sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Lema, seguido de Esclarecimento de Uma Ilustração


Ao sábio, nada é estranho, nem nada impossível.
Τῷ σοφῷ ξένον οὐδὲν οὐδ' ἄπορον.
Antístenes, em D. L. 6.12

Sobre a Ilustração:
Gravura de Giulio Bonasone (possivelmente a partir de um desenho ou de Prospero Fontana ou de Parmigianino), para o Symbolicarum Quaestionum de Achille Bocchi. A inscrição em latim é uma tradução de uma frase que aparece logo num dos primeiríssimos parágrafos (o 21) da secção dedicada a Diógenes, o Cínico, no Livro VI dos Vidas, Opiniões & Ditos dos Famosos da Filosofia, de Diógenes, o Laércio. Eis o passo, com uma tradução algo apressada abaixo (a frase destacada é a que corresponde ao latim da imagem):

Γενόμενος δὲ Ἀθήνησιν Ἀντισθένει παρέβαλε. τοῦ δὲ διωθουμένου διὰ τὸ μηδένα προσίεσθαι, ἐξεβιάζετο τῇ προσεδρίᾳ. καί ποτε τὴν βακτηρίαν ἐπανατειναμένου αὐτῷ τὴν κεφαλὴν ὑποσχών, “παῖε,” εἶπεν, “οὐ γὰρ εὑρήσεις οὕτω σκληρὸν ξύλον ᾧ με ἀπείρξεις ἕως ἄν τι φαίνῃ λέγων.” τοὐντεῦθεν διήκουσεν αὐτοῦ καὶ ἅτε φυγὰς ὢν ὥρμησεν ἐπὶ τὸν εὐτελῆ βίον.

Uma vez em Atenas, [Diógenes] lançou-se a Antístenes. Embora este o afastasse, por não admitir ninguém, forçou-o pela sua insistência (lit.: assiduidade) . E, uma vez, tendo [Antístenes] levantado o bastão contra ele, [Diógenes], colocando por baixo [do bastão] a sua cabeça, disse: “Bate, pois não descobrirás madeira dura [o suficiente] com a qual me afastes, enquanto for claro que dirás algo”. Daí em diante escutou-o sempre e, sendo um exilado, iniciou-se numa vida simples.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O Trauma Original

Como al hombre a quien de repente, después de largo tiempo y justo cuando menos lo espera, sacude la remembranza turbadora de um crimen cometido en la juventud, de igual modo asaltaron bruscamente al pueblo griego en plena madurez los remordimentos por un acto de violencia cometido en su juventud. Ochocientos años atrás habia hundido en el más profundo de los sueños a otro pueblo: el troyano. 

Este arrepentimiento colectivo, el remordimiento de conciencia que involucra a todo un pueblo puede sonar algo rebuscado, no demasiado creíble, pero el hecho de que se convirtiera en el principal alimento de la literatura griega antigua constituye argumento suficiente para creer que existió en realidad. Pruébese a eliminar Troya, pruébese a suprimir por tanto al muerto que permanece tendido en mitad de ella como en una ceremonia funeraria, y de la literatura griega no quederá ni la mitad.

Los escritores griegos se impusieron la misión de extraer de la conciencia de su pueblo dicho crimen. Y así fue éste desvelado en todos sus aspectos por los proprios griegos, sin la más mínima intervención de pretensiones revanchistas o de presión internacional. Ellos mismos resucitaron, pues, aquella Troya que habían arrasado hasta los cimientos, que habían jurado sepultar tan hondamente que ningún testimonio, ninguna voz, ni siquiera los proprios recuerdos subsistieran de ella; así pues, la extrjeron de la tumba, le sacudieron el barro y dieron testimonio de ella con imparcialidad, como habrían procedido si se hubiera tratado de ellos mismos, si no con superior conmiseración. 

Fue éste un exorcismo sin precedentes, un acto conmovedor, liberador y emancipador, desconocido hasta entonces. Porque, por vez primera en la historia de la humanidad, la conciencia de todo un pueblo experimentaba una zozobra semejante. 

Un desasosiego que pone en evidencia qu dicho pueblo ya era capaz de grandes obras.

Ismaíl Kadaré, Esquilo. El Grand Perdedor. [cap. II fine]
Siruela, Madrid: 2006 (trad.: Ramón Sánchez Lizarralde e María Roces). 

