É que os nossos altares e braseiros todos estão poluídos pelas aves e cães que comeram do infeliz filho de Édipo, que jaz no sítio onde caiu. E depois os deuses não aceitam da nossa parte as súplicas que acompanham os sacrifícios, nem a chama das oferendas, nem as aves soltam gritos de bom augúrio, pois devoraram a gordura do sangue de um homem morto.
Sófocles, Antígona (1016-1022)
Festea, Coimbra: 2006 (trad.: Maria Helena Rocha Pereira).
[βωμοὶ γὰρ ἡμῖν ἐσχάραι τε παντελεῖς/ πλήρεις ὑπ᾽ οἰωνῶν τε καὶ κυνῶν βορᾶς/ τοῦ δυσμόρου πεπτῶτος Οἰδίπου γόνου./ κᾆτ᾽ οὐ δέχονται θυστάδας λιτὰς ἔτι/ θεοὶ παρ᾽ ἡμῶν οὐδὲ μηρίων φλόγα,/ οὐδ᾽ ὄρνις εὐσήμους ἀπορροιβδεῖ βοάς/ ἀνδροφθόρου βεβρῶτες αἵματος λίπος.]
Alcorão, Sura 5, 30-31.
Europa-América, Mem Martins: 1989 (trad.: Américo de Carvalho).
[فَطَوَّعَتْ لَهُ نَفْسُهُ قَتْلَ أَخِيهِ فَقَتَلَهُ فَأَصْبَحَ مِنَ الْخَاسِرِينَ ﴿٣٠﴾ فَبَعَثَ اللَّـهُ غُرَابًا يَبْحَثُ فِي الْأَرْضِ لِيُرِيَهُ كَيْفَ يُوَارِي سَوْءَةَ أَخِيهِ ۚ قَالَ يَا وَيْلَتَا أَعَجَزْتُ أَنْ أَكُونَ مِثْلَ هَذَا الْغُرَابِ فَأُوَارِيَ سَوْءَةَ أَخِي ۖ فَأَصْبَحَ مِنَ النَّادِمِينَ ]*
O corvo, ave necrófila, é, entre os gregos (e tantos outros povos), animal mal-querido se não mesmo maldito («vai para os corvos» é a versão grega de «vai bugiar»). O grego tinha também grande medo de não receber, após a morte, as honras fúnebres devidas, temor que tem já expressão nos poemas homéricos: Heitor, antes de expirar, pede a Aquiles que restitua o seu cadáver à família e é precisamente a recusa em o fazer e o tratamento humilhante que vai dar ao corpo do príncipe troiano que farão os deuses intervir para pôr cobro à situação. O grande receio de Heitor é que a sua carne venha a ser devorada pelos cães, sem respeito pela santidade (o termo é propositadamente anacrónico, mas captura uma verdade) do corpo. Aquiles nega-lho, prometendo, pelo contrário, que as aves de rapina o comerão inteiro (22.337-354). Também na Odisseia (11.51-78), Elpenor, companheiro de Ulisses que morre ao cair bêbedo do telhado do palácio de Circe, quando encontra o herói no Hades, suplica-lhe que, no regresso, quando voltarem a Eeia, o sepultem. Na Antígona, o texto-mor no que a cadáveres insepultos (e a muitas outras coisas) diz respeito, Tirésias chama a atenção para a profanação da cidade, agora que os pássaros se alimentam do corpo exposto de Polinices. As aves sobre o morto, debicando-o, são, de facto, uma imagem terrível para o grego. Não pude, por isso, deixar de me surpreender quando hoje, folheando o Alcorão, dou com a passagem que acima transcrevi em que quem vai ensinar os homens a enterrar o primeiro morto é, espanto!, um corvo, a ave de rapina por excelência, com o abutre. Definitivamente, tenho de tirar tempo para o ano para ler o Alcorão numa boa edição. É triste que, numa altura em que o multiculturalismo se tornou o credo de uma idade cansada, o usemos, afinal, como uma capa para a nossa ignorância. O verdadeiro respeito envolve o confronto (à letra: o face-a-face) activo com o outro, curiosidade sincera, um desejo de conhecer que envolve a dádiva total, o investimento todo do ser, e não a mera contemplação à distança, da segurança (e altura) do nosso estilete. Steiner, que tive a oportunidade de ouvir em Viseu, no final do ano passado, perguntado sobre o que pensava da ascenção da China, entre outras coisas, sublinhou com preocupação, vendo nisso uma grande vantagem do Império do Meio, o facto de eles lerem os nosso clássicos (cf. os norte coreanos e Esopo), mas nós desconhecermos totalmente a literatura deles. Dos árabes sabemos uma mão cheia de lendas das Mil e Uma Noites e pouco mais. É pena. Eu ficava triste se eles não lessem os gregos (e foi porque leram Aristóteles que muito se salvou). Fica então combinado: para o ano leio o Alcorão (quem se junta?). Entretanto, vou seguindo a poesia árabe publicada aqui.
*Quem souber árabe, por favor, diga-me se aquilo está correcto.
imagem: The Body of Abel Found By Adam and Eve,
de William Blake (c. 1826) @ Tate Gallery, Londres.
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