Catholic University of America Press, Washington D.C.: 1984. (trad.: Robert Daly, s.j.).
Não sei como funciona o curso em Lisboa, mas, em Coimbra, pelo menos, o período a que damos o nome de Antiguidade Greco-Romana parece terminar com a morte de Augusto, em 14 d.C. De facto, é raro avançar-se mais no tempo e, na minha turma, só no ano passado, numa cadeira de mestrado, nos aventurámos para lá desse muro de berlim temporal, estudando a correspondência de Plínio e Trajano. Não fora por Marcial (e, eventualmente, Juvenal ou, com muita sorte, Suetónio), também todo o período do Império seria ignorado nas aulas de Literatura e Língua. É vergonhoso, mas a verdade é que concluímos o curso sem sermos capazes de listar, de cor, os grandes imperadores ou ordenar cronologicamente os seus nomes, se eles nos forem dados.
Entre as muitas consequências desta escolha curricular está o desprezo a que é votado o estudo da Igreja primitiva, área de investigação virtualmente inexistente em Portugal (sobre o que, mau grado tudo, se vai fazendo, ler aqui). O cristianismo é um fenómeno do mundo greco-romano e deve ser analisado no contexto do seu ambiente, sendo por isso coerente que seja estudado no âmbito das Clássicas (aliás, estou convencidíssimo que, à medida que a sociedade se vai descristianizando, a cadeira de Mitologia, por muito que me custe conceber tal situação, vai passar a incluir também algumas noções base de cristianismo, para que os alunos possam perceber os textos clássicos tardios). Pelo contrário, continua-se a alimentar a ideia do cristianismo como uma coisa fundamentalmente outra, estranha à cultura clássica, postulando-se uma ruptura que, se existiu (não vamos ser teimosos como Weil), e sendo profunda, contém também muitos elementos em que não se observa solução de continuidade e ignora o diálogo fecundo que se estabeleceu, para usar a expressão de Steiner, entre Atenas e Jerusalém.
A culpa, porém, não é apenas dos classicistas nacionais, mas também da própria Igreja, que há muito deixou de formar convenientemente os crentes, preferindo a transmissão de uma versão light da sua própria fé aos domingos na catequese. A verdade é que a maioria dos fiéis, hoje, seria incapaz de perceber várias das controvérsias teológicas daqueles primeiros séculos, coisas que, na altura, pelo relato, creio, de um dos Gregórios (ou o de Nissa ou o Nazianzeno), eram discutidas na ágora, enquanto se comprava pão. Aparecem depois filmes como o último de Amenábar — a quem devo a minha descoberta deste período — e subitamente apercebemo-nos de como não sabemos nada daquele período, mas que, afinal, até aconteceram coisas bastante importantes durante aqueles quase cinco séculos (!) que o império do Ocidente ainda durou. Um último incentivo ao estudo do cristianismo primitivo: aquilo é uma novela com todos os ingredientes do sucesso (veja-se Gibbon): mortes (cada uma melhor que a outra), mulheres nos bastidores a manipularem a cena, imperadores heréticos e apóstatas, exílios, monges malucos, eremitas, trapaceiros, chicos-espertos, rivalidades eclesiásticas e rendas de bilros.
No meio disto tudo, há grandes nomes, que, porém, o tempo e a ignorância fizeram esquecer. Um desses é Orígenes (c. 185-254), sem dúvida o maior teólogo antes de Santo Agostinho; aliás, é mesmo possível defender que só com Orígenes podemos falar de uma teologia sistemática e, assim, ele seria o primeiro teólogo cristão. É impossível minimizar a importância do discípulo de Clemente de Alexandria e um dos primeiros casos de anxiety of influence bem documentados tem que ver precisamente com a influência opressiva da sua figura sobre São Jerónimo, que acabou por renegar o mestre, mesmo se nunca deixou de o copiar. Orígenes não é santo, nem mesmo doutor da Igreja, bem pelo contrário: foi anatemizado em 553, no Concílio de Constantinopla, como um precursor do arianismo e defensor de doutrinas, como a pré-existência das almas ou a salvação universal (até para os demónios), entretanto rejeitadas pela ortodoxia. Só no século XX, com o ressourcement — isto é, a recuperação dos padres da Igreja e o regresso às fontes — promovido por Henri de Lubac e outros (entre eles o discípulo de Lubac, von Balthasar, que é responsável por esta antologia), é que Orígenes foi recuperado para a Igreja, sendo reabilitado como um teólogo maior da tradição cristã, ao ponto de o próprio papa actual ter já feito um discurso sobre o pensamento do alexandrino, na sua catequese semanal.