Nota 1: Simone Weil diz algo de semelhante a isto, realçando também o papel de Tróia na assombração da memória colectiva grega e como em torno da impositiva necessidade de fazer justiça à cidade destruída se construiu todo um povo e cultura. Creio que o ensaio onde aparecem essas considerações está incluído na antologia A Fonte Grega, editada pela Cotovia, mas, por não ter o livro à mão, não posso dar certezas.

Nota 2: Ainda só li um terço da obra, pelo que a avaliaçao pode ser injusta, mas este Esquilo, de Kadaré, não pode senão aparecer, ante os olhos de um classicista, como um livro de fantasia, cheio de suposições & imaginações sem qualquer fundamento histórico-científico. Verdadeiramente interessante, até ao momento, só o cap. IV, em que o autor sugere que a tragédia deriva dos rituais funerários, a partir da análise dos rituais albaneses que ainda pôde observar nas aldeias do seu país. Si non è vero (provavelmente não, mas), è ben trovato.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Orfeu

Desço aos Infernos sem nenhuma esperança.
O que morreu no coração dos deuses
Nunca mais ressuscita.
Pode animá-lo o fogo da paixão;
Do outro lado da desilusão
O próprio morto já não acredita.
Eurídice não volta a ser na terra
O que foi algum dia.
O seu nome, que o sol não alumia,
É o cansaço divino a dormitar.
Toda a corte do céu deixou de amar
Não só os poetas, mas a poesia

Coimbra, 8 de Setembro de 1952.

in "Diário VI, 1953",  Miguel Torga, Poesia Completa, Volume I, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2007, p.466

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Hidra
 
Se nunca foste a Hidra no outono
então não sabes
como é branco o branco e azul o azul.
Se nunca ali chegaste com o sol
escorrendo das colinas entre as hastes
da flor encontrada por Ulisses
no próprio inferno - então não sabes
como a terra é o lugar certo
para morrer.

Eugénio de Andrade, Poesia, Modo de Ler, Lisboa, Abril 2011, p.547

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Integer Vitae

Integer Vitae

1
                                        Did you then say
circumscribed betrayal; did you say, the years,
the years alone have done this, circumambient,
did you so propose?

2
                                        The years will not
answer for what they have done, that much
is certain. There is no shaking them, we
might have foreseen this

3
                                        but refused.
No, refusal's too much said for such freedom.
What fails here is fail-safe, our modus
conjured by slide-rule.

4
                                        Ha! We can choose,
vivify what we catch from others' voices.
Thence to imperatives if you stall in
any manner of theme.

5
                                        Non-concurrent
the freedom and constraint outside of this
transient lock that is itself both
end and motive.

6
                                        Juggling music
for piccolo and snare-drum, for any other
ad hoc hocketing of joy, always provided
there remains silence.  

Geoffrey Hill. A Treatise of Civil Power. Yale University Press (2007).


Integer vitae scelerisque purus
non eget Mauris jaculis neque arcu
nec venenatis gravida sagittis,
  Fusce, pharetra,

sive per Syrtis iter aestuosa
sive facturus per inhospitalem
Caucasum vel quae loca fabulosus
  lambit Hydaspes.

Namque me silva lupus in Sabina,
dum meam canto Lalagem et ultra
terminum curis vagor expeditis,
  fugit inermem,

quale portentum neque militaris
Daunias latis alit aesculetis
nec Jubae tellus generat, leonum
  arida nutrix.

Pone me pigris ubi nulla campis
arbor aestiva recreatur aura,
quod latus mundi nebulae malusque
  Juppiter urget;

pone sub curru nimium propinqui
solis in terra domibus negata:
dulce ridentem Lalagen amabo,
  dulce loquentem.


Horácio. I.22. Tradução minha aqui no blog.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Hobbes Leitor de Orígenes (Theologia Política Renascentista §2)

And as the Power, so also the Honour of the Soveraign, ought to be greater, than that of any, or all the Subjects. For in the Soveraignty is the fountain of Honour. The dignities of Lord, Earle, Duke, and Prince are his Creatures. As in the presence of the Master, the Servants are equall, and without any honour at all; So are the Subjects, in the presence of the Soveraign. And though they shine some more, some lesse, when they are out of his sight; yet in his presence, they shine no more than the Starres in presence of the Sun.

Thomas Hobbes. Leviathan. Project Gutenberg.

