Estive há duas semanas atrás num colóquio intitulado Narrativas do Poder Feminino, na Faculdade de Filosofia da Católica de Braga. Mária de Fátima Silva, conhecida pelas suas traduções de Aristófanes, boa comunicadora, falou sobre o Íon de Eurípides, peça-protótipo de toda a novela mexicana. Não pude deixar de a questionar em relação ao final deste late romance euripideano. A professora insistira particularmente no sofrimento de Creúsa, que vive a desonra feminina maior: o opróbrio da esterilidade, vendo mais: que, por causa disso, o marido, para garantir a sucessão do trono, terá de reconhecer um dos seus filhos bastardos, para mais de sangue bárbaro, como o pai. No fim, Apolo, por meio de outros deuses, que escolhe como seus mensageiros, faz perceber Creúsa que o rapaz que Xuto reconhece como filho de uma ligação anterior é, na realidade, filho da princesa e do deus: não só Creúsa, portanto, não é estéril (uma felicidade para ela como mulher), como quem herdará o trono será um ateniense de gema (um consolo para ela como rainha orgulhosa da sua terra). Todavia, Xuto, exige o deus, deverá permanecer na ignorância de tudo isto e pensar que Íon é o fruto de um antigo affair (ou de uma simples noite).
A minha pergunta era simples: visto que a verdade, por ordem de Apolo, deve ser mantida em segredo, então, temos de admitir, Creúsa continuará a ser vítima da desonra social de ser oficialmente infértil, mais: verá a sua posição ainda mais degradada porque, para todos os efeitos, o novo herdeiro não é do seu sangue e, por causa da sua esterilidade, foi necessário ir buscar um rapaz estrangeiro, uma vergonha para Atenas, que se orgulhava da sua autoctonia. A professora falou de como isto, a bem dizer, recuava para segundo plano, pois a Creúsa fora concedido «tocar o privilégio da essência» (isto entrelançava-se com outras reflexões desenvolvidas ao longo do paper apresentado, as quais não podemos aqui reproduzir, para contextualizar a validade da resposta). Não pude, porém, deixar de ficar a pensar nisto e descobri aqui, não querendo regressar à severidade do juízo nietzschiano, o sinal de uma decadência: a esfera do privado triunfara sobre a do público, ao ponto desta última poder ser desprezada pelo sujeito, satisfeito com a sua verdade íntima. Se, com Sófocles, na Antígona, emergira, de forma violenta, a ruptura entre o sujeito e a cidade, mas esta oposição era ainda o material de uma tragédia a sério, porque o dramaturgo e os espectadores, educados na unidade das duas dimensões, que Ésquilo de alguma forma ilustra, sentiam tal tensão como perturbadora, já no Íon, pelo contrário, o privado superiorizou-se pacificamente e a comunidade recuou para um segundo plano onde recebe apenas a importância que eu lhe resolvo conceder. Não sei se esta intuição tem algum futuro, sequer se é, perspectivada globalmente, sustentável, mas não quis deixar de a partilhar, para suscitar ao pensamento, ou morrer já.
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