sexta-feira, 17 de outubro de 2014

As lágrimas do Sol

§1

δάκρυα μὲν σέθεν ἐστὶ πολυτλήτων γένος ἀνδρῶν,
μειδέσας δὲ θεῶν ἱερὸν γένος ἐβλάστησας

fragmento dum Hino Órfico ao Sol. Otto Kern fr nº354. Tradução minha.

as tuas lágrimas são a raça dos mortais sofredores
sorrindo geraste a raça santa dos deuses

§2

Ήλιε, μεγάλε ανατολίτη μου, τα μάτια σου βουρκώσαν,
κι όλος ο κόσμος πια σκοτείνιασε κι όλη η ζωή ζαλίστη,
και κατεβαίνεις στης μανούλας σου το κυματοχαμώι.

Nikos Kazantzakis. Odisseia 24.1397-1400. Athenas. (1957) Tradução minha.

Sol, meu grande Oriental, os teus olhos atolaram-se de água,
todo o mundo escureceu, toda a vida entorpeceu,
e agora desces à tua mãe em suas caves marinhas.


§3



Jean Dodal. O Sol do Tarô de Marselha. (1701).


Com um grande obrigado ao Tassos.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Em Honra de Augusto César Octaviano


O declínio do poderio romano para mim tem início com o fim da liberdade que tem origem no momento em que Roma começa a ser serva dos imperadores. É verdade que Augusto e Traiano não foram completamente maus, e que ainda houve outros imperadores meritórios. Ainda assim, se alguém começar a passar em revista os homens excelentes caídos aquando da guerra de Júlio César, e mais tarde aqueles que o próprio Augusto trucidou no seu cruel triunvirato, se se levar em consideração a selvajaria de Tibério, a cólera de Calígula, a loucura de Cláudio, os crimes e a insânia do reinado de Nero, se ainda para mais se puser a contar esses Vitélios, Caracalas, Heliogabalos, Maximinos, e mais todos esses mostros e calamidades da raça humana, jamais poderá negar que o poderio romano começou a ruir a partir do momento em que o nome de César se apossou do estado como uma peste. A Liberdade teve que dar lugar ao Império, e após a Liberdade também a Virtude partiu. 

Isto porque antes o caminho para as honras públicas passava pela virtude, e aqueles conhecidos pela sua magnanimidade, virtude, e responsabilidade tinham o caminho facilitado para acederem aos consulatus às dictaturæ, e aos restantes cargos políticos. Porém, quando o Estado passou a ser pertença de um só, aqueles que detinham o poder começaram a suspeitar da virtude e da magnanimidade. Os imperadores só gostavam daqueles a quem faltava aquela força e aquele engenho que apenas o desejo de liberdade é capaz de estimular. O palácio imperial preferia os preguiçosos aos corajosos, os aduladores aos responsáveis, e assim que a governação do estado foi entregue aos piores, esses trataram de começar a arruinar o império por dentro. Mas encarando a desgraça de frente, porque é que nos deveríamos lamentar só pelo fim da virtude, quando na realidade estava em causa a destruição geral de todo Estado? Quantas luzes da república foram extintas por Júlio César! De quanta nobreza não foi o Estado privado! Sob Augusto, quer tenha sido por necessidade quer por maldade, quantos não foram proscritos e condenados à morte! Quantos não desapareceram, eliminados! De modo que que ao momento em que as mortes e o sangue cessaram não faz sentido que se chame clemência, mas sim crueldade cansada.


Leonardo Bruni. História do Povo Florentino I. Tradução minha.



Declinationem romani imperii ab eo fere tempore ponendam reor quo, amissa libertate, imperatoribus servire Roma incepit. Etsi enim non nihil profuisse Augustus et Trajanus, etsi qui fuerunt alii laude principes digni videantur, tamen, si quis excellentes viros primum a C. Julio Cæsare bello, deinde ab ipso Augusto triumviratu illo nefario crudelissime trucidatos; si postea Tiberii sævitiam, Caligulæ furorem, Claudii dementiam, Neronis scelera et rabiem ferro igneque bacchantem; si postea Vitellios, Caracallas, Heliogabalos, Maximinos et alia hujusmodi monstra et orbis terrarum portenta reputare voluerit, negare non poterit tunc romanum imperium ruere cœpisse, quum primo cæsareum nomen, tamquam clades aliqua, civitati incubuit. Cessit enim libertas imperatorio nomini, et post libertatem virtus abivit. Prius namque per virtutem ad honores via fuit, iisque ad consulatus dictaturas et ceteros amplissimos dignitatis gradus facillime patebat iter, qui magnitudine animi, virtute et industria ceteros anteibant.

Mox vero ut res publica in potestatem unius devenit, virtus et magnitudo animi suspecta dominantibus esse cœpit. Hique solum imperatoribus placebat quibus non ea vis ingenii esset quam libertatis cura stimulare posset. Ita pro fortibus ignavos, pro industriis adulatores imperatoria suscepit aula, et rerum gubernacula ad peiores delata ruinam imperii paulatim dedere. Quamquam quid virtutis repulsam quis deploret ac non potius communem civitatis interitum? Quot enim rei publicæ lumina sub Julio Caesare extincta sunt! Quantis princibus civitas oborta! Sub Augusto inde, sive id necessarium fuerit sive malignum, quanta proscriptio! Quot absumpti cives! Quot deleti! Ut merito, quum tandem a cædibus et cruore cessaret, non clementia illa sed fessa crudelitas putaretur.

sábado, 9 de agosto de 2014

Sobre o Latim no Secundário [APEC]

informação recebida pela Origem da Comédia.

A Associação Portuguesa de Estudos Clássicos (APEC) apoia e dá parecer positivo à abertura de turmas de Latim e/ou de Grego com um número inferior a vinte alunos no ensino secundário do curso de Humanidades com base nos seguintes argumentos:

- As opções específicas de Latim e de Grego nos curricula do ensino secundário estão contempladas no desenho curricular dos três anos do ensino secundário. Refira-se que a presença das línguas clássicas no ensino obrigatório português é, já de si, francamente inferior à que ocorre nos países desenvolvidos.
- A liberdade de escolha destas opções ficou gravemente comprometida com a legislação que determinou 
um número mínimo de 20 alunos para legitimar a abertura de uma turma de uma opção específica. Não sendo um problema específico para as línguas clássicas, a verdade é que razões diversas têm conduzido a uma oferta curricular uniformizada e monolítica e, em larga medida concentrada numa cada vez mais restrita interpretação do conceito de “opção”.

