sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Carmina Catulli [crítica/recensão]


















Catulo. Carmina.
José Pedro Moreira e André Simões (tradução).
Cotovia: 2012.


Com a publicação dos Carmina de Catulo, a Cotovia continua o seu muito meritório (se bem que lento) passeio pela literatura greco-latina. O último já ia longe, com a tradução dos quatro livros das Odes de Horácio (2008), e era portanto já com muita expectativa que aguardava o momento em que teríamos disponível no mercado editorial português os poemas completos de Catulo. Algo que finalmente acontece pelas tradução a duas mãos de André Simões, professor de Literatura Latina na FLUL e tradutor de poesia árabe no sobre as ruínas, e de José Pedro Moreira, cuja excelente tradução do Agamémnon de Ésquilo foi recentemente publicada (2012: Artefacto). 

O poeta romano do século I a.C. ficou famoso para a história da literatura famoso principalmente pelos seus poemas de amor, como o mostra que os nomes de duas outras edições existentes Mas Catulo escreveu muito mais do que poemas de amor. Escreveu-os, sim, a vários destinatários: mas escreveu também insultos, e várias composições que mutatis multis mutandis encontram paralelo com as Cantigas de Amigo (insultos, queixumes, pedidos), assim como poesia sacra, traduções. O corpus de 116 poemas de maneira alguma se esgota nos amores de Catulo e Lésbia, mas as edições existentes em português da sua poesia esquecem isso: Odeio e Amo (2005: Minerva) e a antologia poética latina Poemas de Amor (2009/10: Relógio d'Água) assumem a sua selecção temática nos títulos; 25 Carmes (2010: Licorne) escapa-se pela neutralidade. 

Concluímos portanto antes de tudo o mais que a grande novidade desta edição é ser integral, ou como nos diz Ana Alexandra Alves de Sousa na Introdução, “completa e não censurada”. A parte do não-censurada é importante, pois o tom abertamente obsceno duma boa percentagem dos poemas fez com que viessem a ser cortados, alterados, bowdlerizados de diversas formas – as histórias multiplicam-se de edições bilingues onde expressões mais explícitas eram vertidas por termos inócuos, ou onde ficavam versos latinos por traduzir; fama est que não havia maior incentivo para os jovens estudantes denodarem os mistérios da gramática latina. Mesmo quando nas edições de Poemas Escolhidos se escolhe apenas poemas dum tipo em particular, que não fique por ponderar quanto do que é atribuído a critérios estéticos faça sentido em grande parte numa política de domesticação da Antiguidade, onde pegamos no Winckelmann ou na Sophia de Mello Breyner e tratamos a Antiguidade deles como a Antiguidade, segregando aquilo que não se conforma à idealização. 

Nesta edição dos Carmina não temos esse problema. Felizmente também não caímos no ponto oposto de tomar a parte pelo todo e de coloquializar ou de vilificar os poemas. Cada poema é respeitado quer poetica quer filologicamente, sendo que esse rigor filológico da primeira à última página será talvez a marca mais notória da colecção; isso força a que uma crítica ao volume não possa preterir essa vertente. Uma escolha por uma tradução filológica, embora em Portugal seja quase um facto assumido na edição dos Clássicos, é na realidade sempre uma escolha problemática, pois não raro traduções daí resultantes acusam compromissos de legibilidade, sobre-eruditas e que, por não quererem comprometer o texto antigo, interpõem problemas na tradução que não existem no original. Felizmente creio que o tom deste livro acaba por soar em grande medida do lado agradável da tradução filológica: sem jamais perder sensibilidade poética, não sempre mas frequentemente saboreamos o que há de melhor dos dois mundos: o texto é fluido quando o Latim é fluido, e mesmo quando o estilo latino se torna mais elaborado a tradução raramente se descompassa; raramente nos cruzamos, por exemplo, com o excesso de vírgulas, o temor de qualquer pessoa que alguma vez traduziu hexâmetros. Será seguro dizer que raramente o texto vertido para português é estruturalmente mais emaranhado que o original latino, algo que terá sido facilitato pela escolha em ignorar traduções métricas. E tudo isto ao mesmo tempo que sabemos estar perante uma tradução de confiança crítica. 

Uma das dificuldades prementes nisso é ser capaz de traduzir a fluidez existente no original sem subalternizar o gosto pelas as evocações tão típicas da literatura antiga. Nessa perspectiva, traduzir épica (ou, em Catulo, mini-épica), é mais fácil: a elaboração estilística corresponde mais às nossas expectativas. Como esses recursos, essas comparações são algo que soa tão afectado à nossa sensibilidade, traduzir poemas límpidos é sempre um exercício de funambulismo. Deixo os resultados do poema [7] falar por si: 

Perguntas-me quantos beijos 
teus, Lésbia, me chegam e sobram. 
Tantos quanto o número imenso de areia líbia 
que jaz em Cirene, produtora de laserpício, 
entre o oráculo do ardente Júpiter 
e o sacro sepulcro do velho Bato, 
ou tantos quantas as estrelas, quando se cala a noite, 
que assistem aos amores furtivos dos homens; 
Beijar-te com tantos beijos 
é quanto chega e sobra ao louco Catulo, 
beijos que os curiosos não conseguirão 
contar nem a má-língua enfeitiçar.

