quinta-feira, 20 de maio de 2010

Ulisses e a Memória

Qualquer tentativa de compreender, na medida das nossas possibilidade, a natureza da representação e da memória, do facto e da ficção, deve começar no tribunal dos Feaces, no livro VIII da Odisseia. Demódoco, o aedo cego (a vista tornou-se visão) canta para os senhores reunidos e para o seu desconhecido hóspede. Canta as batalhas antes de Tróia, canta Ulisses. Ao ouvir-se cantado, o viajante sucumbe ao pranto. Não apenas, creio, devido ao manifesto pathos da recordação, não apenas porque os sombrios destinos dos seus antigos companheiros de armas lhe são relembrados, mas, de modo mais devastador, porque o recital do aedo obriga Ulisses a confrontar a «dissolução», a disseminação do seu eu vivente. Ele já passou à insubstancial eternidade da ficção. Foi esvaziado numa lenda. Não há poética depois de Homero, não há estudo filosófico sobre o estatuto do imaginário relativamente ao empírico, que seja mais penetrante. Encontram-se, na literatura e nas artes, outros actos priviligeados de reflexividade interior, tais com os fragmentos do Fígaro tocados em casa de D. Juan na sua última ceia, ou com o regresso do narrador a Veneza na obra de Proust. Nenhum deles é mais rico nem mais complexo do que Ulisses ouvindo Demódoco.

George Steiner, Errata: Revisões de uma Vida.
Lisboa, Relógio d'Água: 2009. (trad.: Margarida Vale de Gato)

imagem: ilustração da cena por Flaxman para a tradução
de William Cullen Bryant (Riverside Press, 1905).

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