Mas aquele que tenciona punir racionalmente não castiga por causa das acções passadas — porque não vale a pena chorar pelo leite derramado[47].
ὁ δὲ μετὰ λόγου ἐπιχειρῶν κολάζειν οὐ τοῦ παρεληλυθότος ἕνεκα ἀδικήματος τιμωρεῖται—οὐ γὰρ ἂν τό γε πραχθὲν ἀγένητον θείη
[47] [...] O provérbio pretende, neste contexto, manter o sentido da expressão do original grego que diz οὐ γὰρ ἂν τό γε πραχθὲν ἀγένητον θείη, à letra, «porque não é possível não fazer o que já se fez».
Platão, Protágoras 324b
Relógio d' Água, Lisboa: 1999. (trad.: Ana Elias Pinheiro)
Frequentei no primeiro semestre do ano passado, por curiosidade, a cadeira de Teoria da Tradução, do mestrado oferecido na área pela Universidade de Coimbra. É uma cadeira francamente interessante e, se é verdade que a tradução é uma actividade fundamentalmente empírica e que, portanto, uma cadeira como teoria da tradução parece simples bizantinice, a verdade é que ajuda o tradutor a ganhar consciência do seu próprio método de trabalho (o erro de muitos que ficam desiludidos com a cadeira é que esperam precisamente o inverso: aprender o "verdadeiro método" de traduzir, mais do que perceber aquele que é já o seu). Acresce a isto o ter-se a oportunidade de ler alguns muito bons textos, como o Sobre os Diferentes Métodos de Traduzir, do Schleiermacher.
Neste pequeno texto, talvez o mais importante de toda a história da teoria da tradução (seguido de perto, no século XX, pelo After Babel, do Steiner), Schleiermacher defende que é necessário enveredar por um género de tradução estranhante (já antes de Brecht os alemães aprovavam a Verfremdung), em que o leitor note que está a ler uma obra traduzida, ou seja, exactamente o oposto daquilo que então se praticava nesse tempo e que, ainda hoje, sob a forma de sabedoria popular, continua a ser pregado. A muitos esta ideia poderá parecer de todo descabida: afinal, continuamos a ler nos jornais e revistas elogios às traduções que se lêem com a mesma fluência que o original (ainda no domingo o Vasco Pulido Valente criticava a nova biografia do Salazar por se notar que foi traduzida do inglês). A esses, convido-os a lerem a conferência de Schleiermacher (que traduziu a obra integral de Platão, portanto sabe do que fala). Não tenho aqui espaço, nem é esse o objectivo deste post, de listar os seus argumentos; apenas posso dizer que, em boa medida porque a Alemanha acolheu o programa que ele delineou naquele dia de 24 de Junho de 1813, é que, durante todo o século XIX, deu tanto ao mundo e emergiu como uma nação cardeal da cultura europeia.
Pela forma como tenho estado a falar de Schleiermacher muitos terão já percebido a minha simpatia pelas suas teses. Um dos problemas com que os tradutores não raro se deparam é com a questão dos provérbios: dificilmente encontrarão quem vos aconselhe a traduzi-los de forma literal, antes vos recomendam que procurem o provérbio com o sentido mais próximo na língua de chegada. Em boa medida, consigo perceber a sensatez desta estratégia, mas, não nego, por vezes pergunto-me se não deveríamos, também nisto, forçar a tradução, fiéis a Schleiermacher. É que, afinal, os provérbios são das melhores expressões da alma de um povo (se ainda me é legítimo usar a expressão) e recusar dar-lhes voz, encobrindo-os sob a capa do local e conhecido do leitor, da expressão equivalente, é amputar a obra de um dos exemplos em que, em pouco espaço, mais se concentra a natureza própria e íntima de uma língua. Só por si isso já me tinha antes dado que pensar.
Ao ler, porém, o passo do Protágoras que encima este post não pude deixar de me aperceber de uma das facetas mais perniciosas, mas sobretudo contraditórias, do pensamento dominante nas escolas de tradução: é que, neste caso (e há outro no mesmo livro, talvez até mais explícito), a tentativa de esconder do leitor a natureza real do texto que lê, ao tentar fazer passá-lo pelo original (por isso se traduziu uma expressão grega por uma "equivalente" em português), apenas acentua precisamente o carácter de tradução do texto: dificilmente o nosso provérbio existiria já entre os gregos — e o leitor minimamente culto não deixará de franzir a sobrancelha, sentindo que algo, ali, não bate bem. Foi porque achei logo a expressão estranha que corri a ver a nota, curioso por saber se, afinal, o nosso «chorar sobre leite derramado» tinha raízes gregas. Pois claro que não. A tradução literal, paradoxalmente (ou não, que cada vez mais me convenço das virtudes desta, a todos os níveis), teria preservado bem melhor a fluência do diálogo, que é o propósito declarado, por sua vez, das traduções não-literais.
imagem: São Jerónimo, de Caravaggio
1605-1606, @ Galleria Borghese
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