sexta-feira, 11 de maio de 2012

Apontamentos Sobre a Antígona de Sófocles §2; ou, Os Posts São Cartas Breves Aos Amigos


Aviso: este post surge duma discussão em comentários nesta outra mensagem e respectivos comentários, que ao prolongar-se achei que faria mais sentido numa partilha separada.

João,

Quando formulaste a pergunta naturalmente consultei as edições que tinha à minha disposição assim como outras que encontrei online. Todas elas, de facto, traduziam o κρύψαι pelo futuro, embora isto deva ser atenuado pela construção estranha que nos obrigue a analisar o que seja "ter decretado", qual é o tempo entre a palavra e o acto? (Falls the shadow, diria o Eliot.) Entre a ordem e o cumprir? Ele dá o decreto ao dizer "ἔχω κήρυξας", ou já antes o dera? Apesar dessas traduções mo parecerem contestar traduzindo pelo futuro (mas não temos as justificações dos tradutores para essa escolha), e mesmo sabendo que quem as fez foram pessoas que muito mais grego sabem que eu, a verdade é que olhando para o original, e correndo o risco de vir a ver a minha ignorância desmascarada quando pedirmos a alguém mais sábio para nos guiar, como tu dizes e bem, a ambiguidade está lá e as traduções pelo futuro não são fundamentadas, ou pelo menos  digamos que são arbitrárias: pois não sabemos quando foi dado o decreto. Os modos dos infinitivos são inúteis para isso, e apenas o solucionariam se lá estivesse um κρύψειν, infinitivo futuro.

E sim, a tradução do Hölderlin por "Ihn decket mit dem Grab und heiliget" [Cobri-o na tumba e honrai-o.] é filologicamente inaceitável, embora duvido que aqui esteja em causa uma má compreensão do grego (sem duvidar que a haja noutros pontos): simplesmente, confrontado com este passo, o tradutor vê-se forçado a atribuir na sua tradução um tempo ao acto, por muito arbitrária que essa escolha seja: e se escolher o futuro então o imperativo exprime o mesmo sentido (ou então sou eu apenas mais uma vez a tomar o partido do meu Liebling). Perdoa-me a mim por ter poucos argumentos sólidos para apresentar: nisto das línguas mais que citar regras servir-me-ia poder valer-me dum sentido da língua, algo que muito me falta quando me comparo com os tradutores cujas versões consultei; mas apesar disso tento-me a dizer que o terem optado quase todos eles pelo futuro se deve a uma coincidência, ou então a uma descura na comparação com o passo que citaste.

Mas vamos um passo à frente: como se entende o próprio texto a este respeito? Quando o coro responde submisso com um resmungo (211-214), Creonte aconselha-os (usando o conjuntivo, ἦτε), a serem “os vigias das minhas palavras” [σκοποὶ τῶν εἰρημένων] – o que significa vigias? Aqueles que fazem com que algo aconteça, ou aqueles que previnem que algo seja feito contra? O verbo aqui, sendo σκοπεῖν, não resolve. Neste contexto poderia ser quer aqueles que guardam o corpo quer aqueles que guardam a lei opondo-se aos malfeitores. (A própria Antígona é a certa altura a ὅσια πανουργήσασα, a sacra malfeitora [74].) Acontece até que também o coro não é capaz de desfazer a ambiguidade da ordem, e pede-lhe que “atribua” [πρόθες] essa ordem (conselho?) a um "mais novo". Ora eles são os anciãos, são  os censores, são os vigias por excelência dos costumes e das leis da cidade: portanto caso acreditassem que ele lhe estava a pedir que assumissem a sua função, não faria sentido que pedissem que Creonte a atribuisse a “um mais novo”; eles acreditam que ele lhes está a pedir que vão lá, e que fiquem de vigia ao cadáver insepulto. Isto parece corroborar a tese do “insepulto”.

Mas Creonte apercebe-se que eles estão a perceber mal o que se passa, e corrige-os. A primeira palavra é ἀλλά, Mas. “Ἀλλ' εἴσ' ἑτοῖμοι τοῦ νεκροῦ γ' ἐπίσκοποι.”, que poderíamos traduzir como “Não se enganem, estão já [com um εἴσι forte, acentuado, embora, certo, isto seja alexandrino] vigias [colocados = ἐπί] ao morto.” Portanto com isto diz-lhes que já há quem faça aquilo que eles pensavam que ele lhes imperava.

A resposta do Coro é de certa forma cómica, “Τί δῆτ' ἂν ἄλλο τοῦτ' ἐπεντέλλοις ἔτι;” Mas então que raio [τί δῆτα], é que ainda [ἔτι] te falta [ἄλλο] ordenar? Eles pensavam que aquilo que ele lhes ia pedir era algo, estando esse algo já cumprido, eles não conseguem perceber o que possa ser, e stupent: quase que se sentem inúteis, 'reduzidos' às suas funções. Creonte termina a breve sticomaquia clarificando o que é que exige deles: que não se aliem aos desobedientes. Τὸ μὴ 'πιχωρεῖν τοῖς ἀπιστοῦσιν τάδε.