- Consideramos que a tutela ponderou os riscos desta redução da oferta de opções na rede escolar pública, acautelando o seu efeito através da emissão de despachos e de recomendações (Despacho n.º 5106-A/2012 DR de 12 de Abril 2012; Recomendação nº 4502 de 17 de Julho de 2012, enviada às então Direções Regionais de Educação) a estabelecerem as circunstâncias especiais para o funcionamento de turmas de opção com um número inferior a 20 alunos. Citamos a legislação em vigor:
(Despacho n.º 5048-B/2013, cap. V; art. 21, alínea 4)
1- Nos cursos científico-humanísticos e nos cursos do ensino artístico especializado, nas áreas das artes visuais e dos audiovisuais, no nível secundário de educação, o número mínimo para abertura de uma turma é de 26 alunos e o de uma disciplina de opção é de 20 alunos.
(…)
4- O reforço nas disciplinas da componente de formação específica ou de formação científico-tecnológica, decorrente do regime de permeabilidade previsto na legislação em vigor, pode funcionar com qualquer número de alunos, depois de esgotadas as hipóteses de articulação e de coordenação entre estabelecimentos de ensino da mesma área pedagógica, mediante autorização prévia dos serviços do Ministério da Educação e Ciência competentes.
- Tem-nos chegado ao conhecimento por equipas de constituição de turmas que, reunidas as condições (não haver oferta dessa opção na área pedagógica da escola proponente; não haver sequer no mesmo conselho, no mesmo distrito, esgotadas as hipóteses de articulação com outros estabelecimentos de ensino), solicitam a autorização de abertura de uma turma de Latim como opção específica aos serviços competentes do Ministério, e esta lhes tem sido negada. Entendemos que há, aqui, uma falha na aplicação das leis em vigor, o que é intolerável e lesivo do interesse dos estudantes e da legítima autonomia das instituições de ensino na escolha do seu projeto pedagógico.

- A integral aplicação da lei evocada contribui para travar um estado de extinção quase total do ensino das línguas clássicas e de pessoas que possuam esse saber. Reduzida a sua presença ao mínimo na oferta curricular do ensino não superior, o que é agravado pela aplicação grosseira da legislação, o conhecimento das línguas clássicas em Portugal aproxima-se da extinção, por impossibilidade de assegurar a continuidade na transmissão de conhecimentos aos que os solicitam. Contudo, as línguas clássicas são uma presença fundamental nos sistemas de ensino dos países europeus desenvolvidos, em particular dos países europeus de línguas novilatinas, o que remete Portugal para um muito constrangedor isolamento entre os seus pares europeus.

- Pense-se na Finlândia e no lugar de excelência que este país ocupa nos relatórios de avaliação da educação. A Finlândia é um dos países que dá mais destaque às línguas clássicas no seu currículo. Quereremos nós sugerir aos Finlandeses que poderiam ser melhores ainda, se se livrassem do estorvo das línguas clássicas?

- Pondere-se a questão económica: no presente, as escolas que solicitam a abertura de turmas de Latim têm, nos seus quadros de docentes, profissionais estáveis capazes de lecionar a disciplina. São os professores de português para o 3º ciclo e secundário e de línguas clássicas no ensino secundário. Face à necessária racionalização dos recursos, nenhuma escola pensa em contratar mais docentes para lecionar o acréscimo de uma turma, que pode ser absorvida pelo horário de um docente já integrado na escola.

- Percebe-se que a racionalização de recursos de si escassos não é compatível com a existência arbitrária de turmas de Latim em cada escola secundária que reúna, atualmente, os meios humanos para o fazer (sc. professores com habilitação própria para a lecionação de português e de latim). As escolas secundárias proponentes tiveram-no em causa quando prepararam a constituição das turmas e estabeleceram contactos com as seus pares.

- É evidente que, nos últimos anos, por razões diversas, houve uma redução na procura destas disciplinas. Na verdade, difícil se torna exercer um direito de escolha fundamentada quando se é confrontado permanentemente com um “-Latim aqui não há”; ou mesmo escolher o que não se conhece de todo, após anos de exposição a programas e conteúdos profundamente avessos à memória, ao esforço, e às matrizes culturais da Europa.

- O que está em causa, neste domínio, é saber se a gestão ministerial considera aceitáveis as consequências do descalabro da presença dos estudos clássicos e das línguas clássicas enquanto disciplinas relevantes para a educação integral de um cidadão de um país europeu de língua românica; se se associa a este vazio, paulatinamente construído por medidas legislativas de mérito nunca avaliado e altamente prejudiciais da estabilidade desejada para um modelo educativo; ou se, pelo contrário, permite que as escolas, as academias e a sociedade civil desenvolvam projetos para permitir a continuidade e a revalorização da presença dos estudos clássicos nas escolas de todos nós.

Paula Barata Dias
Presidente da Associação Portuguesa de Estudos Clássicos

terça-feira, 22 de julho de 2014

2014 - O Estado Crítico dos Estudos Clássicos em Portugal

(Texto recebido pela Origem da Comédia)

A investigação e o ensino dos Estudos Clássicos em Portugal estão ameaçados de extinção. De facto, a arbitrariedade e o voluntarismo com que o Estado legisla e interfere nas instituições dedicadas à investigação e ao ensino, sejam centros de investigação, universidades e escolas, provocam o caos numa área do saber cujo valor referencial para a cultura portuguesa e culturas europeias é, com ironia, unanimemente considerada.

Foi levada a termo, pela Fundação para Ciência e Tecnologia, neste mês de Julho, a avaliação dos centros de investigação. Os resultados da mesma condenarão muitos centros nacionais ao subfinanciamento, incompatível com os projetos que têm em curso, ou à cessação de atividade por estrangulamento financeiro. A situação afeta muitas áreas científicas, mas é particularmente grave nas Humanidades e Ciências Sociais. Os dois centros portugueses de investigação em Estudos Clássicos, o Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos de Coimbra (CECH) e o Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa (CEC) encontram-se entre as unidades de investigação que, tendo recebido “Bom”, verão inexoravelmente afetado o seu funcionamento até 2020.

A investigação acolhida nestes Centros atravessou nos últimos vinte anos um florescimento e uma qualificação únicos na história dos Estudos Clássicos em Português: o número de traduções de autores em Latim e em Grego antigo que, pela primeira vez, foram apresentados e traduzidos para a língua portuguesa; as teses de mestrado e doutoramento acolhidas e desenvolvidas nestas unidades de investigação; a organização e participação de investigadores portugueses em iniciativas científicas; as publicações nacionais e internacionais; a avaliação periódica a que estas instituições foram sujeitas pela FCT e o consequente reflexo desta nas atividades e na estratégia seguidas por estas unidades, são indicadores cuja constância e reconhecimento público especializado, nacional e internacional, não fariam de forma alguma prever os resultados agora divulgados.

Quanto ao ensino dos Estudos Clássicos nas universidades, existem duas formações de primeiro, segundo e terceiro ciclo em todo país, nas universidades de Lisboa e Coimbra, em complementaridade com as unidades de investigação em Estudos Clássicos aí sedeadas. Há já largos anos que, à semelhança de outras áreas científicas neste país consideradas “não prioritárias”, os alunos aí iniciam (num claro paradoxo com a designação “ensino superior”) o estudo de Latim e de Grego. A situação é de tal modo calamitosa que os estudantes Erasmus que frequentam Humanidades nas nossas universidades têm dificuldade em encontrar níveis de formação em língua suficientemente desafiantes para continuarem a sua aprendizagem. O inverso também sucede: estudantes portugueses em mobilidade que não conseguem acompanhar os níveis superiores de ensino de línguas clássicas praticados nas universidades europeias, por claro desfasamento entre duas realidades educativas.

Que se saiba, também no domínio dos Estudos Clássicos Portugal está em desvantagem competitiva!

