pinta das relações entre filosofia, religião e política naquele tempo (e para os que se interessam por isto, não direi que é essencial, mas será sem dúvida valioso).
O «milagre» mais conhecido de Apolónio, narrado por Filóstrato, é a salvação de um jovem de Corinto, boa pessoa, de tendências filosóficas (acabará por seguir o mestre), que, enfeitiçado por uma lâmia, uma criatura demoníaca do folclore grego, por vezes associada aos modernos vampiros, se ia casar com ela. Apolónio denunciou em plena boda a verdadeira natureza da bela mulher que o rapaz se preparava para desposar e expulsou-a da casa, salvando-o da morte (as lâmias bebiam o sangue daqueles que escolhiam). Keats não leu a obra de Filóstrato, mas soube da história através daquele que terá dito um dia ser o seu livro favorito: The Anatomy of Melancholy, de Richard Burton. Inspirado pela lenda, compôs um dos poemas mais conhecidos da sua maturidade, entre finais de Junho e inícios de Setembro de 1819: Lamia. E, assim, uma passagem importante, mas nem sequer a melhor, de uma obra pouco lida floresceu num poema em que o génio de um dos nomes maiores do Romantismo inglês se manifesta no alto da sua criatividade e talento. A Musa progride por caminhos esquivos.
imagem: Lamia (1909), de Herbert James Draper
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