domingo, 9 de maio de 2010

Etnografia Filosófica

Passo agora àquilo que as cidades e os povos consideram vergonhoso. Por exemplo, para os espartanos é decente que as raparigas façam ginástica nuas e desfilem ora com vestes sem mangas ora sem túnica, mas para os jónios é vergonhoso. E para aqueles é decente que os rapazes não aprendam as artes e as letras, mas para os jónios é vergonhoso não conhecer tudo isto. [...] Parece decente aos macedónios que as raparigas, antes de se casarem, se apaixonem e tenham relações sexuais com um homem, mas, quando uma rapariga já está casada, é vergonhoso; para os gregos é vergonhoso em ambas as situações. Para os trácios é um ornamento as raparigas tatuarem-se, mas aos olhos de outros povos as tatuagens são um castigo para os culpados de injustiça. [...] Os masságetas, depois de despedaçarem os progenitores, comem-nos, e eles consideram que não há túmulo mais belo do que ser sepultado no corpo dos próprios filhos; mas, na Grécia, se alguém fizesse isso, seria expulso da Grécia e pereceria na ignomínia por cometer actos vergonhos e terríveis. Os persas consideram decente que também os homens se adornem como as mulheres e que um homem tenha relações sexuais com a filha, com a mãe e com a irmã, mas os gregos consideram essas acções vergonhosas e contrárias às suas leis. Aos lídios parece-lhes decente que as raparigas se prostituam para ganhar dinheiro e depois casem, mas entre os gregos ninguém quereria desposá-las. Os egípcios não consideram decentes as mesmas coisas que os outros: aqui parece-nos decente que as mulheres teçam e trabalhem a lã, mas ali o que parece decente é que os homens façam isso e que as mulheres levem a cabo o que os homens fazem aqui. Amassar a argila com as mãos e a farinha com os pés é para eles decente, mas para nós é o contrário. Penso que se alguém ordenasse a todos os homens que reunissem num único monte o que cada um considera vergonhoso e, que, por sua vez, tomassem desse acervo o que cada um tem na conta de decente, nem uma única coisa seria deixada, mas todos levariam tudo, pois nem todos têm os mesmos pontos de vista.

Duplos Discursos (Dissoi Logoi) [DK90], 2.9-18 [autor desconhecido]
in Sofistas - Testemunhos e Fragmentos. INCM, Lisboa: 2005.
(trad.: Ana Alves de Sousa e Maria Vaz Pinto)

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