O que podemos concluir disto? Imediatamente, e mais uma vez, que a ambiguidade que existe no texto do discurso de Creonte e que te levou a apontar tudo isto em primeiro lugar existe de facto e não pode ser negada, visto que é reconhecida pelas próprias personagens e tem até um efeito dramático. Ao mesmo tempo obriga-nos a pensar a chronologia da peça. Temos alguns testemunhos textuais, e incluímos o ἔκρυψε. Ordem sugerida: 1) O decreto que coloca os guardas data de antes da peça; ou pelo menos de antes da aparição de Creonte; faz sentido que date antes da peça porque pretendemos levar a sério o ἔκρυψε: isto é, se é necessário que os guardas já tenham sido colocados aquando do anúncio público do decreto, não há nada que nos faça crer que Creonte promulgasse apenas a parte relativa a Poliníces e não à de Etéocles. Poderíamos portanto esperar que os guardas tivessem sido mandados algures entre o antes da peça e a aparição; mas se Etéocles já foi enterrado antes do início, devemos entender também o ἔχω κήρυξας como referindo-se a um edito lançado antes do início da peça. 2) Antígona e Ismena encontram-se. 3) Creonte entra em cena e anuncia publicamente o decreto e ao mesmo tempo que o faz os guardas descobrem o cadáver enterrado e um deles corre a avisar o soberano. 4) Os guardas voltam a guardar o corpo. 5) Antígona é descoberta a enterrar o cadáver.


Se isto for verdade, aquela interpelação e inserção no final dos Sete Contra Tebas de Ésquilo, com o anúncio por parte dum arauto a confrontar Antígona e a cidade com os decretos de Creonte, inserção essa que haveria sido levada a cabo como uma resposta posterior à Antígona, seria uma má interpretação na economia das duas peças: A Antígona olha para uma realidade (a lei  decretada) a qual não foi ainda publicamente decretada, embora já tenha sido anunciada em privado e posta em acto. Já foi anunciada em privado porque de outro modo a ouverture com as duas irmãos careceria de sentido; já foi posta em acto porque quer Antígona o diz explicitamente, quer os guardas já foram colocados.

Tudo isto me refresca a memória duma perspectiva sobre a peça que, percebo agora, contribui apenas tangencialmente, mas que me faz lamentar nunca ter seguido o assunto com mais atenção tendo-o negado cuidados maiores em cada das três vezes que me lancei mais a fundo na Antígona, quer ao dá-la a nas aulas, quer dois anos mais tarde, quer recentemente quando finalmente a li em grego; refiro-me à hipótese que alguns comentadores afloram sobre as circunstâncias mágicas e quase celestiais em que se dá cada um dos enterros, e do quão fantásticas são as descrições: do primeiro é-nos dito que a terra está absolutamente incorrupta: ninguém por lá passou, ninguém por lá deixou qualquer sinal de si (ἄσημος οὑργάτης τις ἦν 252), de tal forma que o coro atreve-se a conjecturar que “θεήλατον / τοὔργον τόδε”, que este feito tenha origem divina: habituados como estamos a atribuir ambos os feitos a Antígona, desprezamos essa intuição, talvez justamente. Mas talvez Antígona seja então até mais Gottkind do que nós estamos habituados a considerá-lhe. Pois o segundo enterro não é menos fabuloso (vale a pena ler, e já agora traduzi:

                       Subitamente um tufão solevou
o flagelo dos céus numa tempestade de areia
que queimou todo prado e destruiu a folhagem
da planície silvestre. O ar revolvia-se
num reboliço; cerrámos os olhos à peste sagrada.
E quando ao fim de muito tempo tudo acalmou,
a menina apareceu e gritou com a aguda
voz dum pássaro amargurado que vazio
e orfão das crias encontra o seu o leito.


                     καὶ τότ' ἐξαίφνης χθονὸς
τυφὼς ἀείρας σκηπτόν, οὐράνιον ἄχος,
πίμπλησι πεδίον πᾶσαν αἰκίζων φόβην
ὕλης πεδιάδος, ἐν δ' ἐμεστώθη μέγας
αἰθήρ· μύσαντες δ' εἴχομεν θείαν νόσον.
Καὶ τοῦδ' ἀπαλλαγέντος ἐν χρόνῳ μακρῷ,
ἡ παῖς ὁρᾶται κἀνακωκύει πικρᾶς
ὄρνιθος ὀξὺν φθόγγον, ὡς ὅταν κενῆς
εὐνῆς νεοσσῶν ὀρφανὸν βλέψῃ λέχος.


417-421). E de novo somos levados a pensar: ela certamente estava disposta a sacrificar-se para isto, mas que por aqui passou um deus; não é da raça humana invocar tempestades ferventes de areia. Tem algum cabimento a ideia do enterro divino: e que este enterro, a ter acontecido, terá de ter sido apenas após o decreto de Creonte, pois a fortiori os deuses não poderiam enterrar alguém que a cidade pudesse ainda de sua vontade enterrar. (Esta foi linha de pensamento que persegui, mas que acabou por não dar em nada que não uma confirmação do que já sabíamos. — Oh well!) Isto está é a precisar duma nova encenação para resolver estas hesitações. Inserir tosse nada suspeita.

Um abraço,
Miguel.

Sem comentários:

Enviar um comentário