quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Do testamento poético de Safo e Alceu


«Um célebre vaso grego conservado em Munique guarda para a posteridade a imagem, gravada por mãos anónimas, dos dois poetas aqui reunidos: Safo e Alceu. De rosto inclinado e uma lira na mão esquerda, parece estar a render homenagem àquela que, num epigrama atribuído a Platão, é considerada a décima musa. A atitude reverente, a tradição recolhida, por Aristóteles na Retórica, e o retrato que de Safo nos legou Alceu têm servido para alimentar a convicção de que este nutriu por aquela um secreto (se não mesmo confessado, mas repudiado) amor. Para ter-se como verdadeira, a suposição carece de melhor prova. Naturais de Lesbos, ilha grega do mar Egeu, famosa a diversos títulos, vivendo nos finais do século VII a.C. e pertencendo ambos a famílias nobres de Mitilene, a capital da ilha, Safo e Alceu são, juntamente com Anacreonte, os representantes, na Grécia Antiga, da chamada lírica monódica, por oposição ao lirismo coral, sobretudo representado por Píndaro.

Relativamente vasta, segundo testemunhos chegados até nós, a obra dos dois poetas só pode hoje ser avaliada através de fragmentos, geralmente de reduzida extensão. Obscuros agentes operaram no texto de ambos, ao longo dos séculos, particularmente no período cristão da literatura grega, mutilações já agora impossíveis de suprir, mau grado as tentativas de restauração (compreensíveis ou louváveis, mas de resultados sempre duvidosos) a que têm sido submetidos alguns dos referidos fragmentos, especialmente de Safo.

O envolvimento e o perfume que de tais fragmentos se desprende são bastante diversos, num e noutro dos poetas. Alceu é o cidadão empenhado nos acontecimentos políticos que agitam a sua época. O seu temperamento arrebatado leva-o a participar activamente nas lutas travadas entre a aristocracia da sua ilha natal e os tiranos impostos pela plebe. Sofreu o exílio, regressou à pátria quando o tirano Pítaco renunciou ao poder, comemorou numa ode (frag. n.º8) a morte do tirano Mírsilo, combateu contra os Atenienses pela posse de Sigeu. Cantou, enfim, o amor e o vinho, «remédio dos males».

É outro o mundo de Safo. « A sua casa», informam J. Hubert e H. Berguin, « era uma espécie de academia para as raparigas; o canto a dança, o manejo da lira, a leitura dos poetas constituíam o programa». E acrescentam: «A inspiração de Safo está concentrada no seu círculo de raparigas e na sua vida íntima. Nenhum eco das lutas políticas». O amor (e suas adjacências: a saudade, o ciúme…) ocupa na poesia de Safo um lugar dominante.

Seja qual for o entendimento que se tenha (Camões: «E entendei que, segundo o amor tiverdes, /Tereis o entendimento de meus versos») da natureza e grau dos afectos por ela manifestados para com as “alunas” da sua academia, não se recusará, em qualquer caso, a límpida frescura, a verdade, a magia, a delicada sensibilidade e a altura de um canto que tem surpreendentemente resistido às erosões mais devastadoras, às tesouras censórias e aos autos-de-fé inquisitoriais.

Os fragmentos que a seguir se apresentam, vertidos do original grego, constituem apenas uma parcela – a mais valiosa, cremos – do que resta do testamento poético de Safo e Alceu. (…)»


ALCEU

12 (357 – LP)

Resplandece de bronze

a mansão. Toda a sala
foi por Ares ornada
de cascos refulgentes, dos quais
pendem brancos penachos
de crinas de cavalo – ornamento
de cabeças de guerreiros. À volta,
suspensas em ganchos
que elas ocultam, grevas
brilhantes – defesa
para os duros dardos -, couraças
de linho novo e côncavos
escudos empilhados. Junto
deles, as espadas
de Cálcis e grande
número de cintos e túnicas
de guerra: tudo
o que não pode esquecer-se,
sobretudo quando
a tal empresa nos lançámos.

SAFO

52 (141 L-P)

E então no vaso foi misturada ambrósia.

Hermes pegou numa concha e serviu os deuses.
E todos, erguendo as taças,
fizeram uma libação e auguraram
mil felicidades ao noivo.

65 (140 L-P)

- Morreu, ó Citereia,

O terno Adónis. Que faremos?
- Batei em vossos peitos, ó donzelas,
Rasgai as vossas túnicas.


Albano Martins na Introdução a O Essencial de Alceu e Safo; Imprensa Nacional - Casa da moeda. Lisboa.

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