χρήσει δικαίᾳ καὶ νόμου κατὰ χθονὸς
ἔκρυψε τοῖς ἔνερθεν ἔντιμον νεκροῖς: [23-5]
Por um lado, a Etéocles, ao que dizem, no justo
uso da justiça e da lei, [Creonte] debaixo da terra
escondeu, para ser honrado pelos mortos inferiores.
Ἐτεοκλέα μέν, ὃς πόλεως ὑπερμαχῶν
ὄλωλε τῆσδε, πάντ᾽ ἀριστεύσας δόρι,
τάφῳ τε κρύψαι καὶ τὰ πάντ᾽ ἐφαγνίσαι
ἃ τοῖς ἀρίστοις ἔρχεται κάτω νεκροῖς. [194-7]
Por um lado, Etéocles, que pela cidade alti-lutando
morreu - por esta cidade -, em tudo o melhor com a lança,
num túmulo esconder e todas as honras lhe prestar,
aquelas que descem para os melhores dos mortos.
A primeira das falas transcritas pertence a Antígona, quando dá conta a sua irmã, Ismena, no prólogo da peça, do decreto do rei, Creonte. O texto dá a entender que Etéocles, o irmão que lutou pela cidade, Tebas, foi já enterrado: ἔκρυψε é um aoristo, o tempo pretérito por excelência na gramática grega. Não pode por isso senão espantar quando, na tradução de Marta Várzeas (feita para a encenação de Nuno Carinhas no TNSJ há dois anos atrás), lemos: «A Etéocles mandou sepultar». Certo que é possível ler a frase com um sentido mais-que-perfeito: Creonte mandou sepultar Etéocles, Etéocles já foi sepultado e agora Antígona conta tudo isto à irmã. Todavia, deverá reconhecer-se que o português é ambíguo o suficiente para acolher um outro sentido: Creonte mandou sepultar Etéocles — isso ainda vai acontecer, então: por hora existe tão somente a ordem, mas não a realidade. A tradução de Marta Várzeas torna-se porém mais inteligível quando a entendemos como um esforço para impor à peça alguma coerência. De facto, mais tarde, no primeiro episódio, quando Creonte entra em cena, ele diz que proclamou um édito no sentido de enterrar Etéocles. Guardamos aqui o infinitivo de propósito: o grego tem κρύψαι, um infinitivo aoristo, sendo que o aoristo tem aqui um valor apenas aspectual, e não temporal, ou seja: simplesmente quer-se dizer que a acção de enterrar Etéocles é uma acção única, não continuada. κρύψαι é vulgarmente entendido num sentido futuro e de facto o contexto convida a, se é que não implica, tal. O uso do infinitivo, em que insistimos, permite salvaguardar fragilmente a unidade do texto: Creonte reproduz aqui o édito como o emitiu originalmente, édito que tem apenas dois comandos temporalmente indeterminados: enterrar [Etéocles] | não honrar [Polinices]. A primeira parte pode já ter sido cumprida: o grego talvez (outros mais sábios me esclarecerão) não obrigue a projectar a acção no futuro (ajuda porventura a esta interpretação subtil se não até manhosa o facto de o «[não] honrar [Polinices]» ser κτερίζειν, um infinitivo presente, que aponta para uma acção continuada, não pontual, ao contrário de κρύψαι — contra, porém, pesa o κωκῦσαί que se lhe segue). Reconheço, todavia, que nem eu mesmo estou muito convencido desta leitura, pelo que estou particularmente receptivo a contributos de quem se queira juntar à discussão: afinal Etéocles já foi enterrado? Ou Sófocles pura e simplesmente contradiz-se?
NOTA: segui, para o grego e traduções, a edição de Griffith, salvo para o problemático σὺν δίκης χρήσει δικαίᾳ καὶ νόμου, no primeiro excerto, em que segui a lição de Müller e Jebb. Haveria muito mais a dizer sobre estes dois passos (há escolhas na colocação das palavras que devem ser tidas em atenção e a métrica, ao que diz o comentário, é de suma importância quando confrontada com os versos seguintes sobre Polinices): impõe-se uma explicação do último verso da segunda citação, que só se compreende tendo em mente os ritos fúnebres gregos. Algumas opções de tradução haveriam ainda que ser justificadas, mostrando a complexidade a que se procuram abrir.
Olá João, uma tentativa de resposta terá de passar por uma parte que omitiste no segundo excerpto, a saber a imediatamente anterior:
ResponderEliminarΚαὶ νῦν ἀδελφὰ τῶνδε κηρύξας ἔχω
ἀστοῖσι παίδων τῶν ἀπ' Οἰδίπου πέρι·
E agora decretos [...] anunciar [...]
aos cidadãos a respeito dos filhos de Édipo.
Para perceber isto podemo-nos lembrar dum outro passo, da mesma peça, do Hino a Eros, onde se diz "σὺ καὶ τόδε νεῖκος ἀνδρῶν ξύναιμον ἔχεις ταράξας", ou seja, "tu que esta discórdia agitaste entre homens da mesma família" -- Agitaste, porque isto que se fala já aconteceu: a construção ἔχω + particípio aoristo implica então, para fazer um paralelo gramatical, algo semelhante a um tempo perfeito, ou ao nosso tempo perfeito composto (tenho isto feito), neste caso, κήρυξας ἔχω, --tenho isto [já] decretado--. Os infinitivos de que falas, e bem, não seriam portanto significativos enquanto aspectuais (como sabes, o aspecto aoristo ou o imperfeito podem ser puxados quer para o passado quer para o futuro quer para o presente - κωκῦσαι não conflicte com κτερίζειν), mas sim enquanto um mero dois pontos dependentes do verbo participial κήρυξας. Que me dizes, persuade-te? Pode ser que me esteja a falhar alguma coisa de importante para perceber. Abraço!
Caro Miguel, obrigado pelo teu contributo, sempre tão avisado e sábio. Tens razão quando apontas o meu erro de querer deduzir do aspecto dos infinitivos um sentido temporal que só formalmente tive o cuidado de distinguir, deixando a vontade de querer encontrar uma pista ignorar a diferença. Olhei também, antes de escrever o post, para os versos que citas, na esperança de aí encontrar algo que pudesse ajudar na resolução do problema. Devo confessar, contra mim, que não tinha presente essa formulação de ἔχω + particípio aoristo, ainda que com o paralelo gramatical que fizeste com o passé composé creio que não mais me esquecerei dela. A tua explicação, se bem entendo, afirma, no fundo, que não há nenhuma obrigação de ler κρύψαι com um sentido futuro, contrariamente à opção tomada pela maioria dos tradutores: a dependência do infinitivo de κήρυξας só nos diz que a ordem de enterrar Etéocles, essa já foi dada — nada nos diz sobre a sua materialização (se já se concretizou ou se ainda há-de acontecer). Nesse caso, para percebermos o tempo a associar ao infinitivo teríamos de seguir a indicação dada por Antígona no início da peça e assumir que, de facto, Etéocles já fora enterrado. Ou percebi tudo ao contrário? Perdoa a minha confusão! Eu gosto muito da tradução do Hölderlin, mas uma coisa em que, na minha futura, não gostava de o seguir é nas traduções desviantes que ele faz por simples má-compreensão do grego (que também as há).
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