“É que Alcméon diz que os homens se destroem pelo facto de não conseguirem unir o princípio ao fim”. (DK 24B2[1] = Pseudo-Aristóteles, Problemas [Físicos] XVII 3, 916a33-35)[2]
Quem abrir a famosa colectânea Die Fragmente der Vorsokratiker verá esta frase atribuída a Alcméon de Crotona, um suposto pitagórico dos finais do séc. VI a.C. e considerado pioneiro de postulados e práticas tremendamente admiráveis: recorreu à dissecação como técnica de observação empírica (DK 24A10); defendeu que o cérebro é o órgão responsável pelo pensamento e percepção (DK 24A5); demonstrou racionalmente a imortalidade da alma (DK 24A1, 12). Pasme-se!
Neste fragmento em particular, a revelação não é menos tremenda, contanto que se interprete “destruir” metaforicamente, como aconselha o autor do tratado em que aparece a citação:
"(...) um dito sagaz, se entendermos que ele o proferiu em sentido figurado e não o quisermos tomar à letra". (Pseudo-Aristóteles, Problemas [Físicos] XVII 3, 916a35-36)[3]
Neste sentido, o Homem (se me é permitido universalizar) vive “dilacerado” porque se encontra entre dois extremos que não consegue coligar, um originário e o outro terminal; toma consciência da sua finitude. Conceber um enunciado deste tipo depois da “flecha do tempo” teológico judaico-cristão, que situa o ser humano singular entre um Génesis e um Apocalipse (entre um α e um ω), ou pela versão secularizada do tempo moderno movido pela noção de progresso, seria constatar o óbvio. Todavia, concebê-lo no quadro temporal antigo – circular e eterno, sem princípio nem fim (análogo aos ciclos da natureza) – é no mínimo surpreendente. Esboçar um método experimental ou alicerçar um dos pilares mais fundamentais do platonismo são feitos que, apesar de espantosos, podem ser enquadrados numa macro-estrutura civilizacional; mas antecipar em séculos um modelo temporal cosmológico e antropológico sem qualquer tipo de mudança de orientação cultural, intelectual ou religiosa que o motivasse é algo completamente inexplicável. No entanto, o mistério esclarece-se simplesmente pela leitura do contexto em que o fragmento aparece referido:
“Em que sentido se deve tomar “o anterior” e “o posterior”? Será que é como os [que viveram] em Tróia em relação a nós, os [povos] que estão antes deles em relação a eles, e assim sucessivamente? Ou então, se há um princípio, um meio e um fim do universo, e quando alguém que envelhece chega ao limite para tornar a regressar ao princípio, e se as coisas mais próximas do fim são “anteriores”, o que nos impede de estar mais perto do princípio? Se assim for, nós somos anteriores. Tal como na órbita do céu e de cada um dos astros há um círculo, o que impede que se verifique a mesma coisa em relação à geração e à destruição dos corpos corruptíveis, de tal forma que tornam a nascer e a corromper-se? De igual modo se diz que as coisas humanos são um círculo. É disparatado supor os que nascem sejam sempre os mesmos em número, mas aceitaremos melhor que sejam da mesma espécie. Por conseguinte, nós próprios seríamos “anteriores” e devíamos estabelecer que a ordem dos eventos é de tal forma que regressa novamente ao princípio, produz continuidade e age sempre do mesmo modo. É que Alcméon diz que os homens se destroem pelo facto de não conseguirem unir o princípio ao fim – um dito sagaz, se entendermos que ele o proferiu em sentido figurado e não o quisermos tomar à letra. Se [tudo] é um círculo, como não há nem princípio nem fim do círculo, nem eles seriam “anteriores” por estarem mais perto do princípio, nem nós seríamos [“anteriores”] a eles nem eles a nós". (Pseudo-Aristóteles, Problemas [Físicos] XVII 3, 916a18-39)[4]
Tomada na linha de argumentação do Pseudo-Aristóteles, a frase de Alcméon parece significar justamente o oposto do que sugeria a leitura inicial: cada um dos homens morre (literalmente) do ponto de vista singular porque só lhe é permitido acompanhar a circularidade cósmica enquanto espécie. Ao contrário do que forçava a interpretação do fragmento isolado, o “sentido figurado” não diz respeito a “destroem”, mas sim a “princípio e fim”: como um círculo não tem princípio nem fim, essas designações só podem ser tomadas metaforicamente para designar os dois limites de um evento isolado, como por exemplo a existência de um homem em concreto.
