Tive oportunidade de falar aqui anteriormente da chamada Ode ao Homem, o Canto Primeiro da Antígona de Sófocles. Ontem, ao ouvir o salmo que abaixo transcrevo, não pude deixar de notar os paralelismos entre os dois textos, que, contudo, quando cotejados, deixam sobretudo perceber a distância entre as duas mundividências, a grega e a hebraica.
Quando contemplo os céus, obra das tuas mãos,
a Lua e as estrelas que Tu criaste:
que é o homem para te lembrares dele,
o filho do homem para com ele te preocupares?
Quase fizeste dele um ser divino;
de glória e de honra o coroaste.
Deste-lhe domínio sobre as obras das tuas mãos,
tudo submeteste a seus pés:
rebanhos e gado, sem excepção,
e até mesmo os animais bravios;
as aves do céu e os peixes do mar,
tudo o que percorre os caminhos do oceano.
Ó Senhor, nosso Deus,
como é admirável o teu nome em toda a terra!
A tradução é de José Augusto Ramos, para a Nova Bíblia dos Capuchinhos, da Difusora Bíblica, a edição standard. Nenhuma das conquistas do Homem sobre a Natureza a que o salmista alude deixa de encontrar eco no poema de Sófocles (tradução de MHRP):
E, todavia, insistimos, mau grado todo este louvor ao Homem, os textos são fundamentalmente diferentes, e não é difícil ver porquê. Se Sófocles sublinha como foi o Homem, por si próprio (lembremo-nos daquele ἐδιδάξατο), que conseguiu dominar a Natureza, o salmista tem o cuidado de deixar claro que se o ser humano é senhor da criação é-o por graça de Deus, que «tudo submet[eu] a seus pés». Achar que o Homem, pelo seu «engenho» (para usar a palavra de Sófocles), poderia chegar sozinho à domesticação e controlo do mundo animal seria uma espécie de pelagianismo. O Homem pode o que Deus lhe concede. Não deixa, por isso, de ser curioso notar que a cidade, que ocupa um lugar charneiro na Ode de Sófocles, está pura e simplesmente ausente desta salmo. Efectivamente, a cidade, na medida em que é uma criação do Homem apenas, e não de Deus, no princípio dos tempos, poderia levantar um problema teológico, ao ser louvada: o seu elogio seria sempre mais um canto ao Homem, seu criador, do que de Deus, como o é o salmo, conhecido, aliás, como 'Hino ao Criador do Homem'. A cidade, aliás, tem muitas vezes uma conotação negativa no mundo hebraico, enquanto espaço da perversão (é, não o esqueçamos, uma criação de Caim, Gen 4,17). Há uma certa desconfiança pela sedentarização, própria de um povo em marcha, como o judeu, oriundo do deserto. Não consigo deixar de suspeitar que o antropocentrismo grego tem muito que ver com o seu πόλις-centrismo e que a ausência desta última dimensão entre os hebreus pode, por sua vez, ter alguma relação (não necessariamente de causalidade) com o seu teocentrismo. O louvor ao Homem, no salmo, nunca atinge, pois, a plenitude que a autonomia grega, pelo contrário, lhe permite. Não há nenhuma contradição, nem talvez coincidência, no facto de o homem que afirmou ser o Humano a medida de todas as coisas ter sido o mesmo que declarou nada podermos saber dos deuses.
E das aves as tribos descuidadas,O Homem merece a Sófocles o epíteto de δεινότερον, «o mais assombroso», e o salmista dá-lhe um estatuto quase divino. A palavra hebraica vertida como «ser divino» é mesmo «deus». O arrojo do verso nunca foi, porém, totalmente aceite, parece: na Septuaginta, «ser divino» (já por si uma tradução que mitiga a força do original, mesmo se tem o cuidado de o registar em nota) surge traduzido como «anjo» e é assim que Paulo, em Heb 2, 6-8, cita o texto. Apesar de São Jerónimo se ter mantido fiel ao hebraico na Vulgata, a sua lição nem sempre foi seguida: veja-se a King James Bible ou, entre nós, a tradução de João Ferreira d'Almeida (a editada pela Assírio em oito volumes, com ilustrações de Ilda David').
a raça das feras,
em côncavas redes
a fauna marinha, apanha-as e prende-as
o engenho do Homem.
Dos animais do monte, que no mato
habitam, com arte se apodera;
domina o cavalo
de longas crinas, o jugo lhe põe,
vence o touro indomável das alturas.
E, todavia, insistimos, mau grado todo este louvor ao Homem, os textos são fundamentalmente diferentes, e não é difícil ver porquê. Se Sófocles sublinha como foi o Homem, por si próprio (lembremo-nos daquele ἐδιδάξατο), que conseguiu dominar a Natureza, o salmista tem o cuidado de deixar claro que se o ser humano é senhor da criação é-o por graça de Deus, que «tudo submet[eu] a seus pés». Achar que o Homem, pelo seu «engenho» (para usar a palavra de Sófocles), poderia chegar sozinho à domesticação e controlo do mundo animal seria uma espécie de pelagianismo. O Homem pode o que Deus lhe concede. Não deixa, por isso, de ser curioso notar que a cidade, que ocupa um lugar charneiro na Ode de Sófocles, está pura e simplesmente ausente desta salmo. Efectivamente, a cidade, na medida em que é uma criação do Homem apenas, e não de Deus, no princípio dos tempos, poderia levantar um problema teológico, ao ser louvada: o seu elogio seria sempre mais um canto ao Homem, seu criador, do que de Deus, como o é o salmo, conhecido, aliás, como 'Hino ao Criador do Homem'. A cidade, aliás, tem muitas vezes uma conotação negativa no mundo hebraico, enquanto espaço da perversão (é, não o esqueçamos, uma criação de Caim, Gen 4,17). Há uma certa desconfiança pela sedentarização, própria de um povo em marcha, como o judeu, oriundo do deserto. Não consigo deixar de suspeitar que o antropocentrismo grego tem muito que ver com o seu πόλις-centrismo e que a ausência desta última dimensão entre os hebreus pode, por sua vez, ter alguma relação (não necessariamente de causalidade) com o seu teocentrismo. O louvor ao Homem, no salmo, nunca atinge, pois, a plenitude que a autonomia grega, pelo contrário, lhe permite. Não há nenhuma contradição, nem talvez coincidência, no facto de o homem que afirmou ser o Humano a medida de todas as coisas ter sido o mesmo que declarou nada podermos saber dos deuses.