quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Sobre a Ressurreição — Bizantinices Agustinianas

Resta, portanto, concluir que cada um receberá a estatura que lhe é própria, quer seja a que teve na juventude, embora tenha morrido velho, quer seja a que viria a ter se morreu antes dela — e o que diz o Apóstolo acreca da «medida da plenitude da idade de Cristo» (Ef. 4, 13), temos que o entender num outro sentido [...]. Devemos compreender que os corpos dos mortos não ressuscitarão numa forma nem maior nem menor do que a da juventude, mas na idade e com o vigor até aos quais Cristo chegou cá (é realmente por volta dos trinta anos que a juventude atinge o seu pleno desenvolvimento, dizem os mais doutos homens do século: quando ela tiver ultrapassado o seu período próprio, começa então o homem a pender para o declínio duma idade mais grave e senil). Por isso é que se não disse «à medida do corpo» ou «à medida da estatura», mas «à medida da plenitude da idade de Cristo».

Santo Agostinho, Cidade de Deus, Livro XXII, Cap. XV
Gulbenkian, Lisboa: 1995. (trad.: J. Dias Pereira).

[Restat ergo, ut suam recipiat quisque mensuram, quam uel habuit in iuuentute, etiamsi senex est mortuus, uel fuerat habiturus, si est ante defunctus, atque illud, quod commemorauit apostolus de mensura aetatis plenitudinis Christi, aut propter aliud intellegamus dictum esse, id est, ut illi capiti in populis Christianis accedente omnium perfectione membrorum aetatis eius mensura compleatur, aut, si hoc de resurrectione corporum dictum est, sic accipiamus dictum, ut nec infra nec ultra iuuenalem formam resurgant corpora mortuorum, sed in eius aetate et robore, usque ad quam Christum hic peruenisse cognouimus (circa triginta quippe annos definierunt esse etiam saeculi huius doctissimi homines iuuentutem; quae cum fuerit spatio proprio terminata, inde iam hominem in detrimenta uergere grauioris ac senilis aetatis); et ideo non esse dictum in mensuram corporis uel in mensuram staturae, sed in mensuram aetatis plenitudinis Christi.]

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Alguns, baseados nestas palavrs — «Até que cheguemos todos à unidade da fé, ao homem perfeito, à medida da plenitude da idade de Cristo» (Ef. 4, 13) — e nest'outras — «conformes à imagem do Filho de Deus» (Rom. 8, 29) — não acreditam que as mulheres hão-de ressuscitar com o sexo feminino, mas todas no sexo masculino, porque Deus fez apenas o home de barro e, à mulher, tirou-a do homem. Mas a mim parece-me que são mais judiciosos os que não duvidam de que ambos os sexos hão-de ressuscitar. É que, lá no Alto, não haverá já a paixão (libido) que é a causa de toda a perturbação. Realmente, homem e mulher, antes de pecarem, estavam nus e nem por isso se sentiam perturbados. Desses corpos serão extirpados os vícios e será conservada a natureza. O sexo feminino, porém, não é vício, mas natureza, embora, na verdade, doravante liberta do coito e do parto; subsistirão, porém, os órgãos femininos, não já acomodados ao antigo uso mas a uma nova beleza, com que já não será aliciada a concupiscência, que se anulará, dos que para ela reparam, mas com que serão louvadas a sabedoria e a clemência de Deus, que fez o que não era e libertou da corrupção o que fez.

Santo Agostinho, Cidade de Deus, Livro XXII, Cap. XVII
Gulbenkian, Lisboa: 1995. (trad.: J. Dias Pereira).

[Nonnulli propter hoc, quod dictum est: Donec occurramus omnes in uirum perfectum, in mensuram aetatis plenitudinis Christi, et: Conformes imaginis filii Dei, nec in sexu femineo resurrecturas feminas credunt, sed in uirili omnes aiunt, quoniam Deus solum uirum fecit ex limo, feminam ex uiro. Sed mihi melius sapere uidentur, qui utrumque sexum resurrecturum esse non dubitant. Non enim libido ibi erit, quae confusionis est causa. Nam priusquam peccassent, nudi erant, et non confundebantur uir et femina. Corporibus ergo illis uitia detrahentur, natura seruabitur. Non est autem uitium sexus femineus, sed natura, quae tunc quidem et a concubitu et a partu inmunis erit; erunt tamen membra feminea, non adcommodata usui ueteri, sed decori nouo, quo non alliciatur aspicientis concupiscentia, quae nulla erit, sed Dei laudetur sapientia atque clementia, qui et quod non erat fecit et liberauit a corruptione quod fecit.]

