Mais entendiante do que a frequência com que nos perguntam porquê estudarmos Clássicas só mesmo as respostas que damos, inevitavelmente embalançadas entre um romantismo inseguro e a asseveração duma indefinida utilidade cultural. Mas estes são tempos difíceis, em que por todo o lado o espírito do tempo nos tenta expulsar da condução dos nossos destinos e que, por sobrevivência, nos fechemos em nós mesmos. Deixámos já há muito, por um lado, e ainda bem, de poder contar para a nossa sobrevivência com o prestígio reaccionário que exalava do prestígio de estudar a Antiguidade; e por outro lado apercebemo-nos de que desbaratamos o tesouro que nos foi confiado no ócio: estudo clássicas porque gosto, tal como qualquer pessoa tem o direito de estudar seja o que for, e vocês,
profanum vulgus, nada tendes que ver com isso. Contra isto urge ir na direcção precisamente contrária: somos vigários, não temos o direito de invejosamente nos escondermos. Se estudamos clássicas, temos de fazê-lo por firmemente acreditar que aquilo que aqui fazemos não é arbitrário ou aleatório, que o nosso amor pela Antiguidade não paira sob o
Abgrund do relativismo, mas sim que é um amor nascido da admiração e da crença de que o nosso estudo tem o potencial de ser de uso tanto a nós directamente quanto à res publica directa ou
indirectamente; não pode haver lugar para esteticismos. Implica isto o reconhecimento de que é nosso dever enquanto herdeiros falar, transmitir o que sabemos e aplicá-lo
et ira et studio. Implica também rejeitar aquela ora tépida ora ultramontana justificação do estudo da antiguidade de que falava, que se afunda no vazio do papel oblíquo, seguro, e inquestionado da herança clássica que deve ser salvaguarda não se sabe bem do quê, como um κατέχον de bárbaros úteis; ou, se não é assim, que vive insegura de si visto que, feitas as contas, nem serve assim para grande coisa: “não ajudou a Grécia”, diz-nos
uma famosa classicista, argumento de quem não percebe a diferença entre preservação e cultivo, entre arte e museologia. Antes de catalogar o que quer que seja, o nosso estudo implica, também longe duma fuga para uma Grécia idýlica e romântica, uma repolitização do conhecimento, um compromisso para com uma sociedade que não só precisa dos tesouros que nos foram transmitidos, mas também que tantas vezes os merece mais do que nós.
Ora, se esse é o estado presente das coisas, não o foi sempre: apenas a partir do fim da aliança entre Humanidades e Antiguidade,
ruptura do século XIX, se aceitou o papel umbrático da Academia que permanece até hoje, à sombra da qual permanecemos aleados, tentando de ora em quando justificar a nossa existência com colóquios sobre
inania quaeque. Quantas vezes não parece que estudar a Antiguidade significa sondar quantas vezes a palavra "Aquiles" aparece num dado poema –os Estudos de Recepção são das coisas mais inúteis e mais traidoras que existem nos nossos sacrosanctos corredores, pois que se apoiam na ilusão da existência de pontos de contacto entre os Antigos e os Modernos não através de reflexões profundas e úteis, mas através de superficialidades. As nossas índoles de hoje assentam-se sob a descura e o desprezo, sob o sacrifício daquela ideologia que nos dizia que estudar a Antiguidade e estudar a Humanidade eram duas faces da mesma coisa, antes de qualquer especialização técnica– antes do ingresso num curso de Clássicas quase se arrogar a prepotência direito de nos transformar em autómatos idólatras de edições críticas ou de morfologias históricas – falava-se de facto em Humanidades, e não em Filologia, (sendo que nesta nossa nem o amor ao λόγος se mantém, mas apenas uma dedicação à λόγου ὀρθότης). Lamentamo-nos que em tempos era parte duma educação universal saber Grego e Latim e ler os Clássicos, mas, para além do saudosismo barato e vazio, não há uma pessoa sã que julgue que deveríamos considerar Maquiavel, Thomas Jefferson ou Marx classicistas
como nós: o que havia neles era um reconhecimento de que o nexo com a Antiguidade, fosse para cultivar fosse para rejeitar, era essencial à sociedade civil. À imposição etimológica da Filologia para se amar a palavra, é força responder com Zarathustra,
Ich lieb die Menschen – amo o Homem –, e se amo a palavra é na justa medida em que essa é consubstancial à natureza humana.
