segunda-feira, 28 de março de 2011

Glosa da Nau Catrineta

Hécate ou As Três Parcas, de William Blake (1795)
Mote
Mais enxergo três meninas
debaixo de um laranjal,
uma na roca a fiar,
outra sentada a coser,
a mais fermosa de todas
está no meio a chorar.

Glosa
Somos as três irmãs mouras,
nosso pai anda no mar
e lá longe foi buscar
onde o ouro as terras doura
um anel para nos casar.
Mas um demónio que o tenta
faz passar por genuínas
as visões que lhe apresenta:
«Vejo aplacada a tormenta,
mais enxergo três meninas

Somos as três irmãs parcas
no falar e no folgar,
«Muito riso, pouco siso»,
quis nosso pai avisar
quando partiu com as barcas
nesse dia de improviso.
Seguiu dos ventos a rosa
espinhosa e fatal,
deixou-nos sós e ciosas
debaixo de um laranjal.

«Eu sou a irmã da roca
fio finos fios de hera,
quem meus finos fios toca
num ventre de mãe se gera
e num seio desemboca.
Fui eu quem fez o tecido
pra minha avó se encontrar
três vezes com seu marido,
duas rompi-o ao tear
uma na roca a fiar

«Eu sou a irmã que cerza
e tenho um metro que mede
o fio de alma que impede
o corpo de se perder.
Fui eu quem fez a bainha
dessa espada que levou
o meu pai para vencer
e três vezes me cortou,
duas a enfiar a linha,
outra sentada a coser

«Eu sou a irmã que carpe,
que tem nas mãos a tesoura,
e no alto dessa escarpa
nas terras que o ouro doura
sou tão bárbara quanto moura.

Fui eu quem cortou o fio
do mastro preso ao navio
do pai que me deu em bodas
ao demo a quem sugeriu
a mais fermosa de todas

Somos as irmãs que vêe,
com um só olho de auguro
que as nossas agulhas têm
o passado e o futuro,
os mundos que há sob o mundo
onde os mortos vão penar:
e o nosso pai, lá no fundo,
que quis o demo comprar
está no meio a chorar.

Margarida Vale de Gato, Resumo - A Poesia em 2010
Assírio & Alvim + FNAC, Lisboa: 2011.
(originalmente em Mulher ao Mar, Lisboa, Mariposa Azual)

Sem comentários:

Enviar um comentário