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Chegou a altura de resolver a questão, que parece ser a mais difícil de todas, em que se pergunta: quando a carne de um homem morto se torna carne de outro que vive, a qual deles de preferência deve voltar? Se, com efeito, alguém, oprimido e compelido pela fome, se alimentar de cadáveres humanos (esta mal já aconteceu algumas vezes, como no-lo atesta a história antiga e no-lo ensinam desgraçadas experiências dos nossos tempos), poderá sustentar-se com inteira verdade que tudo foi eliminado através das vias inferiores, sem nada ter sido assimilado e transformado na carne dele, quando a própria magreza que foi e já não é mostra à saciedade que perdas foram reparadas com este alimento? Já apresentei um pouco antes algumas observações que devem servir para resolver também esta dificuldade. Tudo o que a fome consumiu de carne se diluiu com certeza no ar donde, já o dissemos, Deus omnipotente pode buscar o que desapareceu. Esta carne poderá, portanto, ser restituída ao homem em quem ela tinha sido primitivamente uma carne humana. Realmente, ela deve ser considerada como se tivesse sido tomada de empréstimo pelo outro: e, como o dinheiro alheio, deve voltar àquele de quem ela se tomou. Mas aquele a quem a fome tinha esgotado receberá a sua própria carne daquele que pode ir buscar mesmo o que se diluiu no ar — e mesmo que tivesse perecido totalmente e dela não restasse qualquer elemento nos recônditos da natureza, o Omnipotente a reconstituiria, tirando-a donde lhe aprouvesse. Mas, devido à expressão da Verdade, em que se diz «nenhum cabelo da vossa cabeça perecerá» (Lc 21, 18) é absurdo pensarmos que, quando nem um cabelo do homem pode perecer, possam desaparecer tantas carnes devoradas e consumidas pela fome.

Santo Agostinho, Cidade de Deus, Livro XXII, Cap. XX
Gulbenkian, Lisboa: 1995. (trad.: J. Dias Pereira).

[Vnde iam etiam quaestio illa soluenda est, quae difficilior uidetur ceteris, ubi quaeritur, cum caro mortui hominis etiam alterius fit uiuentis caro, cui potius eorum in resurrectione reddatur. Si enim quispiam confectus fame atque compulsus uescatur cadaueribus hominum, quod malum aliquotiens accidisse et uetus testatur historia et nostrorum temporum infelicia experimenta docuerunt: num quisquam ueridica ratione contendet totum digestum fuisse per imos meatus, nihil inde in eius carnem mutatum atque conuersum, cum ipsa macies, quae fuit et non est, satis indicet quae illis escis detrimenta suppleta sint? Iam itaque aliqua paulo ante praemisi, quae ad istum quoque nodum soluendum ualere debebunt. Quidquid enim carnium exhausit fames, utique in auras est exhalatum, unde diximus omnipotentem Deum posse reuocare, quod fugit. Reddetur ergo caro illa homini, in quo esse caro humana primitus coepit. Ab illo quippe altero tamquam mutuo sumpta deputanda est; quae sicut aes alienum ei redhibenda est, unde sumpta est. Sua uero illi, quem fames exinanierat, ab eo, qui potest etiam exhalata reuocare, reddetur. Quamuis etsi omnibus perisset modis nec ulla eius materies in ullis naturae latebris remansisset, unde uellet, eam repararet Omnipotens. Sed propter sententiam Veritatis, qua dictum est: Capillus capitis uestri non peribit, absurdum est, ut putemus, cum capillus hominis perire non possit, tantas carnes fame depastas atque consumptas perire potuisse.]

imagem: Ressureição, de El Greco
1584-94, @ Museu do Prado, Madrid.

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