quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Sobre as Utopias

Poder-se-ia dar o caso de as línguas estrangeiras se expandirem tanto quanto alguma vez fosse possível e ficar inteiramente aberto a todos os que tivessem aptidão o caminho para as obras mais nobres de cada uma delas; e continuaria a ser um empreendimento notável —que só reuniria à sua volta mais ouvintes, e mais expectantes — se alguém viesse prometer apresentar-nos uma obra de Cícero ou de Platão como esses homens a teriam eles próprios escrito directamente em alemão e agora. E se aparecesse um que nos levasse a acreditar que era capaz de fazer isso não só na sua língua materna, mas até mesmo numa outra estrangeira, esse então havia de ser aos nossos olhos evidentemente o maior mestre na difícil e quase impossível arte de dissolver uns nos outros os espíritos das diferentes línguas. Só que, como se vê, em sentido estrito, isso não seria traduzir, e o objectivo também não seria a mais exacta fruição possível da própria obra; antes resultaria cada vez mais em reconstituição, e, quanto à fruição, uma tal obra de arte ou de artificiosidade só a poderia proporcionar àquele que já antes conhecesse directamente o escritor em causa. E o verdadeiro objectivo só poderia ser, no particular, o de trazer à evidência a relação idêntica que muitas expressões e construções em diversas línguas mantêm com um carácter determinado, e, globalmente, o de ilustrar a língua com o espírito específico de um mestre estrangeiro, mas separando-o e desligando-o inteiramente da sua. Ora, como [...] este assenta numa ficção praticamente impossível de levar a cabo: percebe-se porque razão este método de traduzir só muito comedidamente se pratica, em tentativas que só por si mostram aliás distintamente que não é possível proceder assim em grande escala. Também assim se explica que certamente só excepcionais mestres, que podem permitir-se coisas extraordinárias, possam trabalhar segundo este método; e, com o direito de o fazerem, só aquele que já cumprirram as suas verdadeiras obrigações para com o mundo, e que por isso podem entregar-se de preferência um jogo excitante e algo perigoso.

Friedrich Schleiermacher. Sobre os Diferentes Métodos de Traduzir. José M. Miranda Justo (trad). Elementos Sudoeste: 2003

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