Although Abraham may have been just and Moses just, and each one of the famous men just, compared with Christ they are not just; their light compared with his light turns out to be darkness. And just as the light of a lamp becomes dark before the rays of the sun, and becomes dark like any other blind matter, so too the light of all the just: it may be bright before men, but it is not bright before Christ. . . . As the splendor of the moon and the glittering stars of the heaven sparkle in their places before the sun rises, but as soon as the sun rises go into hiding, so too before the true light of the sun of justice rises, the light of the church, like the light of the moon, is bright and clear before men; but when Christ comes it fades before him. As it is written: "The light will shine in the darkness." (João 1:5)

Orígenes. Spirit & Fire. Robert J. Daly (trad). The Catholic University of America Press (1984).

Fuerit licet justus Abraham, et justus Moyses, justus unusquisque illustrium virorum: sed ad comparationem Christi non sunt justi. Lux eorum cum ejus luce composita tenebrae reperiuntur. Et quomodo lumen lucernae ad solis radios obscuratur, et velut alia quaedam caeca materies contenebrescit; sic licet fulgeat justorum omnium lumen ante homines, non tamen fulget ante Christum. [Lucet quippe lumen vestrum, non simpliciter dictum est, sed luceat ante homines. Ante Christum non potest lumen fulgere justorum.] Ut splendor lunae et micantia coeli sidera, priusquam sol oriatur, in stationibus suis rutilant, orto vero sole absconduntur; sic lumen Ecclesiae ut lumen lunae, priusquam oriatur lumen illud verum solis justitiae, resplendet, et clarum est ante homines, cum autem Christus venereit, ante eum contenebrescet. Dicitur et alibi: Lux in telebris lucet. [Fonte: p367 do pdf.]

domingo, 19 de agosto de 2012

O Padroeiro dos Estudos Clássicos

Quando me preparava, como costumo, para investigar a venerável eternidade com que me deparara num templo antigo, apareceu-me um imbecil dum padre qualquer que me perguntou qual era o meu 'mester'. Respondi-lhe instantaneamente, "Despertar os mortos do submundo - aprendi-o com a sacerdotisa Pýthia." Abandonei-o completamente estupefacto com a sua banalidade e indecisão, e apercebi-me que o meu 'mester' — esse jamais o poderia abandonar.

Sed enim inter Liguras nondum exacto biennio apud Vercellas antiquam ad Apenninos montes, & olim nobilem civitatem, & de qua Hieronymus senior ille noster suis epistolis in ea septies percussa virgine particula mentionem habet, dum vetustis in sacris aedibus nostro de more aliquid verendae aeternitatis indagare coepissem, sacerdoti cuidam ignaro, quaenam mea  ars esset interroganti ex tempore equidem respondi, mortuos quandoque ab Inferis suscitare Pythia illa inter vaticinia didici. Et haec ubi dicta, quum ibidem vulgarem, incertum, obstupescentemque reliquissem, artem vero meam haud relinquendam putavi.


Cyríaco de Ancona. Itinerarii Epistola I. Tradução minha.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Anne Carson Sobre 'Antigonick'


ALEX DUEBEN: In recent years you’ve been translating a lot of dramatic work, first the Euripides plays for the NYRB imprint, The Oresteia, and now Antigonick. Why have you been drawn to and interested by drama in recent years?

ANNE CARSON: These were all commissions. I have never in fact been much interested in drama but if someone asks me to do something, I generally do it. Canadians are dutiful. 

AD: Where did the idea of translating Sophocles’ Antigone come from and could you talk a little about the decision to not simply translate the play but to rewrite it?

AC: To be honest, I don't see any "rewrite" going on. Everything I've done in the translation is an attempt to convey a move or shock or darkening that happens in the original text. This doesn't always mean reproducing the words and sentences of the original in their same order; but a play is (note etymology of "drama" from Greek DRAN "to do or act") a collection of actions or doings, this is what needs to be rendered from Greek into English. It's true Sophokles doesn't mention Hegel on the first page of Antigone, but he does refer to the long tradition of A's catastrophic family in order to remind his Greek audience of the legend and for us, in 2012, the Antigone legend includes Hegel.

AD: Do you think about how the play could be performed, or at least how the language could be spoken as opposed to read when you translate a play?

AC: Yes, every minute.

