quarta-feira, 23 de maio de 2012

Forget Mandarin. Latin is the key to success; ou, Diatribe #2


Chamaram-me a atenção há pouco tempo para um artigo do Spectator, Forget Mandarin. Latin is the Key to Success. Além do tom bombástico do título, vou aproveitar o facto de se concentrar num só sítio de tanta da publicidade falsa em relação e das mentiras que nos contamos a nós próprios e aos outros quando defendemos esta língua principal do currículum clássico.
But just how useful is Mandarin? All very well if you go to China, but Latin has the advantage of being at the root of a whole host of European languages. “If I’m on an EasyJet flight with a group of European nationals, none of whom speak English, I find we can communicate if we speak to each other in Latin,” says Grace Moody-Stuart, a Classics teacher in West London. “Forget about Esperanto. Latin is the real universal language of Europeans.”
Fazer a apologia do Latim por via da utilidade para o globe-trotter on a budget tem qualquer coisa de tragicómico, mesmo que não fosse pela maneira iludida como contempla a memória daquilo que houve realmente em tempos na Europa e nas Américas, a respublica litterarum que floresceu apoiada na utilização do Latim como língua franca, mas que claramente já não existe. A ideia de apanhar um vôo da easyJet e cumprimentar o passageiro do lado com um Salve! Quomodo te habes? não só é ridícula devido ao facto de a aprendizagem da língua contemporânea, por não ser feita viva voce, não facultar aos seus doutos a capacidade de falar, como também mesmo que tiverem a sorte de ser uma das poucas pessoas que hoje em dia ainda falam Latim, boa sorte em encontrar outros latineloquentes no próximo vôo (talvez na Ryanair): o Latim não é uma língua impossível de se falar, longe disso (ao contrário do que aparece aqui troçado), mas não basta o património linguístico das línguas Neo-Românicas para se perceber o que alguém diz. Argumentos destes mereciam era umas boas orelhadas: não há uma pessoa viva que, a querer ser honesta para com alguém que lhe perguntasse sinceramente se é mais útil no sentido em que a palavra é geralmente entendida, o Latim ou o Mandarim, lhe respondesse Latim (a não ser que estivesse preparado para se engajar na discussão platónica da unidade do bom e do útil): in plain terms, responder que Latim é mais útil que Mandarim são sophismas e hypocrisias.
Unlike other languages, Latin isn’t just about conjugating verbs. It includes a crash course in ancient history and cosmology. “Latin is the maths of the Humanities,” says Llewelyn Morgan, “But Latin also has something that mathematics does not and that is the history and mythology of the ancient world. Latin is maths with goddesses, gladiators and flying horses, or flying children.”
Este é outro dos mitos, e confesso que aquele que mais me chateia. "O Latim é a Matemática das línguas" é um argumento proferido por um de dois tipos de pessoas: por alguém que não faz ideia de como a língua latina funciona, ou por alguém pura e simplesmente que aja desonestamente e em má fé. Uma língua matemática, aliás a única que o poderia ser, é o Esperanto: língua criada a régua e esquadro para não ter excepções e para não permitir desvios. Todas as línguas existem em paralelo a culturas e a tempos, e pela mesma porta entram também todas as confusões inerentes a essas línguas. A ideia do Latim como língua racional e matemática é portanto uma escolha mutuamente exclusiva: ou temos "a matemática das línguas" ou  temos "the history and mythology of the ancient world" - e esta última é impagável e eligenda. O Latim é uma língua cheia de excepções, cheia de quadraturas do círculo, de irracionalidade, de incoerências, e de evoluções. Como qualquer língua que não tenha sido feita em laboratório.

