domingo, 30 de janeiro de 2011

Cidades Visíveis & Lares Invisíveis



Deuses de duas espécies protegem a cidade de Leandra. Tanto uns como outros são tão pequenos que não se vêem e tão numerosos que não se podem contar. Uns estão às portas das casas, dentro delas, ao pé do cabide e do suporte dos guarda-chuvas; nas mudanças acompanham as famílias e instalam-se nos novos alojamentos no momento da entrega das chaves. Os outros estão na cozinha, escondem-se de preferência debaixo das panelas, ou no cano da chaminé, ou no canto das vassouras: fazem parte da casa e, quando a família que nela habitava se vai embora, ficam com os novos inquilinos; talvez já ali estivessem quando a casa ainda não existia, entre as ervas daninhas da área para construção, escondidos numa lata ferrugenta; se se deitar a casa abaixo e no seu lugar se construir um prédio para cinquenta famílias, vamos encontrá-los multiplicados, na cozinha de outros tantos apartamentos: Para os distinguir, vamos chamar Penates a uns e aos outros Lares.

Numa casa, nem sempre é certo que os Lares estejam com OS Lares e os Penates com os Penates: frequentam-se, passeiam juntos pelos caixilhos do estuque ou pelos tubos dos termo-sifóes, comentam, os assuntos da família, é fácil brigarem, mas também podem dar-se bem durante anos e anos; vendo-os todos em fila não se distingue qual é um e qual é o outro. Os Lares já viram passar por entre as suas paredes Penates das mais diversas proveniências e costumes; os Penates têm de arranjar lugar às cotoveladas com os Lares de ilustres palácios em decadência, plenos de sossego, ou com os Lares de barracas de bairros de lata, susceptíveis e desconfiados.

A verdadeira essência de Leandra é assunto de discussões sem fim. Os Penates julgam ser eles a alma da cidade, mesmo que só tenham chegado no ano passado, e que levam Leandra consigo quando emigram. Os Lares consideram os Penates visitantes provisórios, importunos e metediços; a verdadeira Leandra é a sua, que dá forma a tudo o que contém, a Leandra que já ali estava antes que chegassem todos estes intrusos e ali ficará quando todos se tiverem ido embora.

Em comum têm isto: sobre tudo o que acontece em família e na cidade acham sempre motivo para dizer mal, os Penates vão desencantar os velhos, os bisavós, as tias-avós, a família de outrora, os Lares o ambiente como era antes que dessem cabo dele. Mas não é certo que vivam só de recordações: matutam projectos sobre a carreira que farão as crianças quando forem grandes (os Penates), sobre o que poderia vir a ser aquela casa ou aquela zona (os Lares) se estivesse em boas mãos. Escutando bem, especialmente de noite, nas casas de Leandra ouvem-se num tagarelar cerradíssimo, gritarem uns com os outros, trocarem motejos, ventos e risadinhas irónicas.


Italo Calvino. As Cidades Invisíveis, José Colaço Barreiros (trad). Teorema: 1990.

Dèi di due specie proteggono la città di Leandra. Gli uni e gli altri sono cosí piccoli che non si vedono e cosí numerosi che non si possono contare. Gli uni stanno sulle porte delle case, all'interno, vicino all'attaccapanni e al portaombrelli; nei traslochi seguono le famiglie e s'installano nei nuovi alloggi alla consegna delle chiavi. Gli altri stanno in cucina, si nascondono di preferenza sotto le pentole, o nella cappa del camino, o nel ripostiglio delle scope: fanno parte della casa e quando la famiglia che ci abitava se ne va, loro restano coi nuovi inquilini; forse erano già lí quando la casa non c'era ancora, tra l'erbaccia dell'area fabbricabile, nascosti in un barattolo arrugginito; se si butta giú la casa e al suo posto si costruisce un casermone per cinquanta famiglie, ce li si ritrova moltiplicati, nella cucina d'altrettanti appartamenti. Per distinguerli, chiameremo Penati gli uni e gli altri Lari.

