Então eu, ao ouvir isto, reflecti assim: «Que indicará o deus [Apolo] e que deixa ele perceber? Se eu nem muito nem pouco reconheço ser sabedor, que poderá ele querer dizer, ao afirmar que eu sou o mais sábio? Pois com certeza não mente, não tem esse direito!»
[ταῦτα γὰρ ἐγὼ ἀκούσας ἐνεθυμούμην οὑτωσί: “τί ποτε λέγει ὁ θεός, καὶ τί ποτε αἰνίττεται; ἐγὼ γὰρ δὴ οὔτε μέγα οὔτε σμικρὸν σύνοιδα ἐμαυτῷ σοφὸς ὤν: τί οὖν ποτε λέγει φάσκων ἐμὲ σοφώτατον εἶναι; οὐ γὰρ δήπου ψεύδεταί γε: οὐ γὰρ θέμις αὐτῷ.”]
Platão, Apologia de Sócrates 21b
INCM, Lisboa: 1983. (trad.: José Trindade Santos)
Mas Apolo como o deus da arte, porque o deus mentiroso («ficção»: do latim fingo, 'criar', em português: 'fingir' — a língua é hegeliana: a palavra só no fim da sua evolução acha a sua verdade, a consciência de si). Sugestão, então: pensar toda a Apologia como uma tragédia-farsa, em que o deus assiste, com prazer, ao julgamento do mortal que, porque acreditou nele e no seu oráculo falso, se condenou. Sócrates, o apolíneo à machada, por auto-sugestão. Apolo, na realidade, nunca quis nada com ele, quando muito arranjar matéria para que um seu protegé compusesse obras maiores e não, como os outros, para se perderem, tragédias. Sócrates: o sacrifício de Apolo para Platão.
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Nem aprovaremos a passagem de Ésquilo, onde Tétis diz que Apolo, ao cantar nos seus esponsais, lhe predissera uma feliz progénie
de filhos destinados a uma vida longa, isenta de doenças.Após ter anunciado que de tudo os deuses velariam com amor, no meu destino,entoou o péan, para alegria do meu coração.E eu julgava que a boca divina de Feboplena com o sopro da profecia, não tinha lugar para a mentira.E ele, o mesmo que cantou este hino, que estava presente na festa,o mesmo que previu este futuro, ele mesmo é que matou o meu filho.
[οὐδὲ Αἰσχύλου, ὅταν φῇ ἡ Θέτις τὸν Ἀπόλλω ἐν τοῖς αὑτῆς γάμοις ᾁδοντα “ἐνδατεῖσθαι τὰς ἑὰς εὐπαιδίας/ νόσων τ᾽ ἀπείρους καὶ μακραίωνας βίους,/ ξύμπαντά τ᾽ εἰπὼν θεοφιλεῖς ἐμὰς τύχας/ παιᾶν᾽ ἐπηυφήμησεν, εὐθυμῶν ἐμέ./ κἀγὼ τὸ Φοίβου θεῖον ἀψευδὲς στόμα/ ἤλπιζον εἶναι, μαντικῇ βρύον τέχνῃ:/ ὁ δ᾽, αὐτὸς ὑμνῶν, αὐτὸς ἐν θοίνῃ παρών,/ αὐτὸς τάδ᾽ εἰπών, αὐτός ἐστιν ὁ κτανὼν/ τὸν παῖδα τὸν ἐμόν—”]
Platão, República 2.383b (= Ésquilo, frg. 350)
Guimarães, Lisboa: 2005. (trad.: Elísio Gala)
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[Atena fala, justificando Apolo e transmitindo as suas ordens:] Assim, Apolo conduziu tudo bem. Primeiro, fez que tivesses o teu filho sem sofrimento e ninguém soube de nada, graças a ele. Quando puseste no mundo a criança e a envolveste em faixas, pediu a Hermes que a recolhesse em seus braços e a trouxesse para cá [Delfos], alimentou-a e não permitiu que morresse. Agora, tu não reveles que esta criança é tua, para que a ilusão possa agradavelmente possuir Xuto, e abandona este templo, mulher, para teu bem.