[continuar a ler aqui]
(com um agradecimento à Erica, que me mostrou a entrevista)

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Notas de Theologia Política Renascentista

It has since become habitual to say that England owes her central part in the balance of power to her marginal position. As in Cusanus's Experiments with the Scales, 'one pound can counterbalance a thousand pounds by its distance from the centre of the scales.' But while that paradox has tended to harden into a dangerous political commonplace, Cusanus, primarily interessed in theology, derived it from a more general and queer-sounding postulate; namely, that periphery and centre are interchangeable in God. Like many other Renaissance thinkers Cusanus had a liking for the pseudo-Hermetic image which compares God to an infinite sphere whose circumference is nowhere and whose centre is everywhere; and in so far as 'everywhere' and 'nowhere' amount to the same, the contraries of periphery and centre become interchangeable. God is in all the world, that is, in the smallest part of it; and yet all of the world is also in God, since he embraces and transcends it. Maximum and minimum are one. By pushing the contraries to their extremes Cusanus thought that he made them vanish; but whaver may be said against his claim on the grounds of logic, it has been pragmatically confirmed on at least one point: the conclusions of the extreme mysticism of Cusanus agree wih the observations of practical politics. To be placed outside a political situation is to occupy a privileged position within it. As transcendence and inherence coincide in God, so the central position of a worldy power is often secured by its eccentricity.

Edgar Wind. Pagan Mysteries in the Renaissance. Faber and Faber Limited (1958).


(Carl Schmitt acena e sorri.)

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Julius Caesar on an Aldis Lamp


o sketch começa aos 01'04'' e a parte que mais interessa a este blogue, aos 03'04''.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Pulsão [incompleto]

A democracia aparece no Livro VIII da República de Platão como um regime permeado por uma pulsão anarquizante que conduz gradualmente à dissolução de todas as diferenças, movimento que culmina com a quase indistinção entre animais e seres humanos. Pensando esta ligação entre democracia e anarquia, como a primeira bebe da segunda sem que com ela, porém, se confunda, dei por mim a considerar a relação entre duas cenas:

(1) Manderlay (2005), de Lars von Trier: os escravos recém-libertados por Grace, descobrindo a democracia, resolvem, com o seu beneplácito, votar que horas são, por haver entre eles um diferendo a esse respeito, ao nível dos minutos (votação que terá consequências enormes mais para o fim do filme).

(2) Alexandre, O Grande (1980), de Theo Angelopoulos: o relógio da torre da velha igreja foi parado pelos anarquistas, sob o pretexto de que o tempo é um tirano e uma imposição externa absoluta (reconstruo o argumento, que a frase, incisiva, lacónica, dos guerrilheiros já não me lembra). 

[recordar este post]

considerar a relação entre absoluto | relativismo | superação. o relativismo como resposta fraca à inaceitabilidade do absoluto, o momento negativo da trindade dialéctica (este não é, como seria mais fácil pensar, o da abolição pela superação: a Aufhebung). cf. Kafka e a parábola da Lei.   

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Considerações Senequianas Sobre a Igualdade de Género

O maior médico de sempre — e fundador da medicina como ciência — dizia que as mulheres estavam ao abrigo da queda do cabelo e de dores nos pés: ora, hoje vemo-las sem cabelo e com gota nos pés! Não que a natureza das mulheres sofresse alguma mutação. Só que foi ultrapassada, e, como elas se igualaram aos homens em matéria de excessos, passaram a sofrer dos mesmos distúrbios físicos que os homens. Não fazem menores noitadas nem bebem menos do que eles; no consumo de óleo e de vinho rivalizam plenamente com os homens. Tal como eles, "restituem" pela boca as iguarias que o estômago rejeita e aliviam-se, vomitando, do vinho consumido; tal como eles, chupam bocados de gelo para aliviar a azia. Em matéria de sensualidade também em nada cedem aos homens: elas, que nasceram para ser passivas (possam os deuses e deusas castigá-las como merecem!), tão longe se aventuraram na via da licenciosidade que agora, com os homens, são elas quem desempenha o papel activo! Porquê admirarmo-nos então que Hipócrtaes, a glória da medicina, o maior conhecedor da natureza humana, seja assim apanhado a mentir, dada a presente abundância de mulheres calvas e atacadas de gota?! Elas perderam as regalias próprias do seu sexo e, renunciando à feminilidade, viram-se condenadas às molésticas dos homens.

Séneca, Cartas a Lucílio XV.95.20-21
Gulbenkian, Lisboa: 2009 (trad.: J. A. Segurado e Campos). 