In una casa, non è detto che i Lari stiano sempre coi Lari e i Penati coi Penati: si frequentano, passeggiano insieme sulle cornici di stucco, sui tubi dei termosifoni, commentano i fatti della famiglia, è facile che litighino, ma possono pure andar d'accordo per degli anni; a vederli tutti in fila non si distingue quale è l'uno e quale è l'altro. I Lari hanno visto passare tra le loro mura Penati delle piú diverse provenienze e abitudini; ai Penati tocca farsi un posto gomito a gomito coi Lari d'illustri palazzi decaduti, pieni di sussiego, o coi Lari di baracche di latta, permalosi e diffidenti.

La vera essenza di Leandra è argomento di discussioni senza fine. I Penati credono d'essere loro l'anima della città, anche se ci sono arrivati l'anno scorso, e di portarsi Leandra con sé quando emigrano. I Lari considerano i Penati ospiti provvisori, importuni, invadenti; la vera Leandra è la loro, che dà forma a tutto quello che contiene, la Leandra che era lí prima che tutti questi intrusi arrivassero e resterà quando tutti se ne saranno andati.

In comune hanno questo: che su quanto succede in famiglia e in città trovano sempre da ridire, i Penati tirando in ballo i vecchi, i bisnonni, le prozie, la famiglia d'una volta, i Lari l'ambiente com'era prima che lo rovinassero. Ma non è detto che vivano solo di ricordi: almanaccano progetti sulla carriera che faranno i bambini da grandi (i Penati), su cosa potrebbe diventare quella casa o quella zona (i Lari) se fosse in buone mani. A tendere l'orecchio, specie di notte, nelle case di Leandra, li senti parlottare fitto fitto, darsi sulla voce, rimandarsi motteggi, sbuffi, risatine ironiche.




Para que ninguém se pergunte quem sou eu, passo a explicar.
Eu sou o Lar Familiar da família que mora aqui,
Donde acabei agora mesmo de sair. Já há imensos anos
Que assentei nesta casa e que trato dela,
Vim para cá com o pai e o avô do sujeito que agora aqui mora.
Passa-se então que o avô dele me confiou com muitas súplicas
Um tesouro de ouro às escondidas de todos! Escondeu-o
No meio da lareira, e implorou-me que lho protegesse.
Ora acontece que ele morreu. E visto que era ganancioso a valer,
Nunca quis mostrar ao filho onde é que o tinha escondido.
Preferiu antes abandoná-lo à miséria
Que mostrar ao filho onde é que estava o tesouro.
Deixou-lhe umas terras pequenitas
Para ele ir sobrevivendo com muito trabalho e misérias.
Quando morreu o velho, ou seja, o tipo que me tinha confiado o ouro,
Comecei a topar-lhe o filho. Será que ele me haveria
De honrar mais do que o pai dele?
Mas está-se já a ver que ele começou a respeitar-me
Menos e menos, e a negligenciar-me cada vez mais.
Portanto eu tratei-o da mesma maneira, e ele também morreu.

Plauto. Aulularia (A Comédia do Pote). 1-20. Tradução minha.


Ne quis miretur qui sim, paucis eloquar.
ego Lar sum familiaris ex hac familia
unde exeuntem me aspexistis. hanc domum
iam multos annos est cum possideo et colo
patri avoque iam huius qui nunc hic habet.
sed mi avos huius obsecrans concredidit
thensaurum auri clam omnis: in medio foco
defodit, venerans me ut id servarem sibi.
is quoniam moritur—ita avido ingenio fuit—
numquam indicare id filio voluit suo,
inopemque optavit potius eum relinquere,
quam eum thensaurum commonstraret filio;
agri reliquit ei non magnum modum,
quo cum labore magno et misere viveret.
ubi is obiit mortem qui mihi id aurum credidit,
coepi observare, ecqui maiorem filius
mihi honorem haberet quam eius habuisset pater.
atque ille vero minus minusque impendio
curare minusque me impertire honoribus.
item a me contra factum est, nam item obiit diem.


Na imagem, o Lararium da Casa dos Vétios em Pompeia. 
No Larário honravam-se tanto Lares como Penates, e ambos aparecem retratados no fresco.

Sem comentários:

Enviar um comentário