segunda-feira, 31 de maio de 2010

Sl 8, 4-10/ Soph. Ant. 332-375

Tive oportunidade de falar aqui anteriormente da chamada Ode ao Homem, o Canto Primeiro da Antígona de Sófocles. Ontem, ao ouvir o salmo que abaixo transcrevo, não pude deixar de notar os paralelismos entre os dois textos, que, contudo, quando cotejados, deixam sobretudo perceber a distância entre as duas mundividências, a grega e a hebraica.
Quando contemplo os céus, obra das tuas mãos,
a Lua e as estrelas que Tu criaste:
que é o homem para te lembrares dele,
o filho do homem para com ele te preocupares?
Quase fizeste dele um ser divino;
de glória e de honra o coroaste.
Deste-lhe domínio sobre as obras das tuas mãos,
tudo submeteste a seus pés:
rebanhos e gado, sem excepção,
e até mesmo os animais bravios;
as aves do céu e os peixes do mar,
tudo o que percorre os caminhos do oceano.
Ó Senhor, nosso Deus,
como é admirável o teu nome em toda a terra!
A tradução é de José Augusto Ramos, para a Nova Bíblia dos Capuchinhos, da Difusora Bíblica, a edição standard. Nenhuma das conquistas do Homem sobre a Natureza a que o salmista alude deixa de encontrar eco no poema de Sófocles (tradução de MHRP):
E das aves as tribos descuidadas,
a raça das feras,
em côncavas redes
a fauna marinha, apanha-as e prende-as
o engenho do Homem.
Dos animais do monte, que no mato
habitam, com arte se apodera;
domina o cavalo
de longas crinas, o jugo lhe põe,
vence o touro indomável das alturas.
O Homem merece a Sófocles o epíteto de δεινότερον, «o mais assombroso», e o salmista dá-lhe um estatuto quase divino. A palavra hebraica vertida como «ser divino» é mesmo «deus». O arrojo do verso nunca foi, porém, totalmente aceite, parece: na Septuaginta, «ser divino» (já por si uma tradução que mitiga a força do original, mesmo se tem o cuidado de o registar em nota) surge traduzido como «anjo» e é assim que Paulo, em Heb 2, 6-8, cita o texto. Apesar de São Jerónimo se ter mantido fiel ao hebraico na Vulgata, a sua lição nem sempre foi seguida: veja-se a King James Bible ou, entre nós, a tradução de João Ferreira d'Almeida (a editada pela Assírio em oito volumes, com ilustrações de Ilda David').

E, todavia, insistimos, mau grado todo este louvor ao Homem, os textos são fundamentalmente diferentes, e não é difícil ver porquê. Se Sófocles sublinha como foi o Homem, por si próprio (lembremo-nos daquele ἐδιδάξατο), que conseguiu dominar a Natureza, o salmista tem o cuidado de deixar claro que se o ser humano é senhor da criação é-o por graça de Deus, que «tudo submet[eu] a seus pés». Achar que o Homem, pelo seu «engenho» (para usar a palavra de Sófocles), poderia chegar sozinho à domesticação e controlo do mundo animal seria uma espécie de pelagianismo. O Homem pode o que Deus lhe concede. Não deixa, por isso, de ser curioso notar que a cidade, que ocupa um lugar charneiro na Ode de Sófocles, está pura e simplesmente ausente desta salmo. Efectivamente, a cidade, na medida em que é uma criação do Homem apenas, e não de Deus, no princípio dos tempos, poderia levantar um problema teológico, ao ser louvada: o seu elogio seria sempre mais um canto ao Homem, seu criador, do que de Deus, como o é o salmo, conhecido, aliás, como 'Hino ao Criador do Homem'. A cidade, aliás, tem muitas vezes uma conotação negativa no mundo hebraico, enquanto espaço da perversão (é, não o esqueçamos, uma criação de Caim, Gen 4,17). Há uma certa desconfiança pela sedentarização, própria de um povo em marcha, como o judeu, oriundo do deserto. Não consigo deixar de suspeitar que o antropocentrismo grego tem muito que ver com o seu πόλις-centrismo e que a ausência desta última dimensão entre os hebreus pode, por sua vez, ter alguma relação (não necessariamente de causalidade) com o seu teocentrismo. O louvor ao Homem, no salmo, nunca atinge, pois, a plenitude que a autonomia grega, pelo contrário, lhe permite. Não há nenhuma contradição, nem talvez coincidência, no facto de o homem que afirmou ser o Humano a medida de todas as coisas ter sido o mesmo que declarou nada podermos saber dos deuses.

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