[Maximus ille medicorum et huius scientiae conditor feminis nec capillos defluere dixit nec pedes laborare: atqui et capillis destituuntur et pedibus aegrae sunt. Non mutata feminarum natura sed victa est; nam cum virorum licentiam aequaverint, corporum quoque virilium incommoda aequarunt. [21] Non minus pervigilant, non minus potant, et oleo et mero viros provocant; aeque invitis ingesta visceribus per os reddunt et vinum omne vomitu remetiuntur; aeque nivem rodunt, solacium stomachi aestuantis. Libidine vero ne maribus quidem cedunt: pati natae (di illas deaeque male perdant!) adeo perversum commentae genus inpudicitiae viros ineunt. Quid ergo mirandum est maximum medicorum ac naturae peritissimum in mendacio prendi, cum tot feminae podagricae calvaeque sint? Beneficium sexus sui vitiis perdiderunt et, quia feminam exuerant, damnatae sunt morbis virilibus.]

terça-feira, 7 de agosto de 2012

"Platão, creio, estava doente" [Phd. 59b]

31 Porque é que os Karamazov hão-de ser inconcebíveis no tempo de Péricles? Se uma máquina de regressão levasse Dostoievski a recuar até esse tempo talvez houvesse loucos, invisíveis para esse tempo. E talvez esses loucos passassem a ser visíveis e a existir. Os possíveis do homem quem os conhece? Mas todos eles são reais quando a arte os fixou.

123 Em que circunstâncias foram criadas as grandes ideias da cultura? Raro ou nunca o saberemos. O mito da caverna de Platão quando é que lhe apareceu? Nalguma noite de insónia? no intervalo de uma desinteria? nas dores de um dente cariado? E as outras milhentas criações do espírito humano? Porque tudo tem uma circunstância como quase tudo tem só a circunstância sem nada mais haver nela. Poincaré por exemplo diz-nos o momento fortuito em que lhe surgiu o primeiro trabalho sobre as «funções fucsianas»: quando punha o pé no estribo de um eléctrico. Penso-o por mim, que também pertenço à humanidade e mesmo a um recanto do seu ser em espírito. Neste momento, por exemplo, sou em circunstância uma horrorosa constipação e um tremendo vendaval de chuva. Que é que poderia ser em criação espiritual, depois de expurgado em pragas de alívio? Não sei. Mas o que se me adianta em candidatura entendível é um não sei quê de apaziguado e longínquo e aéreo como a luz que deve estar por sobre as nuvens e não vejo. Que é que iria deduzir da minha criação suave quem a soubesse sem saber-me da horrível constipação? Diria que eu era feliz e harmónico e volátil como a graça e a beatitude. E na realidade sou espesso e grosseiro e bruto. A ponto de não saber o que quero dizer com isto.

Vergílio Ferreira, Pensar
Bertrand, Lisboa: 2004 [7ª ed.].

domingo, 5 de agosto de 2012

Investigações: Caninas.

Ver também O Cão Filósofo e O Regresso do Cão Filósofo.




O cão do planeta é o homem.
— «Busca», e ele vai.
A cauda, quando abana, é o contentamento.
É o cérebro, a cauda, e está contente!
O Filósofo.

Gonçalo M. Tavares. Investigações. Novalis. Difel (2002).

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Carmina Catulli [crítica/recensão]


















Catulo. Carmina.
José Pedro Moreira e André Simões (tradução).
Cotovia: 2012.


Com a publicação dos Carmina de Catulo, a Cotovia continua o seu muito meritório (se bem que lento) passeio pela literatura greco-latina. O último já ia longe, com a tradução dos quatro livros das Odes de Horácio (2008), e era portanto já com muita expectativa que aguardava o momento em que teríamos disponível no mercado editorial português os poemas completos de Catulo. Algo que finalmente acontece pelas tradução a duas mãos de André Simões, professor de Literatura Latina na FLUL e tradutor de poesia árabe no sobre as ruínas, e de José Pedro Moreira, cuja excelente tradução do Agamémnon de Ésquilo foi recentemente publicada (2012: Artefacto). 

O poeta romano do século I a.C. ficou famoso para a história da literatura famoso principalmente pelos seus poemas de amor, como o mostra que os nomes de duas outras edições existentes Mas Catulo escreveu muito mais do que poemas de amor. Escreveu-os, sim, a vários destinatários: mas escreveu também insultos, e várias composições que mutatis multis mutandis encontram paralelo com as Cantigas de Amigo (insultos, queixumes, pedidos), assim como poesia sacra, traduções. O corpus de 116 poemas de maneira alguma se esgota nos amores de Catulo e Lésbia, mas as edições existentes em português da sua poesia esquecem isso: Odeio e Amo (2005: Minerva) e a antologia poética latina Poemas de Amor (2009/10: Relógio d'Água) assumem a sua selecção temática nos títulos; 25 Carmes (2010: Licorne) escapa-se pela neutralidade. 

