Raríssimos são os que nenhumas penas sofrem nesta vida mas apenas depois dela. Todavia, nós próprios conhecemos e ouvimos falar que tem havido alguns que nunca sentiram nem sequer a mais leve ponta de febre e levaram uma vida tranquila até à decrépita velhice. Contudo, a própria vida dos mortais é toda ela uma pena, porque toda ela é tentação, como o proclamam as Sagradas Escrituras onde está escrito: «Não é certo que a vida do Homem sobre a terra é uma tentação?». Efectivamente, não é pequena pena a própria ignorância ou inexperiência que com razão se procura evitar ao ponto de se obrigarem as crianças, com castigos prenhes de dor, a aprenderem as artes e as letras — e o próprio facto de aprenderem, a que são obrigados com castigos, é-lhes de tal forma penoso que por vezes preferem suportar esses castigos com que os obrigam a aprender, a terem de aprender. Quem é que não fica horrorizado e prefere morrer se lhe for proposto ou a morte ou repetir de novo a infância? O próprio facto de esta começar a tecer a teia da vida, não com risos mas com choros, anuncia de certo modo, sem saber, os males em que acaba de entrar. Ao que se diz, só Zoroastro é que se riu ao nascer.
Santo Agostinho, Cidade de Deus, Livro XXI, Cap. XIV
Gulbenkian, Lisboa: 1995. (trad.: J. Dias Pereira).
[Rarissimi sunt autem qui nullas in hac uita, sed tantum post eam poenas luunt. Fuisse tamen aliquos, qui usque ad decrepitam senectutem ne leuissimam quidem febriculam senserint quietamque duxerint uitam, et ipsi nouimus et audiuimus; quamquam uita ipsa mortalium tota poena sit, quia tota temptatio est, sicut sacrae litterae personant, ubi scriptum est: Numquid non temptatio est uita humana super terram? Non enim parua poena est ipsa insipientia uel inperitia, quae usque adeo fugienda merito iudicatur, ut per poenas doloribus plenas pueri cogantur quaeque artificia uel litteras discere; ipsumque discere, ad quod poenis adiguntur, tam poenale est eis, ut nonnumquam ipsas poenas, per quas compelluntur discere, malint ferre quam discere. Quis autem non exhorreat et mori eligat, si ei proponatur aut mors perpetienda aut rursus infantia? Quae quidem quod non a risu, sed a fletu orditur hanc lucem, quid malorum ingressa sit nesciens prophetat quodam modo. Solum, quando natus est, ferunt risisse Zoroastrem]
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