As sucessivas, e nunca avaliadas, mudanças dos planos curriculares do ensino secundário, aliadas às sucessivas e nunca avaliadas reformas da rede escolar, tarefas em que têm sido pródigos os ministérios da Educação deste país, tiveram com efeito, não sem os alertas das sociedades científicas, académicos e professores, a quase extinção do ensino do Latim e do Grego nas escolas portuguesas, públicas e privadas, dentro de um também anémico curso científico-humanístico de Humanidades.

Temos, em todo o país, uma turma de Grego no 12º ano, e não chegam a duas centenas o número de alunos a quem é permitido aprender Latim, entre o 10º e o 12º ano. A maioria das cidades portuguesas não tem uma escola que apresente a opção de Latim e de Grego aos seus estudantes de Humanidades, previstas, contudo, nos planos curriculares. Portugal é também o único país novilatino que aceita que o ensino da sua língua materna – o Português –seja possível com recursos humanos, isto é, com professores, sem nenhum conhecimento de Latim.

A Associação Portuguesa de Estudos Clássicos manifesta a sua grande preocupação face a este cenário de asfixia e extinção dos Estudos Clássicos em Portugal – na investigação, no ensino superior e nas escolas básicas e secundárias. Considera profundamente alarmante que num país europeu desenvolvido – o único face aos outros países europeus, românicos ou não – se verifique este estado de negligência pelos Estudos Clássicos, após sucessivas intervenções legislativas de quem tutela a investigação e o ensino. Denunciamos o estado de alerta que paira sobre as Humanidades clássicas, ameaçadas por um desastre paulatinamente criado por uma tutela que descura as condições de estabilidade no ensino e investigação de um domínio científico fundamental, e de quem se esperava zelo, também por este indicador de desenvolvimento: a presença de Portugal, com continuidade, consistência e mérito, no grupo de países europeus com investigação e ensino, superior e não superior, em Estudos Clássicos.

18 de Julho de 2014
Paula Barata Dias
Presidente da APEC
(Associação Portuguesa de Estudos Clássicos)

sábado, 12 de julho de 2014

[PORTO] Quem quer Latim no secundário?

Que o Latim está a desaparecer, ou talvez a melhor palavra seja a extinguir-se (é que os predadores são muitos) não é novidade para ninguém. Lembro-me de há coisa de 7 anos atrás quando quis fazer Latim no secundário em Viseu ter ficado espantado por em nenhuma das escolas dessa capital de distrito haver possibilidade de o estudar. Claro que isso não é nada comparado com a possibilidade bem real de deixar de haver Latim no Porto, a segunda cidade do país.

Por enquanto pouco se pode fazer a nível institucional, até porque um dos motivos para não abrirem as turmas é os alunos estarem dispersos por várias escolas e por motívos logísticos (deixo um "alegadamente") não ser possível abrir uma só turma., mas o foi-nos pedido que sugeríssimos que alunos nestas condições, ou seja que queiram ter Latim mas as escolas não o permitam, sejam reencaminhados para a Escola Secundária Rodrigues de Freitas — Porto onde a possibilidade de abertura duma turma é mais real.

Claro que nos deveria encher de revolta o mero facto de um país de língua neo-latina ter de andar com estratagemas destes para que os seus filhos e filhas possam sequer ter a possibilidade de aprender a língua avó.


Muito importante

Chega-nos aos ouvidos que existe um Despacho que prevê que, não existindo uma escola num raio de 30km a oferecer uma disciplina, esta possa abrir com qualquer número de alunos, mesmo se inferior aos 20 regularmente previstos por lei. Isto é uma grande conquista, e alunos, pais, e professores interessados em pressionar pela abertura de turmas de Latim devem fazê-la valer.
Despacho n.º 5048-B/2013, V, art. 21, 4 (sic.) 4- O reforço nas disciplinas da componente de formação específica ou de formação científico-tecnológica, decorrente do regime de permeabilidade previsto na legislação em vigor, pode funcionar com qualquer número de alunos, depois de esgotadas as hipóteses de articulação e de coordenação entre estabelecimentos de ensino da mesma área pedagógica, mediante autorização prévia dos serviços do Ministério da Educação e Ciência competentes.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Estará o Latim realmente a voltar às escolas? Caveat Lector


O texto acima é um artigo infelizmente necessário que falsifica as notícias que aparecem com a regularidade dum relógio sobre a suposta "ressurgência do Latim" nos curricula, por sinal sempre nos de outros países. (O meu favorito é o da Deutsche Welle.) É um artigo necessário porque o Latim (ou o Grego, ou as Humanidades, ou a Civilização Ocidental), se alguma fez conseguirem sair do seu torpor, não será devido à resolução iluminada dos alunos do secundário, que um dia acordarão conscientes de que o estudar a Antiguidade é o segredo para o futuro. Para que isso possa acontecer teremos de ser nós a colocarmo-nos em causa e a submetermo-nos a violentas auto-críticas. Para além dos motivos apresentados no artigo, estas histórias são sedutoras porque nos poupam a essa investigação interior, e (visto que são escritas por pessoas como nós), contam a história como nós a queremos ver contada: somos apresentados como os heróicos resistentes, os devotos adeptos do «água mole em pedra dura» que afinal de contas tiveram sempre razão (e, finalmente, a criançada lá acabou por perceber — a criançada, diga-se, lá de fora, lá nos países civilizados). Não temos mais que nos submeter a análise, porque a História (ou pelo menos as manchetes de meia dúzia de jornais online) acabaram por nos vindicar. E isso sabe bem cá dentro, mas é também perigosamente falso.
»But I'd argue there's more to it than that. This story persists in large part because it's a story we really, really want to believe. In a world full of talk about the "dumbing down of education" and worries about a generation unable to focus on anything longer than a text message, the notion of young people embracing "the classics" and taking on a subject that's famously difficult and challenging is immensely reassuring.«

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Opera in Fieri 2014 #1

A Origem da Comédia, em associação com o Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, organiza este ano duas sessões dos Opera in Fieri, uma já esta segunda-feira, outra em Outubro (a publicitar com antecedência). Cinco jovens doutorandos apresentarão partes do trabalho que estão a desenvolver, as quais serão analisadas preliminarmente por cinco outros investigadores, que assim prepararão o debate alargado de cada tema. Edições anterios dos Opera revelaram-se verdadeiros sucessos, com uma participação excepcional do público, que muito enriqueceu os doutorandos que tiveram oportunidade de apresentar o que andam a fazer. Eis o programa das festas, a decorrem no Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, na Faculdade de Letras de Coimbra:

9:30: Recepção dos participantes e apresentação

10:00: Separando o trigo do joio nos mitos (proto)jurídicos da Oresteia
Proponente: Miguel Régio de Almeida
Comentador: Francisco Oliveira

11:00: pausa para café

11:20: Intratestualità e Intertestualità nei ‘Regum et Imperatorum’
Proponente: Serena Citro
Comentador: Delfim F. Leão

12:20: intervalo para almoço

14:00: Entre palavras e ações: a caracterização de Menelau na Ilíada
Proponente: Félix Jácome Neto
Comentador: Rui Carlos Fonseca

15:00: Autoctonia e pertença à terra na Grécia Clássica
Proponente: Alessandro Eloy Braga
Comentadora: Maria de Fátima Silva

16:00: pausa para café

16:20: Representações de katábasis em Platão
Proponente: Carlos Luciano Coutinho
Comentador: João Loureiro

17:20: Encerramento dos trabalhos

terça-feira, 17 de junho de 2014

Entre risos a falar de Medeia


A propósito da peça Queda Medea — a partir de Séneca e Ovídio fomos conversar com o encenador, Carlos de Jesus. Uma entrevista amigável sobre Medeia: teatro, tradução, Ovídio, Séneca, Miguel de Unamuno.







