Sentado numa rocha, na ilha de Ogígia,  com a barba enterrada entre as mãos, donde desaparecera a aspereza  calosa e tisnada das armas e dos remos, Ulisses, o mais subtil dos  homens, considerava, numa escura e pesada tristeza, o mar muito azul  que, mansa e harmoniosamente, rolava sobre a areia muito branca. (...)  Sete anos, sete imensos anos, iam passados desde que o raio fulgente de  Júpiter fendera a sua nave de alta proa vermelha, e ele, agarrado ao  mastro e à carena, trambolhara na braveza mugidora das espumas sombrias,  durante nove dias, durante nove noites, até que boiara em águas mais  calmas, e tocara as areias daquela ilha onde Calipso, a deusa radiosa, o  recolhera e o amara!
   E durante  esses imensos anos, como se arrastara a sua vida, a sua grande e forte  vida, que, depois da partida para os muros fatais de Tróia, abandonando  entre lágrimas inumeráveis a sua Penélope de olhos claros, o seu  pequenino Telémaco enfaixado no colo da ama, andara sempre tão agitada  por perigos, e guerras, e astúcias, e tormentas, e rumos perdidos? (...)  Deusa, há oito anos que não olho para uma sepultura... Não posso mais  com esta serenidade sublime! Toda a minha alma arde no desejo do que se  deforma, e se suja, e se espedaça, e se corrompe... Oh deusa imortal, eu  morro com saudades da morte!
   -Quantos males te esperam, oh desgraçado! Antes ficasses, para toda a imortalidade, na minha ilha perfeita, entre os meus braços perfeitos...   Ulisses recuou, com um brado magnífico:
   - Oh deusa, o irreparável e supremo mal está na tua perfeição!
   E, através da vaga, fugiu, trepou sôfregamente à jangada, soltou a vela, fendeu o mar, partiu para os trabalhos, para as tormentas, para as misérias - para a delícia das coisas imperfeitas!
Eça de Queirós, "A Perfeição", in Contos, Edição Livros do Brasil, Lisboa 2002, pp.221-244
 
 

 

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