A presente antologia, que inclui mais de mil excertos retirados do corpus de Orígenes, é uma excelente introdução ao homem. Balthasar, talvez o maior teólogo católico do século XX (existem dois livros dele editados na série Teofanias, da Assírio), teve um trabalho imenso ao organizar tematicamente as várias passagens das homílias, comentários e tratados de Orígenes, tendo o cuidado de expor o pensamento do alexandrino de forma orgânica e, sobretudo, racional: é possível perceber a lógica do seu sistema, que vai sendo desenrolado ante os nossos olhos. Não estamos, portanto, perante uma mera recolha de textos que os organiza sob grandes temas (e.g.: a ressureição, a alma, a encarnação), mas que submete esses mesmos cabeçalhos a uma organização pensada, que permita ao leitor seguir a construção do edifício teológico de Orígenes, tarefa em que somos acompanhados pelas pequenas introduções barra resumos de Balthasar, que antecedem cada grupo de textos, fornecendo-nos um fio de Ariadne que nos conduza ao longo do que, de outra forma, se arriscaria a ser, nos seus piores momentos, um conjunto desconexo de citações. Tal, porém, nunca chega a suceder, e, pelo contrário, como digo, a antologia tem o mérito de funcionar como um livro de exposição da doutrina per se, um quase tratado, uma obra praticamente independente, não fora pela ligação fragmentária entre vários parágrafos, retirados de textos diferentes, e que a denuncia como colagem.
A edição inglesa tem três grandes vantagens: (1) todas as passagens bíblicas a que Orígenes alude foram identificadas — trabalho colossal que muito temos de agradecer; (2) a tradução dos textos foi feita a partir do original grego e latino, salvo pouco mais que trinta fragmentos, a que o tradutor não conseguiu ter acesso senão na tradução alemã de Balthasar; (3) no final, encontra-se um pequeno texto que dá uma visão panorâmica dos estudos de Orígenes à data de publicação da edição inglesa, indicando os principais estudos do século XX, fornecendo uma série de pistas para quem queira explorar mais a teologia e a pessoa de Orígenes. O livro tem ainda um novo prefácio pelo tradutor, mesmo se o ensaio em jeito de prólogo escrito por Balthasar para a edição original se mantém.
A quem, portanto, se dirige este livro? Não vou ser hipócrita e recomendá-lo indiscriminadamente, por muito que o tenha apreciado (e posso confessar que foi das melhores coisas que li este ano: as probabilidades de entrar para o meu top 10, lá para Dezembro, são até elevadas). O seu público é, apesar de tudo, restrito. É um livro eminentemente teológico, mais do que, por exemplo, filosófico (uma abordagem que poderia interessar a mais pessoas). Orígenes não é também um poeta da palavra (o que não quer dizer que o seu estilo seja enxuto: longe disso), pelo que, também desse ponto de vista, não há muitos atractivos na sua obra. Quem, de facto, não estiver disposto a empreender uma viagem teológica pura e dura, mais vale não pegar nisto. A esses, arrisco-me a aconselhar, com base noutro livro da série que tenho agora em mãos, e que muito me está a agradar, esta outra introdução: Origen, de Joseph Trigg, da série The Early Church Fathers, da Routledge. Aqueles, porém, que ousarem, com coragem, mas também espírito de abertura (e curiosidade), embarcar na viagem mais directa a Orígenes, com Balthasar, tenho a certeza de que colherão muitas flores: afinal, não é isso uma anto-logia: um bouquet?
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