É refrescante e enriquecedor ouvir as palavras de alguém com experiência profundade nas duas vertentes do drama antigo, a filologia e a dramatização propriamente dita. São dois polos que não se unem com tanta frequência quanto seria desejado, e por isso deixamos os nossos agradecimentos ao Carlos pelo tempo que nos devotou.


§

[Miguel Monteiro] Estamos aqui para fazer uma entrevista à peça que encenaste, Queda Medea (a partir de Séneca e Ovídio) e que vai ser apresentada hoje no Teatro Académico Gil Vicente em Coimbra. Carlos, podes começar por nos falar muito brevemente da trama da peça?

[Carlos de Jesus] O mito de Medeia é bem familiar para a maioria das pessoas: a heroína que, por motivações diferentes nas várias versões, decide, com o fim único de se vingar de Jasão, o marido que tinha acabado de a abandonar (ou melhor, que nem sequer a tinha abandonado, que a ia abandonar definitivamente nesse dia), decide matar os filhos, precisamente no dia em que o ex-marido se volta a casar, agora com Creúsa, uma princesa mais jovem. E quanto ao enredo desta peça em particular, a história abre quando está a começar o dia e os preparativos para as segundas núpcias de Jasão, o que naturalmente é dito pelo coro. Medeia apercebe-se do que se está a passar (ou provavelmente já o saberia, não fica muito claro), mas o facto de assistir e sobretudo ouvir as conversas do coro faz com que confirme a disposição de fazer aquilo que provavelmente já teria planeado, vingar-se de Jasão. Mas a vingança não se resume ao filicídio, esse é apenas o seu término e expoente máximo; antes de dar morte aos filhos, envia um “manto”, um acessório, um vestuário de boda (seja este objeto qual for, não nos interessou muito o que era), envenenado com as suas poções e os seus encantamentos, de forma que Creúsa morra assim que o vista; mais, envia-o sob a forma de presente de casamento e por via dos próprios filhos, que assim são ao mesmo tempo arma e vítimas de um crime. Depois de dar morte a Creúsa e a Creonte, porque entretanto o fogo que teve início no véu envenenado de Creúsa espalha-se a todo o palácio (a cena que o Pasolini faz tão bem), então sim mata os filhos (supostamente, na versão de Séneca, em cena), na presença de Jasão.

[MM] Tu já tinhas encenado outras peças, nomeadamente com o Thíasos cá em Coimbra. Mas, sempre em Português. Como é que é encenar uma peça noutra língua que não é a tua? A saber, para o caso, em castelhano?

[CJ] O castelhano não é nem será nunca uma língua “minha”, como dizias; não estou sequer a trabalhar para isso. Mais importante do que a peça ser numa língua ou outra é trabalhar com bons textos, no caso com boas traduções. Se me estás a perguntar pelas dificuldades do próprio processo, como é que eu e os actores nos entendemos mesmo nas coisas pequenas (e claro, nas grandes) relacionadas com o processo de encenação, posso dizer-te que tive que contar também muito com eles. Naturalmente havia muita mímica pelo meio, havia por vezes coisas e situações para as quais sentia uma falta de vocabulário enorme, mas esses esclarecimentos cedo partiram deles, mesmo sem serem pedidos. O certo é que, ao cabo do processo, não penso que tenha havido nenhuma grande dificuldade acrescida por isso. Acho que a única coisa que posso dizer que foi diferente (além de toda a concepção da peça e do próprio método de ensaios, que eu mesmo fui alterando ao longo dos anos em que trabalho neste campo) é que, se em todas as peças que encenei em português, ao mês de trabalho eu próprio já tinha decorado todo o texto; com estas traduções em espanhol, isso não aconteceu.

[MM] Eu tinha aqui a nota de que para a próxima tinhas de experimentar em Latim.

[CJ] Já fiz bocadinhos, pedacinhos de Latim nas peças.

[Elisabete Cação] E em Grego, também! Lembro-me da Κύπρι, Κύπρι [na tua encenação do Hipólito] ...

[CJ] Uma peça completa em Latim só se fores lá tu. Se passares lá dois meses... (Risos)

[ΜΜ] ... a gente faz! (Risos) Bem, continuando. Há um certo pudor em torno da encenação das tragédias de Séneca — a capacidade dramática (por oposição à lírica) é posta em causa até pelos próprios filólogos, que tendem a dizer que eram escritas para serem recitadas, não encenadas. Evidentemente isso não te assustou.

[CJ] Isso não me assustou, nada. Pelo contrário, acho mesmo que foi uma motivação para fazer diferente, para tentar o que poucos – pelo menos ao nível do teatro universitário – se tinham aventurado a fazer. As desculpas filológicas, porque são filológicas, usadas para não pôr contemporaneamente Séneca em cena não são nada teatrais, não há nada na técnica teatral moderna e contemporânea que justifique esse medo a Séneca.

[MM] Há talvez a noção histórica. A ideia que se tem de que Séneca escrevia e recitava, não apresentava, portanto seria mais devido ao exemplo histórico do que propriamente a qualquer capacidade dramática do texto.

[CJ] Mas o teatro contemporâneo vive mais de metade de pôr em cena textos que não são teatrais. E, ao que julgo saber – embora confesse que a questão da performatividade senequiana não me tirou muito o sono – os estudos mais recentes e autorizados sobre o assunto já ultrapassaram essa teoria da declamação a que te referias.

[MM] Claro. E há ainda o teu caso, que inseres o Ovídio.

[CJ] Sim, e pode dizer-se em primeiríssima mão que, a correrem bem os projectos, toda a peça do próximo ano será construída a partir das mesma tradução das Heroides, do século XVI, que usei em Queda Medea. Um conjunto de três, quatro, ou cinco cartas de Ovídio, não sei bem ainda.

[MM] Deixo só a nota que vai sair um filme em Outubro do Cristophe Honoré, que é uma adaptação das Metamorfoses do Ovídio.

[CJ] A sério? Que boa notícia! Portanto, e só para concluir esta questão: aquilo que os filólogos apontaram como dificuldades para o texto de Séneca ser moderna- e contemporaneamente encenado não faz grande sentido. Uma das questões apontadas é, por exemplo e há muito, a extensão dos monólogos...

[MM] Não se encenava Shakespeare.

[CJ] ... haveria uma série de textos que não se encenava. E de textos dramáticos (como é o de Séneca). Claro que as coisas ficam facilitadas se se adoptar, como tentámos adoptar, uma estética contemporânea, algo mais conceitual e na ordem do simbólico. Nós trabalhamos muito com símbolos. Outra das dificuldades de encenar Séneca seria o facto de, em Séneca, supostamente as mortes ocorrem em cena. Mas isso é uma liberdade da encenação. Posso dizer que nunca compreendi bem (nem me esforcei por fazê-lo) a noção de teatro arqueológico. Afinal de contas o texto é o texto e uma pessoa depois pega-lhe como entende.