Concluímos portanto antes de tudo o mais que a grande novidade desta edição é ser integral, ou como nos diz Ana Alexandra Alves de Sousa na Introdução, “completa e não censurada”. A parte do não-censurada é importante, pois o tom abertamente obsceno duma boa percentagem dos poemas fez com que viessem a ser cortados, alterados, bowdlerizados de diversas formas – as histórias multiplicam-se de edições bilingues onde expressões mais explícitas eram vertidas por termos inócuos, ou onde ficavam versos latinos por traduzir; fama est que não havia maior incentivo para os jovens estudantes denodarem os mistérios da gramática latina. Mesmo quando nas edições de Poemas Escolhidos se escolhe apenas poemas dum tipo em particular, que não fique por ponderar quanto do que é atribuído a critérios estéticos faça sentido em grande parte numa política de domesticação da Antiguidade, onde pegamos no Winckelmann ou na Sophia de Mello Breyner e tratamos a Antiguidade deles como a Antiguidade, segregando aquilo que não se conforma à idealização. 

Nesta edição dos Carmina não temos esse problema. Felizmente também não caímos no ponto oposto de tomar a parte pelo todo e de coloquializar ou de vilificar os poemas. Cada poema é respeitado quer poetica quer filologicamente, sendo que esse rigor filológico da primeira à última página será talvez a marca mais notória da colecção; isso força a que uma crítica ao volume não possa preterir essa vertente. Uma escolha por uma tradução filológica, embora em Portugal seja quase um facto assumido na edição dos Clássicos, é na realidade sempre uma escolha problemática, pois não raro traduções daí resultantes acusam compromissos de legibilidade, sobre-eruditas e que, por não quererem comprometer o texto antigo, interpõem problemas na tradução que não existem no original. Felizmente creio que o tom deste livro acaba por soar em grande medida do lado agradável da tradução filológica: sem jamais perder sensibilidade poética, não sempre mas frequentemente saboreamos o que há de melhor dos dois mundos: o texto é fluido quando o Latim é fluido, e mesmo quando o estilo latino se torna mais elaborado a tradução raramente se descompassa; raramente nos cruzamos, por exemplo, com o excesso de vírgulas, o temor de qualquer pessoa que alguma vez traduziu hexâmetros. Será seguro dizer que raramente o texto vertido para português é estruturalmente mais emaranhado que o original latino, algo que terá sido facilitato pela escolha em ignorar traduções métricas. E tudo isto ao mesmo tempo que sabemos estar perante uma tradução de confiança crítica. 

Uma das dificuldades prementes nisso é ser capaz de traduzir a fluidez existente no original sem subalternizar o gosto pelas as evocações tão típicas da literatura antiga. Nessa perspectiva, traduzir épica (ou, em Catulo, mini-épica), é mais fácil: a elaboração estilística corresponde mais às nossas expectativas. Como esses recursos, essas comparações são algo que soa tão afectado à nossa sensibilidade, traduzir poemas límpidos é sempre um exercício de funambulismo. Deixo os resultados do poema [7] falar por si: 

Perguntas-me quantos beijos 
teus, Lésbia, me chegam e sobram. 
Tantos quanto o número imenso de areia líbia 
que jaz em Cirene, produtora de laserpício, 
entre o oráculo do ardente Júpiter 
e o sacro sepulcro do velho Bato, 
ou tantos quantas as estrelas, quando se cala a noite, 
que assistem aos amores furtivos dos homens; 
Beijar-te com tantos beijos 
é quanto chega e sobra ao louco Catulo, 
beijos que os curiosos não conseguirão 
contar nem a má-língua enfeitiçar.

Quando o texto latino muda de registo, como é patente nos poemas doutos, a tradução muda pari passu, sem com isso se tornar remota aos nossos ouvidos. Por exemplo os versos 171-176 do poema [64], que servirão de inspiração quase textual ao canto IV da Aeneida (vv. 656-657): 

Ó Júpiter Omnipotente, oxalá outrora 
as popas da Cecrópida não tivessem tocado as praias de Cnossos, 
nem que trazendo o funesto tributo para o indómito touro 
tivesse o pérfido marinheiro em Creta atado a sua amarra, 
nem que este malvado, ocultando sob deces formas os cruéis 
desígnos, repousasse em nossa casa como hóspede! 