[1] A sigla “DK” (Diels-Kranz) designa o volume Die Fragmente der Vorsokratiker editado por Hermann Diels e, posteriormente, melhorado por Walther Kranz; o primeiro número designa o capítulo dedicado a cada autor (24 no caso de Alcméon); a letra refere-se ao tipo de fragmento (“A” designa os chamados testimonia); o último número indica o fragmento e a referência à direita do sinal “=” diz respeito à fonte de que foi colhido.
[2] τοὺς γὰρ ἀνθρώπους φησὶν Ἀλκμαίων διὰ τοῦτο ἀπόλλυσθαι, ὅτι οὐ δύνανται τὴν ἀρχὴν τῷ τέλει προσάψαι.
[3] κομψῶς εἰρηκώς, εἴ τις ὡς τύπῳ φράζοντος αὐτοῦ ἀποδέχοιτο καὶ μὴ διακριβοῦν ἐθέλοι τὸ λεχθέν.
[4] Πῶς τὸ πρότερον καὶ τὸ ὕστερον δεῖ λαβεῖν; πότερον ὥσπερ ἡμῶν οἱ ἐπὶ Τροίας καὶ ἐκείνων οἱ πρὸ αὐτῶν καὶ ἀεὶ οἱ ἐπάνω πρότεροί εἰσιν; ἢ εἴπερ ἀρχή τίς ἐστι καὶ μέσον καὶ τέλος τοῦ παντός, καὶ ὅταν γηράσκων τις ἐπὶ τὸ πέρας ἔλθῃ καὶ πάλιν ἐπαναστρέψῃ ἐπὶ τὴν ἀρχήν, τὰ δὲ ἐγγυτέρω τῆς ἀρχῆς πρότερα, τί κωλύει ἡμᾶς ἐν τῷ πρὸς τὴν ἀρχὴν εἶναι μᾶλλον; εἰ δὲ τοῦτο, κἂν πρότεροι εἴημεν. ὥσπερ ἐπὶ τοῦ οὐρανοῦ καὶ ἑκάστου τῶν ἄστρων φορᾷ κύκλος τίς ἐστι, τί κωλύει καὶ τὴν γένεσιν καὶ τὴν ἀπώλειαν τῶν φθαρτῶν τοιαύτην εἶναι, ὥστε πάλιν ταῦτα γίνεσθαι καὶ φθείρεσθαι; καθάπερ καὶ φασὶ κύκλον εἶναι τὰ ἀνθρώπινα. τὸ μὲν δὴ τῷ ἀριθμῷ τοὺς αὐτοὺς ἀξιοῦν εἶναι ἀεὶ τοὺς γινομένους εὔηθες, τὸ δὲ τῷ εἴδει μᾶλλον ἄν τις ἀποδέξαιτο· ὥστε κἂν αὐτοὶ πρότεροι εἴημεν, καὶ θείη ἄν τις τὴν τοῦ εἱρμοῦ τάξιν τοιαύτην εἶναι ὡς πάλιν ἐπανακάμπτειν ἐπὶ τὴν ἀρχὴν καὶ συνεχὲς ποιεῖν καὶ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ ἔχειν. τοὺς γὰρ ἀνθρώπους φησὶν Ἀλκμαίων διὰ τοῦτο ἀπόλλυσθαι, ὅτι οὐ δύνανται τὴν ἀρχὴν τῷ τέλει προσάψαι, κομψῶς εἰρηκώς, εἴ τις ὡς τύπῳ φράζοντος αὐτοῦ ἀποδέχοιτο καὶ μὴ διακριβοῦν ἐθέλοι τὸ λεχθέν. εἰ δὴ κύκλος ἐστί, τοῦ δὲ κύκλου μήτε ἀρχὴ μήτε πέρας, οὐδ' ἂν πρότεροι εἶεν τῷ ἐγγυτέρω τῆς ἀρχῆς εἶναι, οὔθ' ἡμεῖς ἐκείνων οὔτ' ἐκεῖνοι ἡμῶν.
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