[MM] Se não enquanto encenador ias para o desemprego!

[CJ] O que constituiria certamente uma grande perda do rendimento mensal, como deves calcular! (Risos)

[MM] Eu estava ainda aqui na parte da adaptação, da tradição filológica, e cheguei à pergunta óbvia: a quem vai ver uma encenação da Medeia com base em textos clássicos, salta à vista que, ao mesmo tempo que aparece Ovídio, falta aquela peça que provavelmente teve o maior papel na popularização da história da Medeia: afinal de contas onde é que está o Eurípides? Foi um eco nietzschiano de desprezo pelo terceiro dos grandes tragediógrafos gregos? Ou foi simplesmente para deixar os outros textos menos representados respirar?

[CJ] Houve várias razões, houve razões dramáticas, mas também razões que não tiveram rigorosamente nada que ver com o teatro. Comecemos pelas últimas: junto dos meus contactos na Faculdade de Letras de Granada, foi do Departamento de Literatura Latina que partiu a proposta. Eu à partida senti-me um bocadinho, não diria pressionado, mas levado a escolher um texto clássico que originalmente fosse escrito em Latim. E depois lembrei-me da minha vontade antiga de fazer Séneca. Ainda pensei, "se calhar a Medeia já não", mas depois acabou mesmo por ser. E claro, misturada com os textos de Ovídio. Na realidade, o guião é cerca de 80% texto de Séneca, e 20% a Heroide de Ovídio, mas o texto de Ovídio traz para a peça a Medeia romântica, a Medeia donzela, quase outra Creúsa, que a Medeia de Séneca não tem ou na qual, pelo menos, não se centra muito. De nietzschiano a peça tem muito, mas sobretudo no que diz respeito à figura moral de Medeia, que a tradução de Unamuno, talvez por via do carro alado, muito ajuda a colocar num patamar que está para além do bem e do mal.

[MM] E se eu bem me lembro, na Heroide, ela ainda nem sequer se decidiu a matar os filhos. Sabe só que vai fazer alguma coisa.

[CJ] Penso que a grande interrogação da carta de Ovídio é lírica e romântica: "Caramba, porque é que me fizeste isto?" Portanto, traz para a cena essa Medeia apaixonada e jovem, um outro tempo, passado, em que o amor era autêntico. Aliás, talvez isto de alguma maneira se compreenda da peça, que de alguma maneira apresenta ao espectador duas Medeias e três tempos distintos. A primeira figura que entra em cena é uma Medeia que eu imaginei já velha, digamos 20 anos depois de tudo isto acontecer, e que diz um trecho de Ovídio; depois temos a Medeia senequiana; e temos ainda essa Medeia juvenil que recorda todas essas promessas que Jasão lhe fez, de amor eterno, etc. Um exemplo: imediatamente depois de Medeia dizer que não só vai matar os filhos como também “Se, por acaso, eu tivesse um filho no ventre arrancá-lo-ia a ferros para que a minha vingança e o teu sofrimento fosse ainda maior”, vem um trecho de Ovídio em que a Medeia recorda as promessas de amor da altura em que foi pedida em casamento por Jasão. Os dois textos ajudam portanto a criar estes contrastes, que vivem também do desdobramento da Medeia em duas personagens. Personagens essas que não pretendem ser fisicamente a mesma figura que simplesmente usa cores diferentes ou funciona em paralelo com a outra. Não: são duas personagens autónomas, que têm o mesmo nome, que de alguma maneira corporizam as duas Medeias que no fundo já existiam no Séneca e no Ovídio.

[MM] Eu ia fazer um bocado essa pergunta: essas duas Medeias são derivadas respectivamente uma de Séneca a outra de Ovídio, ou são duas Medeias presentes em cada uma das narrativas?

[CJ] São ambas Medeias presentes em cada uma das narrativas, e são sobretudo ambas muito presentes em Séneca. A ideia das duas Medeias, das duas actrizes a fazer de Medeia, foi anterior à inclusão do Ovídio. Depois funcionou, mas há trechos de Ovídio ditos por ambas as Medeias, não há essa relação directa.

[MM] Bem, avançando. Tu talvez antes de seres encenador, és um tradutor reconhecido da literatura greco-latina. A sensibilidade para a escolha de traduções certamente não terá sido descartada na selecção das versões escolhidas. Podes falar-nos um pouco dessas escolhas? O texto de Ovídio é renascentista, do século XVII, o de Séneca dos inícios do século XX, do Miguel de Unamuno. O que é que essas traduções têm de especial, para as escolheres no lugar de escolher simplesmente traduções contemporâneas?

[CJ] Não sei se serei um tradutor reconhecido, mas algo já fiz a esse nível, tendo já traduzido para teatro, diretamente, pelo menos duas vezes. O que estas traduções têm de especial é, simplesmente, o facto de serem traduções feitas por poetas. No caso do Unamuno é uma tradução feita por alguém que foi poeta, filósofo, político, ensaísta, a pessoa que proclamou a República Espanhola da varanda da Câmara Municial de Salamanca, onde era catedrático de Grego, e eu não conheço e duvido que venha a conhecer uma tradução da Medeia de Séneca melhor que a do Unamuno. O que é que essa tradução tem? Tem a concisão da palavra poética que ele dominava bem. Não há um acrescento grande de palavras na tradução. Se há uma frase que o Séneca quer que seja concisa e lapidar, o Unamuno mantém isso, e tem todo o humanismo que lhe é reconhecido e que está presente nessa tradução, além ainda da questão política. Eu escolhi localizar plasticamente a peça no contexto de finais da I República também muito por causa do Unamuno. O que vamos ver é uma Medeia — vá, duas — aristocrata. É uma peça da aristocracia. É uma transposição dessa época (como já os heróis gregos eram à partida aristocratas). Pareceu-me que era a época que melhor poderia transmitir a elegância do próprio texto do Unamuno, e a humanização, que é uma supra-humanização da Medeia. Mais, a cena de Queda Medea, situada algures nos anos 30 do século XX, acaba por ser um tributo à primeira encenação da tradução de Unamuno, que pela primeira vez foi levada à cena no recém-inaugurado Teatro Romano de Mérida, em 18 de Junho de 1932, protagonizada pela imensa (e elegantíssima, diga-se) Margarita Xirgu.

[MM] Ainda sobre a questão da escolha das traduções, confesso que tive uma reserva. Quer dizer, quando vemos uma tradução feita há 20, 30 anos, especialmente na tragédia (na comédia também, claro), já as palavra são pesadas. Não sentiste o peso dos arcaísmos? Não só no Unamuno, mas se calhar em particular na tradução do Diego de Rivera do século XVII?

[CJ] Senti, gostei, e procurei exagerá-los (Risos). Explico-me: a tradução que usei de Ovídio não dista de nós 60 anos, dista de nós muitos séculos, está cravejada de arcaísmos. Por exemplo, em alguns momentos não aparece a palavra pero (“mas”), mas sim a palavra mas, que é uma forma ainda usada, mas já muito menos usada que o equivalente normal; outro exemplo: a palavra usada para designar os encantamentos, os menjurjes, é uma palavra que já ninguém usa, mas eu quis tirar partido desses arcaísmo. Se mesmo em Espanha, na estreia, algumas, muitas pessoas não saberiam o que queria dizer menjurjes? Sim, provavelmente muitas não sabiam. Mas se vêem uma figura que está a destilar líquidos de diferentes cores o efeito dramático ajuda na compreensão. Portanto, os arcaísmos estavam lá, e ainda bem.

