sexta-feira, 20 de janeiro de 2012
O olhar de Ulisses
À medida que entravam todos os convidados,
dei-me conta de que tu não estavas. Nada
de estranho, vendo bem, pois não sei
porque haveria de supor o contrário. Simplesmente
não entravas nesse filme, não tinhas sido chamada
para o casting, mesmo se, do recinto em volta
onde se juntava muita gente te tinha entrevisto
de repente, a olhar curiosa os salões
iluminados. Não sei que lógica sustentaria
esse não estares, acontecendo ainda assim
à minha volta, nem sei quantos barcos
haverão de naufragar em torno
antes que o mar volte a ser calmo,
acácias voltem a florir, etc. Há uma ilha
adiante, passo por ela, ou antes,
diviso-a na distância, e mesmo se pedi
aos companheiros para me amarrarem ao mastro
do navio, não é menos devastador o abismo
que se abre, já que é abismo pressentir
no sobressalto o regresso cruel do corpo
adolescente. Assim no cinema disso
te pude escutar, enquanto os olhos
cegavam devagar no fogo de contemplar ao longe
um sol que me puxava para si, e os convidados
provavelmente sem entenderem razões
para o seu próprio movimento, como espectros
continuavam a percorrer os corredores
da casa iluminada. E tilintavam cristais e
uma valsa dolente a todos arrastava, enquanto
o meu olhar fugia pelas janelas abertas, e as mãos
sem o saberem procuravam, ainda em desespero,
o que fosse talvez um pedaço de mar,
como se apenas já se soubessem sossegadas
no naufrágio. As mãos eram os olhos
atravessados do fogo. E simplesmente
não estares tornava tudo branco.
Bernardo Pinto de Almeida, Negócios em Ítaca, Relógio d' Água, 2011
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