[καλῶς δ᾽ Ἀπόλλων πάντ᾽ ἔπραξε: πρῶτα μὲν/ ἄνοσον λοχεύει σ᾽, ὥστε μὴ γνῶναι φίλους:/ ἐπεὶ δ᾽ ἔτικτες τόνδε παῖδα κἀπέθου/ ἐν σπαργάνοισιν, ἁρπάσαντ᾽ ἐς ἀγκάλας/ Ἑρμῆν κελεύει δεῦρο πορθμεῦσαι βρέφος,/ ἔθρεψέ τ᾽ οὐδ᾽ εἴασεν ἐκπνεῦσαι βίον./ νῦν οὖν σιώπα, παῖς ὅδ᾽ ὡς πέφυκε σός,/ ἵν᾽ ἡ δόκησις Ξοῦθον ἡδέως ἔχῃ,/ σύ τ᾽ αὖ τὰ σαυτῆς ἀγάθ᾽ ἔχουσ᾽ ἴῃς, γύναι./ καὶ χαίρετ᾽: ἐκ γὰρ τῆσδ᾽ ἀναψυχῆς πόνων/ εὐδαίμον᾽ ὑμῖν πότμον ἐξαγγέλλομαι.]
Eurípides, Íon 1595-1605
Liga de Amigos de Conímbriga, Condeixa: 2001.
(trad.: Manuel Pulquério e Maria da Silva Álvares)
imagem: estátua de Apolo, de uma villa de Tusculum
séc. I-II d.C., @ Glyptothek Museum, Munique
Sobre Sócrates: se o deus não mente, porquê tentar refutá-lo? O Apolo de Sócrates é pouco de fiar. O sacrifício de Apolo, talvez, mas não inconscientemente da parte de Sócrates. Sugestão de correcção "afasta de mim esta taça..."
ResponderEliminarSou forçado a concordar contigo: Sócrates está longe de acreditar piamente no deus, se passa toda a vida a tentar provar que o seu oráculo é fundamentalmente falso. Teria de reescrever o post, o que não farei agora, mas tomarei registo da tua crítica inteligente. Bendito Platão, que sob uma afirmação tão banal e pia, consegue, afinal, esconder, sempre, a profunda, destabilizadora ironia de Sócrates. Gosto da tua sugestão de correcção (influências do Strauss, ou?).
ResponderEliminarInfluências tuas, mais correctamente dizendo.
ResponderEliminarBelíssimo post!
ResponderEliminarMas não esqueçamos que Apolo é Lóxias (Λόξιας), "O" Oblíquo. De acordo com Heráclito (DK 22, B 93) "o senhor, de quem é o óraculo que está em Delfos, nem diz, nem esconde, mas sinaliza" (ὁ ἄναξ, οὗ τὸ μαντεῖόν ἐστι τὸ ἐν Δελφοῖς, οὔτε λέγει οὔτε κρύπτει ἀλλὰ σημαίνει).
O dito do oráculo era um enigma a ser desvendado e quem não se lançasse a uma investigação do mesmo poderia sofrer sérias consequências, é só lembrar do episódio de Creso narrado por Heródoto (1.86-91). Revoltado com a derrota que sofrera, após crer no dito oracular, Creso envia seus homens à Pítia para questionar o deus sobre o fato e a Pítia responde (1.91): "Sobre o oráculo ainda, Creso não tem razão de se lamentar. Apolo predissera-lhe que, fazendo guerra aos Persas, destruiria um grande império. Se, ante essa resposta, Creso tivesse demonstrado maior iniciativa, teria mandado perguntar ao deus se se tratava do império dos Lídios ou do de Ciro. Não tendo, nem apreendido o sentido do oráculo, nem interrogado de novo o deus, não deve queixar-se senão de si mesmo (trad. do grego por Pierre Henri Larcher)." Enfim, é da natureza de Apolo ser obscuro e é dever do ouvinte investigar seus oráculos. Então, se nem um homem comum deveria deixar de investigar o oráculo, que dirá Sócrates, o mestre do élenkhos, não é mesmo?
Abraço!