[MM] Voltando um pouco atrás, quando falaste da Medeia do Pasolini, lembrei-me que para mim há duas grandes referências visuais do drama da Medeia enquanto um todo, a Medeia do Pasolini e, mais recentemente, a do Lars von Trier. Há alguma coisa que pudesses dizer sobre a relação, se é que há de todo uma relação com uma ou com a outra. Já falaste do palácio em chamas na do Pasolini.

[CJ] Em primeiro lugar, ao que julgo saber, ambas essas versões se baseiam em Eurípides. Para mim a grande diferença entre as duas, para além das diferenças óbvias – porque dois génios não trabalham da mesma maneira –, tem que ver com os símbolos mais fortes. Para mim, a Medeia do Pasolini tem como símbolos principais a terra e o fogo, e a do Lars von Trier sobretudo a água. A simbologia da água é trazida para a nossa cena: os líquidos, os próprios encantamentos e as poções), além de que Séneca, sobretudo nas odes corais, reforça muito a imagem do mar: da viagem por mar, a transposição do mar vista quase com a carga de hybris com que a viam Ésquilo e Heródoto; por isso uma ode coral diz algo assim: “desgraçado do fulano que inventou a navegação, que teve a ideia de que, se eu pusesse um lenho em cima da água, flutuaria e poderia chegar a outro sítio, porque se essa pessoa não tivesse existido nunca, Jasão nunca teria ido à procura do Velo de Ouro, nunca teria encontrado Medeia, e esta desgraça toda não estaria agora a acontecer.” De alguma forma a própria cortina (que separa o palco a meio), as ondulações da própria cortina reforçam essa imagem; foi de propósito que eu não quis que fosse uma cortina lisa e passada a riso; ao mesmo tempo te dá a água enquanto vidro ou cristal, dá-te também a água enquanto espelho que transfigura e modifica a realidade, e foi isso que eu tentei fazer com o facto de ter público em ambas as laterais – proporcionar perspectivas diferentes do espectáculo, possibilitar que cada espectador pudesse, em momentos diferentes, assistir à cena com ou sem uma barreira translúcida, dada pela referida cortina.

[MM] Basicamente o que tu estás a dizer é que as pessoas têm de ir à peça mais do que uma vez.

[CJ] Não têm que, mas por certo experimentarão sensações diferentes se o fizerem. Embora não de forma confessada, foi talvez por isso que, na estreia, tivemos sessão dupla! (Risos)

[MM] Uma outra coisa: no início queria ter-te perguntado alguma coisa sobre as diferenças no ethos da própria Medeia do Séneca e do Eurípides, e o impacto delas na tua peça.

[CJ] Mesmo acrescentado Ovídio, a referência comum é sempre Eurípides. Nem Séneca nem Ovídio alteram a história no essencial; acrescentam um ou outro pormenor, e sobretudo o texto de Séneca, que é mais concreto nas indicações dramáticas, temporais e espaciais. Mas a diferença está, sobretudo e a meu ver, na força das descrições. Não estou a dizer que o texto de Eurípides não seja desses textos cuja força poética destrói qualquer pessoa, claro que sim, mas o Séneca tem algo que se aproxima de um, eu não diria masoquismo, mas sadismo. Anda ali próximo de um...

[MM] ... de um barroco descriptivo...

[CJ] ... que não tem de ser limite dramático a coisa nenhuma. E depois há naturalmente pormenores, coisas mais concretas que ele introduz, como por exemplo aquilo que eu dizia há pouco, quando Medeia diz que se estivesse à espera de um filho, também esse o mataria.

[MM] Isso só me traz à memória o facto de que, em versões do mito anteriores ao Eurípides, o mais das vezes a morte dos filhos é acidental. Normalmente ela não os mata intencionalmente, e quando vê o que que fez, aí é que vem todo o drama, mas o elemento do filicídio propositado, aquilo em que nós pensamos quando pensamos na Medeia, era algo que não estava lá.

[CJ] Sim, o filicídio só está a partir de Eurípides. Mas há ainda uma coisa interessante: no tempo cronológico em que situamos a produção da Medeia de Séneca, a forma de entender Medeia, e isso vê-se em Séneca, em Lucano — em Ovídio menos, que é um lírico —, mas sobretudo nesses autores comprometidos com o regime imperial, e depois também na Antologia Palatina pelo menos até ao século V da nossa era. É uma tendência que se vai prolongando e amplificando, a de privar Medeia de qualquer justificação, de qualquer explicação por processual que seja, transformando-a progressivamente na besta selvagem que não quer parar de matar nunca. Isto nos textos da Antologia Palatina vê-se muito: comenta-se um retrato de Medeia dum mural qualquer, e diz-se que “pelos olhos do retrato, vê-se que, mesmo na cera, Medeia continua a matar.” Ou seja, como se esse crime fosse sempre prorrogado pelas próprias representações, plásticas e literárias, do crime filicida. E Séneca está no início desse período, no qual Medeia se transforma no símbolo da crueldade e da tirania imperial.

[MM] O que é algo a meu ver um bocado estranho porque, reduzindo Medeia ao filicídio, reduzes também todas as considerações morais que podiam estar ligadas a isso e pelas quais o filicídio seria condenável. Deixa de ser um acto moral a ser investigado e censurado, e passa apenas a ser um gesto bárbaro e selvagem. Animalesco.

[CJ] Animalesco. Isso está ligado ao facto de ele, mais do que símbolo do poder imperial, Medea passar a ser símbolo (trágico-poético) da decisão imperial – numa lógica de propaganta anti-tirânica –, que não atende a X, Y, ou Z. Isto depois está ligado ao Segundo Estoicismo, e a outras coisas ainda.

[MM] Mas é uma figura um bocado improvável para retrato imperial, visto que ela comete crimes por impotência, não pode fazer mais nada por si, é o seu último recurso...

[CJ] ... por isso é que textos como o de Séneca — e o de Lucano seria ainda mais, segundo os testemunhos que temos, visto que fragmentos acho que temos nenhum ou muito poucos – não assentam numa lógica de impotência de Medeia, antes na sua caracterização como o monstro (o super-homem nietszchiano?) que racionalmente decide agir de acordo com o mal. O relacionamento de Lucano com o regime imperial ainda foi pior que o de Séneca, e, bem, sabemos mesmo que a Medeia de Lucano foi escrita e usada como propaganda anti-tirania.

[MM] Só para terminar, eu vi que o próprio Ovídio escreveu uma peça Medeia, da qual parece que só nos chegou um fragmento que diz feror huc et illuc, plena deo [sou arrebatada sem rumo, cheia de Deus].

[CJ] Escreveu, só nos chegou isso mesmo. E só confirmas o que digo. Ainda que a Medeia de Ovídio pudesse não ser ainda o monstro de que falava, este plena deo quer significar isso mesmo, que Medeia se assume publicamente como endeusada (o entheos ou o enthymos grego); uma vez mais, para além do bem e do mal, para além do humana, nessa posição que é dos deuses e onde o bem e o mal respondem à vontade individual.

