terça-feira, 8 de março de 2011

Problemas de um Classicista de um País Pobre

Filodemo, filósofo epicurista do século I a.C., escreveu um tratado intitulado Acerca da Piedade (Περί ευσεβείας), que nos chegou num dos rolos carbonizados da villa dos papiros de Herculano (todas as suas obras que possuímos vêm daí: antes conhecíamos apenas uma mão-cheia de poemas preservados na Antologia Palatina). A primeira reconstrução do texto devêmo-la a Theodor Gomperz, em 1866. Em 1996, Dirk Obbink, o classicista actualmente à frente de Oxirrinco, publicou uma nova edição do tratado de Filodemo, que, como está bom de ver, ultrapassa, a todos os níveis, a anterior (a review da BMCR não teme afirmar que a edição de Obbink «deserves to be numbered among the greatest philological achievements of our generation»).

Querendo citar um passo do Acerca da Piedade num trabalho agora em mãos, procurei o livro na biblioteca do Instituto de Estudos Clássicos de Coimbra: não o encontrei. A base de dados do catálogo da FLUL também não acusou nada. Resolvi ir à amazon ver o preço: se relativamente acessível, talvez ainda o comprasse, um pouco por gula intelectual. No fim de contas, precisava tão-só do livro para encontrar o equivalente, na numeração de Obbink, de uma passagem cuja referência eu já tinha, mas na edição de Gomperz, que não queria usar, por estar agora superada. Desisti da ideia quando vi o preço da obra: £155 (182€/250$). Falamos apenas, note-se, do primeiro volume de um conjunto de dois (o segundo tarda em sair).

Quem vai comprar um livro a este preço? Unicamente especialistas na área e bibliotecas universitárias. O comprador comum (professor ou estudante) não é, claramente, o público a que se destina a edição (e não me digam para esperar pelo paperback, porque não o imagino muito mais acessível). Sei que estamos perante um volume grosso: setecentas páginas. Sei que este é o resultado de um labor exigente e do mais alto calibre, do melhor que, na área, foi feito nos últimos tempos: a edição crítica de Obbink é o produto de anos de trabalho violento. Justifica-se, porém, cobrar 182€ por ela (melhor dizendo: pela primeira parte)?  Não me serve de consolo dizerem-me que as bibliotecas compram, pois está provado que não o fazem — e eis que, sendo o livro necessário, falta.

Ao contrário, porém, do que seria talvez expectável, não me venho aqui, uma vez mais, queixar, com base agora neste exemplo, das graves limitações da biblioteca de Coimbra ou de Lisboa, que conheço pior. Pretendo antes chamar a atenção para um movimento em curso que me assusta, por ir resultar na exclusão do circuito académico de uma série de instituições, contribuindo para o reforço de outras, já actualmente muito poderosas. Ao praticarem preços tão elevados, as editoras de referência (como a Oxford, a Cambridge, a Brill ou a De Gruyter) impedem as universidades de países mais pobres de adquirir materiais porventura importantes. Parece-me que todo o bom centro de estudos clássicos deveria possuir as últimas edições críticas dos textos antigos e as novas publicações dos grandes nomes da área (sai em Março um livro de West sobre a Ilíada). Junte-se-lhe uma boa amostra da produção mais recente nas áreas principais de investigação: estudos homéricos, lírica arcaica, teatro, estudos platónicos, direito romano, cristianismo primitivo, roma arcaica et al. Quando o preço médio de cada livro ronda os 50-100€, torna-se difícil cumprir com estes requisitos simples.

Este é um problema sério. A proprina máxima é de coisa de 1000€: isso dá para uns escassos vinte livros, com boa-vontade, e é supor que o dinheiro é canalizado para isso, o que é obviamente falso (é possível que, dado o reduzido número de alunos em Clássicas, nós nem paguemos na íntegra o salário de um mês de todos os nossos professores juntos). A não ser que queiramos seguir a receita inglesa, e passar a ter propinas de £9000, não me parece que, no final do mês, sobre muito dinheiro à universidade para investir em livros. Mesmo os centros de investigação, que recebem, ao que me dizem, bom dinheiro, não deixarão de o usar, porém (e é justo), para adquirir o material mais necessário aos projectos de investigação em curso, atendendo aos pedidos dos bolseiros e professores. Como os classicistas, entre nós, não são uma espécie abundante, não é possível, como nos grandes países, ter um especialista em cada assunto, que zele por que a biblioteca tenha os mais recentes e importantes livros nessa mesma área. Pelo contrário: as nossas bibliotecas vão-se enchendo ao sabor dos projectos em desenvolvimento. Em Coimbra temos agora uma boa colecção de edições críticas e traduções de Plutarco; continua a faltar, porém, um livro crítico que seja sobre as Sátiras de Juvenal (temos apenas um comentário independente à décima).

Este post, porém, não serve tanto, insisto, para criticar a pobreza das nossas bibliotecas mas sim para as defender: aos preços do mercado, mesmo esperando pelas edições em paperback, como pode uma universidade de um país pobre manter um nível que ultrapasse o simples razoável? A verdade é que a prática de preços abusivos nos livros académicos obriga quem queira ir mais longe a inevitavelmente, a um dado momento, ir, ou pelo menos visitar, uma das grandes universidades, da liga de topo. Estou plenamente ciente de que nem todas as universidades podem ser Oxford ou Cambridge, mas essas (e os seus amigos) não têm de ser as únicas universidades no mundo capazes de oferecer boas condições de trabalho a investigadores sérios e exigentes. A internet já consegue reduzir, em parte, o gap, com todos os materiais disponíveis online (ainda no outro dia consultava no Internet Archive uma revista de filologia alemã do início do século XX), mas a Rede não é a mala da mary poppins: não está lá tudo.

Dito isto, receio seriamente o agravamento futuro da actual oligarquia académica. Claro que, pelo menos em abstracto, foi um erro multiplicar as universidades, em vez de concentrar recursos num número pequeno de grandes centros (digamos: Porto, Lisboa, Coimbra), mas isso, por si só, não justifica a pequenez das nossas bibliotecas. A política das grandes editoras anglófonas não é inevitável: vejam-se os preços praticados em Itália, que tem uma Academia fascinante. Francamente, devíamos protestar, mas que poder temos nós? No fim, todos vamos ter de pedir a um amigo que dê um salto a Oxford ou a Paris para nos tirar fotocópia daquele livro que precisamos, mas não temos cá. A verdade é que todos queremos ler o novo livro do West, e as nossas bibliotecas vão acabar por desembolsar os $140 para o comprar. A verdade é que eu quero a edição crítica do Obbink — mas ninguém me a vai comprar.

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