Mas Dana, o que está em causa tanto no post do João quanto na minha objecção é algo diferente:
ResponderEliminarNunca está em questão que o oráculo deva ser interpretado: o filósofo é um hermeneuta desde o princípio. Mas a possibilidade duma interpretação sábia implica que haja um sentido divino por detrás dos σήματα do deus. Que Apolo sempre é dúbio é certo, mas poderá Apolo mentir? Poderá a mais sábia interpretação do Seu oráculo conduzir a uma mentira? Creio que é isto que o post do João tenta perguntar. O que eu por minha vez perguntei era se Sócrates estaria realmente a ser ingenuamente conduzido pelo signo falso do deus, se Sócrates estaria a ser levado para a sua desgraça pelos desígnios de Apolo que lhe teria concedido um oráculo falso, ou se na realidade Sócrates sempre suspeitara de Delphos: o texto é claro: "ἐλέγξων τὸ μαντεῖον καὶ ἀποφανῶν τῷ χρησμῷ ὅτι “Οὑτοσὶ ἐμοῦ σοφώτερός ἐστι, σὺ δ' ἐμὲ ἔφησθα.” Sócrates deseja elenkhein o oráculo /[para] que/ [hoti] esse elenkhos torne claro [apophanein] que aquilo que o deus dissera não era verdade. Aqui o elenkhos não me parece o "examinar" do uso quasi-técnico, mas sim algo mais que isso: as traduções sem excepção usam 'refutar', e a meu ver justamente.
Ora se Sócrates não age como seria de esperar: não se tenta refutar alguém cuja opinião cremos; investigaremos um cidadão, e refutá-lo-emos; investigaremos o deus, mas não o ousaremos desejar refutar, a não ser que a nossa fé seja menos que pura. Sócrates não é um joguete.
Miguel, muito obrigada pela resposta. Gosto demais desta belíssima ágora virtual que vocês criaram. Parabéns.
ResponderEliminarMas Miguel, se Sócrates tinha real pretensão de conseguir refutar o dito do deus, não há como sabermos, sabemos apenas que a intenção primeira de Sócrates era de refutá-lo e que sua intenção última era de desvelá-lo e não negá-lo. "Nisto" é que o texto da Apologia é claro, pois esta passagem não pode ser interpretada isoladamente, i.é, sem os resultados da investigação socrática dirigida aos políticos, poetas e artesãos. No fim das contas, entre mortos e feridos, salvam-se todos: Apolo e Sócrates, ambos são poupados pela pena de Platão, pois ambos estão certos. Ao menos esta é minha interpretação do que chamo "aporia das medidas" no episódio do oráculo dirigido a Querefonte. Na impossibilidade de resumir aqui esta minha hipótese, deixo o arquivo online da minha dissertação que consta de tradução e comentário da Apologia platônica: http://www.faculdadejesuita.edu.br/ler_conteudo.asp?id=612
Grande abraço,
dana
Olá Dana! Também nós gostamos, e, igualmente, demais! :)
ResponderEliminarEstive a ler o que escreveste na tua dissertação (nas página 60+) em relação às duas possibilidades de interpretação da atitude de Sócrates para com o Oráculo: se bem percebi, a tentativa dele de elenkhein o deus poder-se-ia inserir em duas situações: ou 1) Sócrates está meramente a dizer que tentara refutar o oráculo para melhor apresentar o seu caso forense, ou seja seria um artifício retórico que não corresponderia ao modo como as coisas se tinham realmente passado; ou 2) Sócrates tenta refutar o oráculo porque este é o modo que mais honra faz ao deus, "testar" a Sua thémis contra as capacidades do humano elenkhos. Optas pela segunda opção, o que leva a uma resposta coerente: e aqui perdoar-me-ás, pois muito embora digas que o facto de tal opção te parecer mais coerente com o Sócrates da Apologia será demonstrado ao longo da dissertação, infelizmente não tenho agora possibilidade de a ler por completo (embora esteja com vontade!) Sigamos porém a segunda: porque é que Sócrates não estaria disposto a usar recursos retóricos -e isto é um eufemismo: porque é que Sócrates não estaria disposto a mentir em público para melhor apresentar o seu caso -- ou pelo menos recorrer a perspectivas menos brilhantemente verdadeiras? Ainda que não recorramos aos outros diálogos (pois o que é a ironia que não a ilusão ficcional de que se sabe menos do que se sabe?