Esses tempos não voltarão mais, nem isto é uma lamúria. Mas segue-se que o peso com que arcamos é muito maior porque está concentrado em muito menos pessoas. Estudar a Antiguidade implicará então que é preciso ter um papel na vida pública, na
re publica –não necessariamente no Parlamento, mas certamente fora das bibliotecas–, implicará aceitar com a
vox populi, certamente, que “esta situação não pode continuar”. Mas implica também ir muito para além disso. O marasmo da nossa era, reconhecido amplamente (o nosso querido por exemplo Steiner denunciou-o
recentemente), nasce da nossa aparente incapacidade para abrir novos caminhos, saídas de emergência. As inúmeras manifestações em praças, ruas, terreiros, multiplicadas por Portugal, pela Grécia, pelo mundo inteiro, nascidas por certo da intuição incontornável e inegável da Justiça, são inestimáveis, mas tristemente de pouco ou de nada servem agora ou servirão no futuro, a não ser de ténues travas nos portões duma cidade sitiada, enquanto não tivermos novos modelos de organização política para propor, alternativas de regimes, de esquemas culturais, de ideologias. Não nos basta gritar ferozmente que
Não Queremos Isto: enquanto não tivermos um
Queremos Aquilo para oferecer, enquanto não sejamos capazes também de congregar os nossos e os dos outros espíritos numa outra direcção persuasiva que possa dar seguimento à revolta. Se não o conseguirmos, continuaremos a insurgir-nos mudando ou nada ou futilidades (boa, tiramos de lá o tecnocrata #57 e pomos lá o próximo); ou abrindo as portas, depois duma revolução, para o poder fanático do obscurantismo –os tiranos sempre saberão abusar do pior que a palavra faz à mente humana. A nossa vocação enquanto estudantes de Clássicas é pressionar os antigos para que nos sejam de auxílio na nossa busca e descoberta de novas formas possíveis de clamar Justiça.
Essa vocação, se quer ser consciente, impele-nos a concordar com várias afirmações. Em primeiro de tudo a acreditar que, para além da raiva e da revolta, é necessária uma excogitação vehemente para nos tirar do poço, e que para a atingir é preciso algo de novo, ou seja de radicalmente alterado, ou de poderosamente recuperado. Concordar ainda que a natureza humana permanece idêntica a ponto de sobre ela terem sido formuladas intuições que se possam aplicar até aos dias de hoje. Por fim reconhecer que a Antiguidade nos fornece chaves de acesso por excelência que, não sendo absolutas nem solitárias, não podem ser de maneira alguma ignoradas nesta procura. Na Antiguidade encontramos os exemplos paragonados ao longo dos séculos em textos e em vidas que vão do Julgamento de Sócrates ao ao fracasso de Platão com Sicarusa; do enterro de Antígona à língua de prata de Górgias; da vaciladora oposição oscilante entre vida interior e entrega política pelos Estóicos e Epicuristas; da hipocrisia triste de Cícero à theologia política do Império cristão. E pelo menos até ao século XIV, onde se dá uma ruptura (ruptura essa também contestável, como o afirmam vários, e como o João tem vindo a testemunhar ao longo deste blog
#1,
#2,
#3,
#4,
#5,
#7,
#8,
#9), os fundamentos de organização política no Ocidente, assim como até certo ponto no Médio-Oriente, foram os Greco-Latinos acima definidos, e mesmo após essa data a sua influência é inegavelmente inflamatória.
Desligar a Humanidade daqueles que talvez mais profundo alguma vez sobre ela pensaram não lhe augura uma feliz retirada deste pântano; o nosso papel na sociedade, a nossa parte, que tem uma dignidade especial, é juntarmo-nos a outros e a outras sabedorias com os quais partilhemos estes objectivos, para com eles interpretarmos o o conhecimento fornecido pela Antiguidade. Pois sem a nossa reunião com essoutros saberes, não tenho dúvidas que as esperanças que neles colocamos inevitavelmente mancarão. É nosso dever fugir de todo o género de antiquariados, e desnudarmos mais uma vez a sabedoria da Antiguidade para a construção dum futuro novo.