domingo, 4 de março de 2012

Miller em Cnossos

Fresco do Palácio de Cnossos


«Cnossos sugere, em todas as suas manifestações, o esplendor, a sanidade e a opulência de um povo poderoso e pacífico. É alegre – alegre, sadia, limpa, salubre. O homem comum desempenhava, evidentemente, um papel importante. Tem-se afirmado que, durante a longa história de Cnossos, foram lá testadas todas as formas de governo conhecidas do homem. Em vários aspectos está muito mais próxima em espírito dos tempos modernos, do século XX, poder-se-ia dizer, do que épocas posteriores do mundo helénico. Sente-se a influência do Egipto, a proximidade humana e despretensiosa do mundo etrusco, a sabedoria do espírito comunitário de organização dos incas. Não tenho a pretensão de saber, mas senti, como raramente me aconteceu perante as ruínas do passado, que a paz terá aqui reinado, ao longo de muitos séculos. Cnossos tem um certo espírito prático, o tipo de atmosfera evocado quando se diz “chinês” ou “francês”. O aspecto religioso parece misericordiosamente esbatido. As mulheres desempenhavam um papel de igual importância nos assuntos deste povo, e o espírito lúdico é marcadamente manifesto. Em suma, o tom prevalecente é a alegria. Sente-se que o homem vivia para viver, que não era atormentado por pensamentos de uma vida além da morte, que não era oprimido nem restringido por uma reverência desmesurada perante os espíritos ancestrais, que era religioso da única maneira que se adequa ao homem, tirando o melhor partido de tudo o que vem à mão, extraindo o máximo da vida, de cada minuto que passava. Cnossos era mundana no melhor sentido da palavra. A civilização de que era epítome ruiu mil e quinhentos anos antes da chegada do Salvador, mas deixou ao mundo ocidental um legado único, o maior legado conhecido do homem: o alfabeto. Noutra parte da ilha, em Gortina esta descoberta foi imortalizada em enormes blocos de pedra que percorrem o campo como uma muralha da China em miniatura. Actualmente, o alfabeto já não tem magia: é uma forma morta de exprimir pensamentos mortos.»

Henry Miller n' O Colosso de Maroussi ; Trad.: Raquel Mouta, Tinta-da-China, 2011

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