-- uma mentira?), como lidar com a passagem do início da Apologia, do jogo aberto do "nada compreendo de retórica", procedendo imediatamente a falar plenus rhetorica? Aceitar o discurso de Sócrates at face value pode ser prejudicional no longo prazo, em particular nos seus comentários sobre a sua piedade. Depois do exame dos políticos/poetas/artífices, Sócrates sai-se com a seguinte frase: ταῦτ' οὖν ἐγὼ μὲν ἔτι καὶ νῦν περιιὼν ζητῶ καὶ ἐρευνῶ κατὰ τὸν θεὸν καὶ τῶν ἀστῶν καὶ ξένων ἄν τινα οἴωμαι σοφὸν εἶναι· καὶ ἐπειδάν μοι μὴ δοκῇ, τῷ θεῷ βοηθῶν ἐνδείκνυμαι ὅτι οὐκ ἔστι σοφός (23b) (Estas investigações, continuo ainda hoje a realizá-las pela cidade, interrogando, de acordo com o oráculo do deus, todo aquele cidadão ou estrangeiro que me parece ser sábio. E, quando chego à conclusão contrária, é em defesa do deus que demonstro a sua [do cidadão ou estrangeiro] ignorância.”) O grego diz ἐπειδάν μοι μὴ δοκῇ, mais do que “quando chego à conclusão contrária”, “quando quer que chegue à conclusão contrária”: será que ele alguma vez chegou a uma opinião contrária? O oráculo do deus já alguma vez foi refutado? É uma pergunta que fica em aberto (e aberto mesmo, entendendo-se por isso que eu não estou a tentar implicar que sim). Mas se oráculo tiver sido refutado, ou, melhor dizendo, se o oráculo não for nunca de fiar? — não há razão pela qual Sócrates tentaria de justa sabedoria tentar acreditar ou desacreditar um oráculo no qual ele nunca realmente acreditou se não tivesse uma intenção ulterior para o fazer. E o que eu penso realmente que é a única saída para o problema de Sócrates o tentar refutar: nunca acreditou nele. Compreendo a tua ideia de que ele tente chocar contra a thémis do deus através do elenkhós (numa espécie de procedimento cartesiano para poder chegar à verdade do deus), mas ainda assim permaneço em crer que, aquilo no qual alguém crê religiosamente (e não simplesmente julga estar certo, do mesmo modo que uma opinião humana pode estar certa), não é posto à prova mas sim imediatamente aceite: Jesus não se lança do pináculo do Templo.
Sou portanto da opinião de que Sócrates nunca realmente creu no oráculo de Delphos, que portanto a acusação de impiedade era justa (mesmo se as outras não o fossem), e que o facto de ele se ter escapado a ser denunciado se deveu a uma incompetência da parte dos acusadores. Sócrates pode ter usado o elenkhos não como uma ferramenta divina mas como uma ferramenta humana: ética, se no-lo permitirmos. Um instrumento que permita aos cidadãos compreenderem-se melhor. Quando Sócrates pergunta a Meleto se este o acusa de não acreditar apenas nos deuses da cidade, ou de não acreditar em deuses de todo, este lança-se como um cão raivoso e acusa-o de não acreditar nos deuses de todo. É uma armadilha lançada por Sócrates, e tem sorte que Meleto não volte atrás na acusação: porque o que poderia Sócrates responder se este o acusasse de não acreditar nos deuses da cidade? Penso que seria forçado a admitir a verdade, e é por isso que tenta com meticuloso sucesso encurralar Meleto e livrar-se dessa pergunta incriminatória.
ResponderEliminar:) Quantas considerações. Socraticamente, adoro este sinal: ? , e a resposta esta repleta dele. Mas a semana começou apertada, voltarei com calma para continuarmos o debate.
ResponderEliminarAbraço.
Miguel,
ResponderEliminarretorno, enfim, porém brevemente, pois os demais já não devem nos suportar neste debate ;)
Primeiro preciso deixar bem claro que o fato de eu recusar a hipótese da mentira por parte de Sócrates não se deve a qualquer puritanismo de minha parte. Não se deve negar o fogo do inferno a um filósofo :) É o "meu" argumento que é retórico, ou digamos assim: imbuído do espírito da obra. O "personagem" Sócrates nega mentir e é este personagem que eu analiso, não a figura histórica. Platão põe na boca de Sócrates o argumento "dizer a verdade" um sem número de vezes na Apologia, e acredito que é assim que este discurso de defesa deva ser lido: como uma obra ficcional que levanta a pretensão de verdade. Se Sócrates disse ou não a verdade durante a defesa, meu caro, é simplesmente impossível de se saber.
Em seguida, acho um tantinho anacrônica sua concepção de crença no mundo grego: "crer religiosamente", "Jesus não se lançaria do pináculo", não me parecem caber no mundo grego. Mas talvez assim saiamos da Apologia e entremos no Eutifron. Com efeito, na Apologia, Sócrates defende-se de impiedade sem dizer uma única vez que crê nos deuses. E nem por isso é este um argumento forte o suficiente para se bater o martelo e dizer que ele não cria. Afinal, o próprio nos questionaria: o que seria a piedade, meus caros?
Abraço,
dana