Quando o texto latino muda de registo, como é patente nos poemas doutos, a tradução muda pari passu, sem com isso se tornar remota aos nossos ouvidos. Por exemplo os versos 171-176 do poema [64], que servirão de inspiração quase textual ao canto IV da Aeneida (vv. 656-657): 

Ó Júpiter Omnipotente, oxalá outrora 
as popas da Cecrópida não tivessem tocado as praias de Cnossos, 
nem que trazendo o funesto tributo para o indómito touro 
tivesse o pérfido marinheiro em Creta atado a sua amarra, 
nem que este malvado, ocultando sob deces formas os cruéis 
desígnos, repousasse em nossa casa como hóspede! 

Passando para problemáticas mais filológicas e textuais, foi-me de gáudio concluir que era muito frequente que palavras mais específicas fossem traduzidas consistentemente com os mesmos termos ao longo do poema: e isto lembrando que Catulo não é Aristóteles, e que o rigor da correspondência não teria “tanta” importância; nos casos onde no texto latino havia uma expressão conjunta, detectei apenas três casos em todo o livro onde a tradução não era consistente– de mínima importância, mas o segundo, sendo em poemas consecutivos e portanto mais facilmente detectável, era escusado ([23] e [24], onde neque servus est neque arca é vertido ora por arca ora por cofre, quebrando o déja-vu). Se porém o menciono é para lembrar que quanto mais hercúleo é um tal feito quando o tradutor é uma só pessoa, tanto mais o é quando os tradutores são dois. Ao ler a introdução esperava ainda deparar-me com um outro problema. Lá lemos sobre o uso dos diminutivos na língua latina e na portuguesa: “Transpostos para a língua portuguesa, que deles se serve muito comummente para sublinhar contextos pejorativos, convém não intepretá-los de forma errónea. […] Com um valor afectivo, na sua essência, os diminutivos encontram-se tanto nos carmina brevia como nos carmina docta.” Felizmente para nós aqui os tradutores não foram consistentes, e preferiram atender mais ao espírito da língua latina do que à letra, uma das poucas opções anti-filologia do tomo: dos 5 diminutivos nos carmina docta, apenas um aparece vertido (epistolium - “cartinha” [58a]v2). Mesmo nos restantes poemas nem sempre é consistente a manutenção do diminutivo – apenas de em várias das vezes em que sim perguntamos se a escolha é feliz, como no exemplo da Introdução, dos “olhinhos inchadinhos da minha miúda” [3], meae puellae turgiduli occelli

Fora tais erros menores, e de uma mão-cheia de traduções mais dúbidas (como “pudico” para verter virtuosus [16], ou “mais sincero” para maestius [38]), pode-se ainda louvar um texto cuidadosamente revisto, que a meus olhos seria editoralmente imaculado não tivesse tido a sorte macaca de a única gralha que detectei em todo o livro ter sido num ponto tão crucial, onde o verso 63 do famoso poema 53 Super alta vectus Attis, a história da emasculação de Attis, testemunha o original ego mulier [mulher], ego adulescens, ego ephebus, ego puer vertido por Eu fui rapaz, fui adolescente, fui efebo, eu fui rapaz. Concedo que seja uma gralha hermeneuticamente cómica (aliás, essa é a única razão para a mencionar), embora não queira excluir a possibilidade de ter que ver com a edição crítica (!), à qual não pude ter acesso. Seja ou não, é filha única: o cuidado com toda a edição é exímio. [*Não é gralha. Corresponde à edição crítica. Ver a resposta na caixa de comentários.]

Claro que para isto ficar patente a qualquer leitor o livro precisaria de ser bilingue. Perguntamo-nos sobre a justificação de fazer uma edição de tanto luxo material – algo que se comprova também no preço elevado–, quando algo daí poderia ser transferido para a publicação do original latino. Este problema é comum às duas editoras portuguesas que ainda consistentemente editam textos clássicos (a Cotovia e os Classica Digitalia  – as Edições 70 parecem estar em hibernação). A ausência do Latim (e do Grego) tem consequências na percepção pública até junto dos futuros leitores destes volumes, ou mais concretamente na falta de percepção e no esquecimento de que as línguas clássicas sequer existem. 

Quanto à tradução de Ana Alexandra Alves de Sousa, há pouco que se possa acrescentar. Apesar de algumas repetições e incongruências, cumpre o seu papel digno de introdução à vida e obra do poeta. A lamentar apenas que a última secção, apesar de se intitular “Recepção de Catulo”, se foque exclusivamente na recepção do mito de Ariadne (mito esse que não principia nem se esgota em Catulo), deixado de fora a corrente de poesia que flui a partir de Catulo e que explorará aquilo que a própria Ana Alexandra Alves de Sousa elegantemente descreve como aquela “névoa sombria [que] paira sobre a felicidade dos amantes” ao longo dos séculos, composta por ramos tão diversos como os Carmina Burana, o holandês Jan Everaerts, ou o inglês W. H. Auden. 