Passando para problemáticas mais filológicas e textuais, foi-me de gáudio concluir que era muito frequente que palavras mais específicas fossem traduzidas consistentemente com os mesmos termos ao longo do poema: e isto lembrando que Catulo não é Aristóteles, e que o rigor da correspondência não teria “tanta” importância; nos casos onde no texto latino havia uma expressão conjunta, detectei apenas três casos em todo o livro onde a tradução não era consistente– de mínima importância, mas o segundo, sendo em poemas consecutivos e portanto mais facilmente detectável, era escusado ([23] e [24], onde neque servus est neque arca é vertido ora por arca ora por cofre, quebrando o déja-vu). Se porém o menciono é para lembrar que quanto mais hercúleo é um tal feito quando o tradutor é uma só pessoa, tanto mais o é quando os tradutores são dois. Ao ler a introdução esperava ainda deparar-me com um outro problema. Lá lemos sobre o uso dos diminutivos na língua latina e na portuguesa: “Transpostos para a língua portuguesa, que deles se serve muito comummente para sublinhar contextos pejorativos, convém não intepretá-los de forma errónea. […] Com um valor afectivo, na sua essência, os diminutivos encontram-se tanto nos carmina brevia como nos carmina docta.” Felizmente para nós aqui os tradutores não foram consistentes, e preferiram atender mais ao espírito da língua latina do que à letra, uma das poucas opções anti-filologia do tomo: dos 5 diminutivos nos carmina docta, apenas um aparece vertido (epistolium - “cartinha” [58a]v2). Mesmo nos restantes poemas nem sempre é consistente a manutenção do diminutivo – apenas de em várias das vezes em que sim perguntamos se a escolha é feliz, como no exemplo da Introdução, dos “olhinhos inchadinhos da minha miúda” [3], meae puellae turgiduli occelli

Fora tais erros menores, e de uma mão-cheia de traduções mais dúbidas (como “pudico” para verter virtuosus [16], ou “mais sincero” para maestius [38]), pode-se ainda louvar um texto cuidadosamente revisto, que a meus olhos seria editoralmente imaculado não tivesse tido a sorte macaca de a única gralha que detectei em todo o livro ter sido num ponto tão crucial, onde o verso 63 do famoso poema 53 Super alta vectus Attis, a história da emasculação de Attis, testemunha o original ego mulier [mulher], ego adulescens, ego ephebus, ego puer vertido por Eu fui rapaz, fui adolescente, fui efebo, eu fui rapaz. Concedo que seja uma gralha hermeneuticamente cómica (aliás, essa é a única razão para a mencionar), embora não queira excluir a possibilidade de ter que ver com a edição crítica (!), à qual não pude ter acesso. Seja ou não, é filha única: o cuidado com toda a edição é exímio. [*Não é gralha. Corresponde à edição crítica. Ver a resposta na caixa de comentários.]

Claro que para isto ficar patente a qualquer leitor o livro precisaria de ser bilingue. Perguntamo-nos sobre a justificação de fazer uma edição de tanto luxo material – algo que se comprova também no preço elevado–, quando algo daí poderia ser transferido para a publicação do original latino. Este problema é comum às duas editoras portuguesas que ainda consistentemente editam textos clássicos (a Cotovia e os Classica Digitalia  – as Edições 70 parecem estar em hibernação). A ausência do Latim (e do Grego) tem consequências na percepção pública até junto dos futuros leitores destes volumes, ou mais concretamente na falta de percepção e no esquecimento de que as línguas clássicas sequer existem. 

Quanto à tradução de Ana Alexandra Alves de Sousa, há pouco que se possa acrescentar. Apesar de algumas repetições e incongruências, cumpre o seu papel digno de introdução à vida e obra do poeta. A lamentar apenas que a última secção, apesar de se intitular “Recepção de Catulo”, se foque exclusivamente na recepção do mito de Ariadne (mito esse que não principia nem se esgota em Catulo), deixado de fora a corrente de poesia que flui a partir de Catulo e que explorará aquilo que a própria Ana Alexandra Alves de Sousa elegantemente descreve como aquela “névoa sombria [que] paira sobre a felicidade dos amantes” ao longo dos séculos, composta por ramos tão diversos como os Carmina Burana, o holandês Jan Everaerts, ou o inglês W. H. Auden. 