[MM] Muito obrigado, Carlos, pelo teu tempo e pelas tuas palavras.

[CJ] Obrigado pelas tuas perguntas, e claro, o que é mais importante, espero que disfrutes do espectáculo desta noite!


Fotos do espectáculo de Claudio Castro Filho
Fotos da entrevista de Elisabete Cação

quinta-feira, 5 de junho de 2014

[LISBOA] Cultura Clássica para Jovens — Officina Romanorum

O Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa liberta informações sobre o seu regular curso de Verão de Cultura Clássica direccionado para os mais jovens, a Officina Romanorum.

Mais informações aqui:

domingo, 1 de junho de 2014

Desci ontem ao Pireu — Aprender Grego e Latim


Um dos membros da Origem da Comédia iniciou recentemente um site dedicado ao ensino do Latim e do Grego e à cultura da Antiguidade Clássica. O propósito é congregar recursos de aprendizagem, e uma plataforma onde será possível, para além de discutir sobre a temática da cultura antiga, colocar dúvidas sobre as duas línguas às quais outros poderão responder. Será então, por um lado, um sítio onde quem deseja aprender estas línguas mas tenha acesso limitado a professores o possa fazer (ou queira simplesmente complementar esse acesso, colocar dúvidas — na secção Aprender Grego e Latim existe um fórum de discussão); e por outro tentar congregar recursos didácticos, culturais, e literários relacionados com a Antiguidade Clássica em geral. Pedimos a todos um momento do vosso tempo, que passem a palavra a quem julguem que possa estar interessado (e, porque não, um like na página), mas acima de tudo que participem e que utilizem o fórum quando necessário. Obrigado!





sábado, 31 de maio de 2014

Coitadas das que não jogam ao amor!


A musicação é do grande Pedro Tritónio (1465-1525),
do qual por outro motivo já noutro sítio escrevi.

Coitadas das que não jogam ao amor,
Nem lavam em vinho doce a sua tristeza, e tremem
Com medo da censura dos seus tios!

Um rapaz com asas roubou-te a agulha, a linha,
E a atenção que prestavas às artes de Minerva,
Neobule: o brilhante Hebro de Lipára,

Ele a lavar os ombros ungidos nas ondas do Tibre...
A andar a cavalo... Nem Belerofonte é melhor!
Não há punho nem pernas que o vençam!

Como é astuto ao caçar na clareira os veados
Que fogem confusos pela manada, como salta
Sobre o javali que se escondia nos arbustos!

Horácio. Odes III.12. Tradução minha.

Miserarum est neque amori dare ludum
Neque dulci mala vino lavere aut exanimari
Metuentes patruæ verbera linguæ

Tibi qualum Cytherea puer ales tibi telas
Operosæque Minervæ studium aufert,
Neobule, Liparæi nitor Hebri.

Simul unctos Tiberinis umeros lavit in undis,
Eques ipso melior Bellerophonte,
Neque pugno neque segni pede victus;

Catus idem per apertum fugientis agitato
Grege cervos jaculari et celer arto
Latitantem fruticeto excipere aprum.

terça-feira, 27 de maio de 2014

[LISBOA] Cursos de Verão do Centro de Estudos Clássicos

O Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa publicita os seus Cursos de Verão 2014, com oferta de iniciações às línguas clássicas e seminários literários.

Iniciação à Língua Latina
Curso livre
Início: 02/06/2014; Fim: 03/07/2014

À Descoberta do Grego Clássico
Curso livre
Início: 02/06/2014; Fim: 17/07/2014

Sófocles
noções de destino nas tragédias tebanas
Curso livre
Início: 02/06/2014; Fim: 25/06/2014

Descrições da Índia na Literatura Grega
Workshop
Início: 16/06/2014; Fim: 19/06/2014


Inscrições abertas
no Secretariado do Centro de Estudos Clássicos


DESCONTO de 15%
para inscrições em simultâneo
em 2 ou mais cursos do CEC

sábado, 24 de maio de 2014

Carmen Sæculare — o Poema dos Séculos


O Poema dos Séculos — o Carmen Sæculare — que nestes últimos dias me calhou recitar juntamente com outros membros do Thíasos (a Amélia, o Ricardo, e a Daniela) em Coimbra e em Conímbriga, foi composto há mais de 2000 anos, para celebrar o advento da nova era, do novo século. Horácio recebeu a ordem de compor um poema em honra de Apollo e Diana que os novos tempos louvasse. É uma obra de propaganda, uma obra com uma potente ideologia política implícita. Mas é também um grande poema, e uma obra santa.

Traduzir Horácio é, como se diz em Latim, perder tempo e azeite (perdere operam et oleum); a refinada estrutura dos versos está condenada ao fracasso em tradução. Tentei contudo minizar essa perda vertendo a estrofe sáfica (género de métrica greco-latina com 3 hendecassílabos falaicos, X--XX--X-XX*3, fechados por um adoneu, X--XX) o mais próximo possível do português. Um paralelo perfeito é impossível, mas in magnis et voluisse sat est.

(A gravação que se segue é do texto latino, acessível no fim desta página.)





Febo, e Diana senhora dos bosques,
Luz gloriosa dos céus, que adoramos
E adoraremos, ouçam nossa prece
     Neste tempo santo.

Em que ordenam os livros Sibilinos
jovens honradas e rapazes puros
cantar aos deuses destes sete montes
     este poema.

Pai Sol, que em teu carro claro mostras
e escondes o dia, e nasces Outro
mas Mesmo, oxalá jamais vejas nada
     Maior que Roma.

Tu que cuidas dos partos na altura
Correcta, Ilitía, protege as mães,
Quer prefiras que te chamem Lucina
     Quer Genitalis.

Deusa, educa os rebentos, e reforça
Os decretos dos Pais sobre as bodas
Das mulheres e a lei do casamento
     fecundo e fértil

para que o ciclo certo de dez vezes
onze anos repita o canto e os jogos
de dia três vezes, outras tantas na
     noite bem-vinda

E vós, Parcas, que cantastes verdade
Como se disse, e tal como se espera
Que o fim confirme, juntai novas bençãos
     Às que já temos.

Que a Terra, rica em gado e cereal-,
Conceda a coroa de espigas a Ceres;
Que Júpiter sopre e que águas puras
     Velem dos campos.

Sê gentil, Apolo, embainha a espada
e ouve estes rapazes suplicantes;
rainha das estrelas e do crescente, ouve,
     Lua, estas jovens.

Se Roma é obra vossa, se as tropas
De Ílion tomaram a costa Etrusca
com ordem de mudar de cidade e lar
     em rota calma,

a quem o casto e inocente Eneias
ao fugir da ardente Tróia, sua pátria,
conduziu à liberdade, e a quem deu
     mais que deixara:

deuses, aos jovens dêem bons costumes,
deuses, aos gentis idosos repouso,
e ao povo Romano bonança e herdeiros
     e toda a glória.

E que obtenha o que com touros brancos vos
Pede o sangue insigne de Anquises e Vénus
Superior em combate, piedoso
     Com quem se rende.

O Persa já teme na terra e no mar
os machados e as mãos de Alba Longa,
já se submetem os Citas e os Indos
     há pouco soberbos.