Terminada a leitura, Catulo aparece-nos multivertente e variegado como poucos outros poetas da Antiguidade, aproximando-se de mestres como Homero e Eurípides. O dito de Platão de que o maior dos poetas estariam igualmente em casa quer na tragédia quer na comédia (que não se aplica aos dois citados) talvez não tenha de esperar por Shakespeare, se atentarmos bem à efervescência dos poemas amorosos, quer os jubilantes quer os desesperados, que logo se transformam em invectiva obscena (“Talo, paneleiro, mais fofinho que o pêlo do coelho, / ou o fígado do ganso, ou o lobo da orelha, / ou a murcha pila de um velho e uma teia de aranha” [25]), para darem de seguida lugar a poemas corais sacros em honra da castidade, da virgindade, e do matrimónio (como o [51], “Não seja leviano o teu marido, / nem dado ao adultério, / nem persiga torpes injúrias, / nem queira dos teus doces / peitos apartar-se.”), num festival de incongruências e de inconsistências. Mas aqui não há lugar para Platão, para as suas fantasias sobre a verdade da poesia: há apenas espaço para a natureza humana em expansão e em explosão: para um poeta que que derramou versos pelos lugares e pelas pessoas com quem se cruzou e passou: na contemplação religiosa dos deuses, no ódio pelos seus adversários, nos insultos ao amante ingrato, ou nas lamentações pela morte do seu irmão querido, falecido em Tróia, evocado em vários poemas e que aparece uma última vez na maldição lançada à terra de Tróia [58b] 89-96. 

Tróia – maldita seja! – comum sepulcro da Ásia e da Europa, 
     Tróia, amarga cinza de todos os homens e virtudes, 
aquela que também ao meu infeliz irmão a morte 
      trouxe. Ai!, pobre irmão, que de mim foste levado, 
ai!, luz alegre do meu olhar, privada do pobre irmão, 
     contigo toda a nossa casa foi sepultada, 
contigo pereceu a nossa alegria, 
     que o teu doce amor em vida nutria. 

Catulo traduziu uma ode de Sappho, o famoso Ille mi par esse deo videtur [51], “Ele parece-me semelhante a um deus.” Mas deveria talvez ter traduzido o ποικιλόφρον' ἀθανάτ Ἀφρόδιτα – 'Aphrodita de mente colorida'; ter-lhe-ia sido ainda mais congénito. 

Com esta publicação não deixo de lembrar um dito optimista sobre mercado editorial português: ficamos chocados quando nos apercebemos que até ao momento não havia uma edição integral dos poemas de Catulo; Mas ao menos as lacunas vão-se, pouco a pouco, preenchendo. Fraca consolação? Talvez. O que é certo é que uma tradução como estas é, no campo das Clássicas, uma publicação de importância par apenas da do Timeu platónico pelo Rodolfo Lopes nos Classica Digitalia: Que venham mais. Mas enquanto tal não acontece demos graças que finalmente esta há-muito anunciada saia ao público. Catulo dá ele mesmo o mote [65], 

Mas porém, entre tantas tristezas, Hórtalo, envio-te 
     esta tradução do poema do Batíada, 
para que não penses que as tuas palavras foram em vão confiadas 
     aos ventos errantes e se sumiram por acidente do meu espírito, 
como a maçã, enviada pelo noivo como presente secreto, 
     cai do casto colo da donzela, 
pois a pobre rapariga deixou-a por esquecimento sobre a veste macia, 
     e, quando ela se levanta com a chegada da mãe, é sacudida, 
e rola e cai por ali abaixo a pique, 
     e um rubor culpado aflui à face triste da rapariga.

3 comentários:

  1. Miguel, obrigado pela tua bela crítica. Em relação ao problema do "ego ... ego adulescens, ego ephebus, ego puer", na verdade a edição que seguimos tem "puber", em lugar de "mulier". Olhando agora, talvez se devesse ter optado por uma "variatio", mas na altura o que nos pareceu melhor foi mesmo repetir "rapaz".
    Um abraço!

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  2. Esqueci-me de dizer que em relação a ser bilingue, a hipótese esteve em cima da mesa. Acabámos (em conjunto com o editor) por recuar, não só porque fugia ao que tem sido a colecção, mas também porque daria uma tremenda trabalheira a fazer a revisão. O Zé poderá explicar melhor do que eu, mas aparentemente o software de paginação desconhece o conceito de copy-paste

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  3. André, isso reduz o número de gralhas detectadas para 0. Impressive. De facto eu estimaria por mais saudável uma variação de termos, mas ao menos há justificação textual: apesar de achar pessoalmente mais piada ao 'mulier'. As edições bilingues são o meu cavalo de batalha de longa data, para o qual apenas não guardo o adjectivo de quixótico por saber que não é impossível: apenas frequentemente não exequível. Um abraço, e parabéns pelo excelente trabalho.

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