Não perguntamos se se traduz correctamente ὄν (on) por “que é/sendo” e εἶναι (einai) por “ser”. Perguntamos apenas se, ao traduzir correctamente, também se pensa correctamente. Perguntamos apenas se, nessa tradução — a mais corriqueira de todas as traduções —, ainda se pensa alguma coisa.
Examinemos. Examinemo-nos a nós mesmos e aos outros. Então, mostra-se: ao traduzir-se correctamente, tudo permanece dissipado em significados oscilantes e imprecisos. Então, mostra-se: o carácter mediano e sempre apressado da tradução corrente não é visto, de todo, como um falha. E muito menos perturba a investigação e a exposição. Fazem-se, porventura, grandes esforços para desvendar o que os gregos entendiam por palavras como θεός (theos), ψυχή (psychê), ζωή (zoê), τύχη (tychê), χάρις (cháris), λόγος (logos), φύσις (physis), e ἰδέα (idea), τέχη (technê) e ἐνέργεια (energeia)*. Porém, não pensamos no facto de que tais e semelhantes esforços caem, em todos os casos, no vazio e numa terra de ninguém, enquanto não se tiver iluminado suficientemente, na sua essência grega, o domínio de todos os domínios, o ὄν e o εἶναι.
[…]
Poderíamos afirmar com exagero, mas com o peso não menor da verdade: o destino da “terra do poente” [do “Ocidente”] está suspenso da tradução da palavra [ἔ]ον ([e]on), contando que a tradução assente numa tradução que transponha para a verdade daqui que, em [ἔ]ον ([e]on), vem a ter expressão na linguagem.
[…]
Uma mera tradução causou isto? Porém, talvez aprendamos a reflectir sobre o que pode acontecer no traduzir. O autêntico encontro histórico das linguagens históricas é um momento de apropriação silencioso. Nele fala, porém, o destino do ser. Para que linguagem se conduz a terra do poente?
* Respectivamente, e em “traduções corriqueiras”, deus, alma, vida, acaso, graça, palavra, natureza, ideia, técnica, energia.
Martin Heidegger, O dito de Anaximandro in Caminhos de Floresta. João Constâncio (trad.) Gulbenkian (1998)
PS: Possíveis tradutores que estejam a ler isto, talvez seja uma boa altura para pedir um aumento, não obstante a crise (do grego κρίσις krísis).
PS: Possíveis tradutores que estejam a ler isto, talvez seja uma boa altura para pedir um aumento, não obstante a crise (do grego κρίσις krísis).
Sem comentários:
Enviar um comentário