sábado, 10 de julho de 2010

Venetus A

Venetus A é o nome dado — já se dirá o porquê dele — a um manuscrito do século X onde se encontra a melhor cópia da Ilíada que chegou até nós, com dois escólios (para os leigos: série de apontamentos detalhados dos estudiosos alexandrinos ou bizantinos a um texto, fornecendo, o mais das vezes, informações preciosíssimas para a nossa compreensão dos mesmos e não só; para os classicistas: o escólio A e o D), um resumo de outros poemas do ciclo épico (os de Homero não são senão dois exemplos do género) e excertos esparsos de uma obra de Proclo, filósofo neo-platónico do século V d.C.

A história do manuscrito é bastante interessante. De alguma maneira, veio parar a Itália, onde foi mais tarde adquirido por Basílio Bessarion, cardeal do século XV. De origem grega, Bessarion foi destacado para uma embaixada cujo o principal objectivo era nada mais nada menos do que operar a reunião das duas igrejas, a católica e a ortodoxa, assunto que ocupou o concílio de Ferrara-Florença (1438-45). O imperador bizantino contava, se tal acontecesse, receber apoio militar contra os turcos que, como é sabido, viriam a conquistar Constatinopla em 1453. Bessarion acreditava que pouco separava as duas igrejas e que, com boa-vontade de ambas as partes, a reconciliação seria possível. O acordo foi de facto conseguido e parecia que o longo cisma tinha acabado. Bessarion, porém, apercebeu-se da reacção, extremamente negativa, do povo e das autoridades eclesiásticas e civis (a reunificação das igrejas acabou, por isso, por nunca se verificar, até porque nem dez anos depois o império foi conquistado) e, uma vez que tinha o favor de Roma, acabou por ficar por Itália e isso mudou a história do Ocidente.

A sua casa tornou-se uma verdadeira academia, um lugar de exílio para todos os intelectuais gregos que fugiram de Bizâncio após a queda do império. Traduziu a Metafísica de Aristóteles e os Memoráveis de Xenofonte, tendo defendido veementemente Platão contra o aristotélico Jorge de Trebizonda (o texto deste contra Platão gerou uma tal onda de indignação que este se viu obrigado a deixar a cidade e a procurar refúgio junto da corte de Afonso V de Aragão, em Nápoles). Bessarion era também um coleccionador de manuscritos e, como dissemos, foi ele que adquiriu o Venetus A, que deixou, em 1468, à Biblioteca da República de Veneza (daí o nome do manuscrito), junto com outras pérolas que constituíram o fundo primeiro da biblioteca. Bessarion instituiu também uma regra, que, porém, com a sua morte, foi descurada, até entrar de novo em vigor em 1530: quem quisesse consultar a biblioteca, tinha de depositar um livro (nem Ptolomeu, quando quis encher o Museion, se lembrou de tal coisa). O manuscrito foi usado por vários estudiosos do Renascimento, mas acabou por ser esquecido.

Só em 1788, Jean-Baptiste de Villoison o recuperou, publicando-o, bem como o chamado Venetus B (de uma qualidade um pouco inferior, mas com outro escólio: o escólio B). O livro fez uma enorme sensação (até aí, só o escólio D era conhecido). A publicação destes novos escólios levou Friedrich Wolf a propor que os poemas homéricos tinham sido transmitidos oralmente durante um longo período de tempo antes de terem sido escritos, tese a que Milman Parry viria a dar, nos anos 30 do século passado, uma base científica, com as suas investigações na ex-Jugoslávia. O professor de Wolf, Christian Heyne, acusá-lo-ia de no seu Prolegómenos a Homero se limitir a repetir o que tinha ouvido nas aulas dele e proibiu-o de assitir a mais seminários dele. Diga-se de passagem, como curiosidade, que este é o período em que a filologia, como a conhecemos hoje, começava a surgir. De facto, quando Wolf se foi inscrever na Universidade disse, assim reza a lenda, que queria estudar na faculdade de filologia, então ainda não existente.

O Venetus A é, portanto, coisa mesmo importante. A parte boa, e para isso servia, afinal, este post, é que a Universidade de Harvard tem disponível online fotografias de alta resolução do manuscrito (e também do Venetus B). Aqui têm o início do primeiro canto da Ilíada. Ao contrário de outros manuscritos que já postámos aqui no blogue, este não tem imagens engraçadas, mas guarda algo bem mais importante: essa obra acabada que é o poema primordial e a primeira fulguração do modo trágico.

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