terça-feira, 7 de agosto de 2012

"Platão, creio, estava doente" [Phd. 59b]

31 Porque é que os Karamazov hão-de ser inconcebíveis no tempo de Péricles? Se uma máquina de regressão levasse Dostoievski a recuar até esse tempo talvez houvesse loucos, invisíveis para esse tempo. E talvez esses loucos passassem a ser visíveis e a existir. Os possíveis do homem quem os conhece? Mas todos eles são reais quando a arte os fixou.

123 Em que circunstâncias foram criadas as grandes ideias da cultura? Raro ou nunca o saberemos. O mito da caverna de Platão quando é que lhe apareceu? Nalguma noite de insónia? no intervalo de uma desinteria? nas dores de um dente cariado? E as outras milhentas criações do espírito humano? Porque tudo tem uma circunstância como quase tudo tem só a circunstância sem nada mais haver nela. Poincaré por exemplo diz-nos o momento fortuito em que lhe surgiu o primeiro trabalho sobre as «funções fucsianas»: quando punha o pé no estribo de um eléctrico. Penso-o por mim, que também pertenço à humanidade e mesmo a um recanto do seu ser em espírito. Neste momento, por exemplo, sou em circunstância uma horrorosa constipação e um tremendo vendaval de chuva. Que é que poderia ser em criação espiritual, depois de expurgado em pragas de alívio? Não sei. Mas o que se me adianta em candidatura entendível é um não sei quê de apaziguado e longínquo e aéreo como a luz que deve estar por sobre as nuvens e não vejo. Que é que iria deduzir da minha criação suave quem a soubesse sem saber-me da horrível constipação? Diria que eu era feliz e harmónico e volátil como a graça e a beatitude. E na realidade sou espesso e grosseiro e bruto. A ponto de não saber o que quero dizer com isto.

Vergílio Ferreira, Pensar
Bertrand, Lisboa: 2004 [7ª ed.].

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