Aquilo que o Latim poderia ter de matemático, a "grandiosa arquitectura" que lhe é concedida pelo pontos de equilíbrio presentes principalmente no sistema verbal, é ela mesma contrabalançada pelas constantes incoerências e falhas estruturais que assolam a restante língua - de que outra forma explicaríamos a ambiguidade do ablativos da terceira declinação em e/i,  que Petrarca esteja autorizado a escrever expecto pro exspecto, que um dos advérbio seja facile mas o outro difficulter, que a primeira pessoa do plural do verbo fio ser efficimur? Isto é interessante, mas pouco surpreendente - mas seja como for nada tem de matemático, e aliás o género de pensamento que levou a que este tipo de aforismos nascesse, a saber a aprendizagem do Latim equiparada à aprendizagem da tabuada (4x1,4; 4x2, 8, 4x3, 12 não é substancialmente diferente de rosa, rosæ, rosam, rosæ, rosa) é precisamente o género de inépcia que tornou os seus defensores incapazes de perceber a beleza da língua enquanto língua, enquanto caos ordenado originário duma cultura específica e carregada com o peso da sua história própria, que nunca é algo asséptico nem merece ser.
No doubt some people will persist in questioning the usefulness of Latin. For these skeptics I have a two-word answer: Mark Zuckerberg. The 26-year-old founder of Facebook studied Classics at Phillips Exeter Academy and listed Latin as one of the languages he spoke on his Harvard application. So keen is he on the subject, he once quoted lines from the Aeneid during a Facebook product conference and now regards Latin as one of the keys to his success. Just how successful is he? According to Forbes magazine, he’s worth $6.9 billion. If that isn’t a useful skill, I don’t know what is.
Aqui salta aos dedos apontar o óbvio ao meu caro cronista lembrando-o de que o Mark Zuckerberg saber Grego e Latim (como já aqui apontámos também) honra obviamente mais o Mark Zuckerberg do que honra o Grego e o Latim. Da incapacidade de compreender este facto básico —que a utilidade destas línguas jaz no acesso que elas nos concedem ao passado, e não às reciclagens e a utilitarismos contemporâneos parecem padecer todos aqueles quantos argumentam que o conhecimento do Latim é útil porque nessa altura poderemos compreender que  o nome do gelado Magnum é uma palavra latina, que audio e video são palavras latinas, ou que o nome dum qualquer pokemon é de origem latina (tenho muita verdadeiramente pena que a idade não perdoe e já não tenha exemplos presentes). A ideia está de pernas para o ar: o conhecimento desta língua é apregoado como uma colecção de inutilidades absolutas, e torna-se ainda mais bizarro quando ao testemunharmos estes usos bacôcos parecemos proclamar triunfalmente a nossa utilidade social (faz até lembrar o momento em que o Alasdair McIntyre ironiza sobre um cavaleiro medieval que encontrasse algum consolo em saber que apesar de as regras da cavalaria terem caído em decadência continuamos a medir a potência automóvel em 'cavalos').

Mas a verdade é que esta excelência rhetórica continua a ser pomposamente apregoada. Aqueles que tentam aliciar as pessoas para as Clássicas - ou para as Humanidades em geral - com estes exemplos de sucesso são traidores. Ide para as Clássicas, meus Zuckerbergezinhos em potência. Atrever-me-ia até mesmo a dizer que falham redondamente o alvo: estas "Humanidades enquanto vias para o sucesso" acabam por dizer: o objectivo é o dinheiro, e as Humanidades também vos podem conduzir até lá (acreditem em mim!); o subtexto é: se conseguirem ficar podres de ricos doutra maneira mais fácil até é melhor. Não sou um especialista em Mark Zuckerberg, mas se ele realmente ama a Antiguidade não trocaria a sua formação clássica por uma valorização a triplicar do Facebook.

Estes desvios e mentiras ocultam aquela que é a via verdadeira e a vida que podemos conceder se queremos ser honestos para connosco e para com aqueles que tentamos aliciar: aprendei Latim se quereis ler Vergílio, Agostinho, Petrarca, Ficino. Claro que é preciso dividir públicos, e não esquecer que esses exemplos preservam alguma importância pedagógica junto de alunos mais novos - mas não torná-lo num emblema de honra e da salvaguarda do nosso uso, como acontece vezes de mais de cada vez que alguém se lembra de defender tudo isto junto dos seus pares. Se não acreditarem em nós, não temos o direito de os tentar puxar para algo outro, para becos que são verdade apenas contingente ou tangencialmente, sejam eles argumentos mercantis, linguísticos (saber Latim ajuda no conhecimento do Português, eg), ou matemáticos. E se nós mesmos tememos que o acesso aos textos não seja razão suficiente para alguém estudar esta língua, então somos nós que não a confidamos o bastante, somos nós que não a merecemos.

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