segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O Desejo & A Necessidade

Sócrates — Vou dizer-te o que me parece. Diz-me o seguinte: dos laços que mantêm qualquer ser vivo seja onde for, qual é o mais forte, a necessidade ou o desejo?
Hermógenes — É o desejo, ó Sócrates, e de muito longe.
Sócrates — E não te parece que muitos fugiriam ao Hades, se ele não ligasse pelo mais forte dos laços aqueles que para lá vão?
Hermógenes — É evidente que sim.
Sócrates — Parece então que ele os liga por um certo desejo, se é certo que os liga pelo laço mais forte, e não pela necessidade.

Platão, Crátilo 403c
Piaget, Lisboa: 2001. (trad.: Maria José Figueiredo)

Sócrates argumentará em seguida que o maior desejo de todos é o de viver com alguém que nos faça melhores. Ora no Além iremos encontrar-nos com quem é mais sábio do que nós (uma esperança já presente no Fédon), razão porque, diz, ninguém quer de lá regressar, e as almas aí permanecem. O que me interessa verdadeiramente nesta passagem, porém, é a ousadia platónica de declarar que é mais forte o desejo (ἐπιθυμία) do que a necessidade (ἀνάγκη). Lembremos que a necessidade é um dos conceitos-chave da teoria trágica grega, por sua vez uma pedra-angular do espírito helénico. Mas mesmo fora do contexto grego, apenas considerada sob um ponto de vista filosófico, a afirmação é de uma violência invulgar. A necessidade é, na tradição do pensamento ocidental, aquilo que, por definição, e perdoem-me a redundância, é necessário, ou seja, o que não se pode evitar, o que tem de ser, o que não pode não ser. E Platão, com a descontracção de um génio, face a tudo isso, diz apenas: o desejo pode mais.

[Σωκράτης: ἐγώ σοι ἐρῶ ἅ γέ μοι φαίνεται. εἰπὲ γάρ μοι, δεσμὸς ζῴῳ ὁτῳοῦν ὥστε μένειν ὁπουοῦν, πότερος ἰσχυρότερός ἐστιν, ἀνάγκη ἢ ἐπιθυμία;
Ἑρμογένης: πολὺ διαφέρει, ὦ Σώκρατες, ἡ ἐπιθυμία.
Σωκράτης: οἴει οὖν τὸν Ἅιδην οὐκ ἂν πολλοὺς ἐκφεύγειν, εἰ μὴ τῷ ἰσχυροτάτῳ δεσμῷ ἔδει τοὺς ἐκεῖσε ἰόντας;
Ἑρμογένης: δῆλα δή.
Σωκράτης: ἐπιθυμίᾳ ἄρα τινὶ αὐτούς, ὡς ἔοικε, δεῖ, εἴπερ τῷ μεγίστῳ δεσμῷ δεῖ, καὶ οὐκ ἀνάγκῃ.]

imagem: manuscrito do Crátilo por Julie C. Sparks, copiando as iluminuras bizantinas.
O processo de composição pode ser seguido com todo o detalhe aqui.

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