Simone Weil, A Fonte Grega.
Cotovia, Lisboa: 2006. (trad.: Filipe Jarro)
Mais do que uma colecção de ensaios sobre o pensamento filosófico-religioso grego ou que uma leitura deste à luz da mística cristã, A Fonte Grega é uma exposição do «weilianismo», acima de tudo. O livro encontra-se divido em duas partes: a primeira contém ensaios acabados, a segunda reúne textos dos seus cadernos, não preparados para publicação e que, por vezes, se resumem a um conjunto de notas. Na primeira metade encontramos, logo a abrir, o famoso ensaio de Weil sobre a Ilíada. Porém, insisto, como toda a obra, trata-se sobretudo de um espaço para a autora expor parte da sua filosofia («força» é um conceito de que Weil se apropria), o que, contudo, em nada prejudica a qualidade do texto, que não desmerece a sua reputação. Será a altura propícia, aliás, para que eu confesse que sou um curioso de Weil, que descobri no final do ano passado, com o Espera de Deus, publicado pela Assírio & Alvim, primeiro volume da série 'Teofanias'.
Notas práticas, então (e repetimo-nos, porque é bom deixar isto claro): não ler este livro se se quer um conjunto de ensaios bonitos sobre cultura grega (a própria Cotovia tem outros livros melhores se é isso que se procura, como os ensaios de Frederico Lourenço ou outros volumes sobre Píndaro, Aristófanes e Eurípides). Também não ler na esperança de encontrar aquilo que, muito possivelmente, a maioria das pessoas, desagradadas, acusa o livro de ser: uma interpretação cristã da filosofia (e literatura) grega, dos pré-socráticos a Platão. Weil é uma mística, é certo, mas o seu cristianismo é muito peculiar (ergo, muito interessante), longe da ortodoxia. O que mais admiro nela é a forma como, no seu pensamento, o cristianismo não surge como uma ruptura com a tradição grega anterior, mas sim como o seu desenvolvimento natural, mas iluminado pela graça (outro conceito fundamental em Weil). Lembremos que Steiner, no seu opúsculo A Ideia de Europa, retomando um confronto que já Tertuliano expusera, considera a Europa como o produto do esforço tenso para conciliar Atenas e Jerusalém. Weil, porém, aproxima as duas cidades, deixando o leitor, por vezes, estupefacto com as suas ousadas leituras dos textos gregos, que, parecendo descabidas, manifestam, afinal, uma estonteante propriedade, quando arriscamos abordar o material a essa luz (veja-se o caso da sua interpretação do diálogo entre Electra e Orestes como uma conversa entre Cristo e a alma ou do mito de Eros no Banquete como uma narrativa da encarnação). Pouco importa que Weil faça violência a alguns textos de Platão, ou veja alusões ao baptismo em fragmentos de Heraclito: analise-se friamente o produto final, e não podemos senão ficar com as mãos e o coração quente (e também o fogo, e de forma especial o raio, o fogo que desce do ceú, é uma metáfora importante em Weil).
Esta edição da Cotovia peca, contudo, por apresentar o texto enxuto. Sendo de Clássicas e tendo já tido um primeiro contacto com o pensamento de Weil, como disse antes, não consegui, ainda assim, seguir sempre o seu raciocínio pelos meandros das suas notas. A segunda parte, em particular, é, de facto, difícil, porque muito telegráfica, a tempos, feita de apontamentos rápidos, pensamentos elididos e remissões não totalmente explicadas. Imagino, pois, que quem conheça pior os textos gregos sobre os quais ela se debruça e mesmo quem, conhecendo-os, nada saiba da sua filosofia, tenha alguma dificuldade, se não em compreender a obra, pelo menos em lhe colher toda a profundidade. Eu próprio, estou ciente, terei de regressar a este livro, depois de ler, pelo menos, A Gravidade e a Graça e o L' Enracinement, e, já agora, também depois de finalmente ler A República, do Platão (shame on me). Em suma, e como já disse: um livro um pouco enganador para o consumidor comum, quer ele queira simplesmente pensar a Grécia, quer ele queira conhecer Weil. Peguem nisto os já interessados. Os outros, fotocopiem o ensaio da Ilíada e aventurem-se, para uma amostra do resto, no primeiro e longo texto do começo da segunda metade, sobre Platão como místico cristão (também vale muito a pena, e é de facto o melhor espelho da tarefa que Weil se propõe). Fica a sugestão: leiam Simone Weil. Outra coisa qualquer, mas leiam-na.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarÓtima apresentação de SW. Demonstra que a verve weiliana o contagiou sem embotar seu espírito crítico. SW é uma pensadora brilhante. Duas características de seu pensamento são dignos de nota. Primeiro: sua reflexão original ensina que filosofar é bem mais do que citar e repetir os antigos, mas sim assimilar e se apropriar das fontes clássicas. Neste quesito, apropriação, seu ensaio "Ilíada, ou o poema da força", exposto na obra apresentada, é de tirar o fôlego. Segundo: ela nos lembra que o verdadeiro conhecimento só se adquire pelo ou com sofrimento. E não há aí nenhum masoquismo, mas apenas a integridade moral e intelectual de quem não se sujeitou à velha torre de marfim de alguns pensadores divorciados da política _em seu sentido mais grego_ nem se envergonhou de sua própria condição espiritual: mais um ser em sofrimento no mundo. Não por outro motivo, ela repete em vários escritos um verso do coro de Agamenon, de Ésquilo: τὸν πάθει μάθος (175), "pelo sofrimento, o conhecimento", como ela o traduz na mesma obra citada.
ResponderEliminarEnfim, não é preciso concordar com ela para admirá-la, principalmente porque Simone é mesmo, ao menos no princípio, de difícil digestão, mas é uma pensadora que merece e deve ser lida.
Obrigado pelo comentário atento. Ao longo do ano passado fui mergulhando mais no pensamento e espiritualidade de Simone Weil, e, realmente, sendo uma leitura violenta, pela sua exigência e/de verdade, não consegue não nos atrair vertiginosamente, pela sua pureza radical. Não temos de concordar com ela, claro, mas não a podemos ignorar, sob pena de ficarmos menores.
ResponderEliminar