Terminada a leitura, Catulo aparece-nos multivertente e variegado como poucos outros poetas da Antiguidade, aproximando-se de mestres como Homero e Eurípides. O dito de Platão de que o maior dos poetas estariam igualmente em casa quer na tragédia quer na comédia (que não se aplica aos dois citados) talvez não tenha de esperar por Shakespeare, se atentarmos bem à efervescência dos poemas amorosos, quer os jubilantes quer os desesperados, que logo se transformam em invectiva obscena (“Talo, paneleiro, mais fofinho que o pêlo do coelho, / ou o fígado do ganso, ou o lobo da orelha, / ou a murcha pila de um velho e uma teia de aranha” [25]), para darem de seguida lugar a poemas corais sacros em honra da castidade, da virgindade, e do matrimónio (como o [51], “Não seja leviano o teu marido, / nem dado ao adultério, / nem persiga torpes injúrias, / nem queira dos teus doces / peitos apartar-se.”), num festival de incongruências e de inconsistências. Mas aqui não há lugar para Platão, para as suas fantasias sobre a verdade da poesia: há apenas espaço para a natureza humana em expansão e em explosão: para um poeta que que derramou versos pelos lugares e pelas pessoas com quem se cruzou e passou: na contemplação religiosa dos deuses, no ódio pelos seus adversários, nos insultos ao amante ingrato, ou nas lamentações pela morte do seu irmão querido, falecido em Tróia, evocado em vários poemas e que aparece uma última vez na maldição lançada à terra de Tróia [58b] 89-96. 

Tróia – maldita seja! – comum sepulcro da Ásia e da Europa, 
     Tróia, amarga cinza de todos os homens e virtudes, 
aquela que também ao meu infeliz irmão a morte 
      trouxe. Ai!, pobre irmão, que de mim foste levado, 
ai!, luz alegre do meu olhar, privada do pobre irmão, 
     contigo toda a nossa casa foi sepultada, 
contigo pereceu a nossa alegria, 
     que o teu doce amor em vida nutria. 

Catulo traduziu uma ode de Sappho, o famoso Ille mi par esse deo videtur [51], “Ele parece-me semelhante a um deus.” Mas deveria talvez ter traduzido o ποικιλόφρον' ἀθανάτ Ἀφρόδιτα – 'Aphrodita de mente colorida'; ter-lhe-ia sido ainda mais congénito. 

Com esta publicação não deixo de lembrar um dito optimista sobre mercado editorial português: ficamos chocados quando nos apercebemos que até ao momento não havia uma edição integral dos poemas de Catulo; Mas ao menos as lacunas vão-se, pouco a pouco, preenchendo. Fraca consolação? Talvez. O que é certo é que uma tradução como estas é, no campo das Clássicas, uma publicação de importância par apenas da do Timeu platónico pelo Rodolfo Lopes nos Classica Digitalia: Que venham mais. Mas enquanto tal não acontece demos graças que finalmente esta há-muito anunciada saia ao público. Catulo dá ele mesmo o mote [65], 

Mas porém, entre tantas tristezas, Hórtalo, envio-te 
     esta tradução do poema do Batíada, 
para que não penses que as tuas palavras foram em vão confiadas 
     aos ventos errantes e se sumiram por acidente do meu espírito, 
como a maçã, enviada pelo noivo como presente secreto, 
     cai do casto colo da donzela, 
pois a pobre rapariga deixou-a por esquecimento sobre a veste macia, 
     e, quando ela se levanta com a chegada da mãe, é sacudida, 
e rola e cai por ali abaixo a pique, 
     e um rubor culpado aflui à face triste da rapariga.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

This is my son, he speaks Greek

In 1957, at 18 years of age, future billionaire and founder of CNN, Ted Turner, informed his father that he would be majoring in Classics after being inspired by a professor at Brown University. His father was furious to say the least, and responded to his son's announcement with the following despairing letter — a letter which Ted later sent to the college paper in retaliation, who then reprinted it in full.

A carta começa assim:

My dear son, I am appalled, even horrified, that you have adopted Classics as a major. As a matter of fact, I almost puked on the way home today. I suppose that I am old-fashioned enough to believe that the purpose of an education is to enable one to develop a community of interest with his fellow men, to learn to know them, and to learn how to get along with them. In order to do this, of course, he must learn what motivates them, and how to impel them to be pleased with his objectives and desires.

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