Já a Fé, a Paz, a Honra, a Virtude
exposta e o Pudor antigo ousam
voltar, e a abençoada Cornu-
     -cópia aparece.

Se Febo, o augur do arco brilhante,
Que as nove Camenas acolheram,
e cuja sadia arte tranquiliza
     o corpo cansado,

Vir com bons olhos os altares Palatinos,
Prolongará num novo ciclo e numa
Era melhor a bonança feraz de
     Roma e do Lácio.

Diana, que o Álgido e Aventino
possuis, cumpre as preces destes quinze
homens e benfazeja ouve os votos
     destes rapazes.

Eu para a casa levo a certeza
que assim pensa Júpiter e todos
os deuses. Eu, o coro que sei cantar
     Febo e Diana.

Horácio. Carmen Sæculare. Miguel Monteiro (trad).

Phœbe silvārumque potēns Diāna,
lūcidum cælī decus, ō colendī
semper et cultī, date quæ precāmur
     tempore sacrō,

quō Sibyllīnī monuēre versūs
virginēs lectās puerōsque castōs
dīs, quibus septem placuēre collēs,
     dīcere carmen.

alme Sōl, currū nitidō diem quī
promis et cēlās aliusque et īdem
nasceris, possīs nihil urbe Rōmā
     vīsere maius.

Rīte mātūrōs aperīre partūs
lēnis, Īlīthyja, tuēre matrēs,
sīve tū Lūcīna probās vocārī
     seu Genitālis:

dīva, prodūcās subolem patrumque
prosperes dēcreta super jugandīs
fēminīs prolisque novæ ferāci
     lēge marīta,

certus undēnōs deciens per annōs
orbis ut cantus referatque lūdōs
ter diē clārō totiensque grātā
     nocte frequentīs.

Vōsque verācēs cecinīsse, Parcæ,
quod semel dictum est stabilisque rērum
terminus servet, bona jam peractīs
     jungite fāta.

fertilis frūgum pecorisque Tellus
spīceā dōnet Cererem corōnā;
nutriant fētus et aquæ salūbrēs
     et Jovis auræ.

conditō mītis placidusque telō
supplicēs audī puerōs, Apollo;
sīderum rēgīna bicornis, audī,
     Lūna, puellās.

Rōma sī vestrum est opus Īliæque
lītus Ētruscum tenuēre turmæ,
jussa pars mūtāre larēs et urbem
     sospite cursū,

cui per ardentem sine fraude Troiam
castus Ænēas patriæ superstes
līberum mūnīvit iter, datūrus
     plūra relictīs:

dī, probōs mōrēs docilī juventæ,
dī, senectūtī placidae quiētem,
Rōmulæ gentī date remque prolemque
     et decus omne.

Quæque vōs bōbus venerātur albīs
clārus Anchīsæ Venerisque sanguis,
impetret, bellante prior, jacentem
     lēnis in hostem.

jam marī terrāque manūs potentīs
Mēdus Albānāsque timet secūrīs,
jam Scythæ responsa petunt, superbī
     nūper et Indī.

jam Fidēs et Pax et Honos Pudorque
priscus et neglecta redīre Virtus
audet adparetque beāta plenō
     Cōpia cornū.

Augur et fulgente decōrus arcū
Phœbus acceptusque novem Camēnīs,
quī salutārī levat arte fessōs
     corporis artūs,

sī Palatīnās videt æquos ārās,
remque Rōmānam Latiumque fēlix
alterum in lustrum meliusque semper
     prōrogat aevum,

quæque Aventīnum tenet Algidumque,
quindecim Dīana precēs virōrum
cūrat et vōtīs puerōrum amīcās
     adplicat aurīs.

Hæc Jovem sentīre deōsque cunctōs
spem bonam certamque domum reportō,
doctus et Phœbī chorus et Diānæ
     dīcere laudēs.


Imagem: detalhe do friso do Altar da Paz Augusta, Roma.

domingo, 18 de maio de 2014

A Justiça Cabe a Todos

[PROTÁGORAS] Visto que os seres humanos eram parte do projecto divino (antes de mais devido ao parentesco que tinham com Deus), foram os primeiros a reconhecer os deuses e começaram a erguer-lhes estátuas e altares. De seguida e sem mais demora começaram a associar a sua voz aos nomes com as técnicas que lhes tinham sido confiadas, e inventaram as casas, as roupas, o calçado, os leitos, e a forma de colher sustento a partir da terra. Era essa a sua preparação, de forma que no princípio habitaram dispersos e não havia cidades. Isto porque os animais selvagens matavam-nos: os humanos eram mais fracos que eles em todos os sentidos, e as técnicas de que dispunham, embora pudessem servir para encontrarem sustento, ficavam ainda assim muito àquem das necessidades que se impunham para combater contra as feras — até porque ainda não tinham a arte da política, da qual faz parte a arte da guerra. A maneira que descobriram para se salvarem foi juntarem-se e fundar cidades. Acontece que assim que se juntavam, visto que não tinham ainda a arte da política, cometiam injustiças uns contra os outros, de forma que rapidamente voltavam a dispersar-se e sucumbiam.

Foi então que Zeus, temendo que a raça que ele criara fosse completamente destruída, ordena a Hermes que leve aos humanos o Respeito e a Justiça [aidôs e dikê], para que pudessem haver regras para as cidades e elos que os unissem em amizade. Hermes recebe essa ordem e pergunta a Zeus de que forma é que deveria dispor a Justiça e o Respeito: «Devo dar-lhes o Respeito e a Justiça segunda a mesma lógica que usámos quando lhes entregámos as Técnicas? É que nessas, basta um ter a Arte da Medicina para servir para muitos, e assim por diante com as restantes Artes. Devo alotar-lhes a Justiça e o Respeito na mesma forma, ou entregá-las a todos?» Respondeu Zeus: «A todos. Todos devem receber parte delas. De outra forma não poderia haver cidades, se apenas alguns poucos tivessem parte delas, como acontece com as restantes Artes. E mais, estabelece em meu nome uma lei que condene à morte como se fosse uma doença para a cidade aquele que não for capaz de tomar parte desse Respeito e Justiça.»

É assim, Sócrates, e por estes motivos que tanto os Atenienses como os restantes, quando se fala da melhor maneira de pôr em prática uma obra arquitectónica ou de outra técnica qualquer, pedem conselho a um número reduzido, e se alguém fora desse número começar a opinar, não ligam ao que ele diz, como tu dizes — e fazem muito bem, segundo me parece — mas quando deliberam sobre a melhor forma de chegar a uma decisão política, algo que não se consegue realizar sem justiça ou temperança, ouvem e muito bem todos os homens, visto que é próprio de cada um tomar parte da justiça; se assim não fosse não haveria cidades.

Platão. Protágoras 322a-323a. Tradução minha.

Επειδὴ δὲ ὁ άνθρωπος θείας μετέσχε μοίρας, πρῶτον μὲν διὰ τὴν τοῦ θεοῦ συγγένειαν ζῴων μόνον θεοὺς ενόμισεν, καὶ επεχείρει βωμούς τε ἱδρύεσθαι καὶ αγάλματα θεῶν· έπειτα φωνὴν καὶ ονόματα ταχὺ διηρθρώσατο τῇ τέχνῃ, καὶ οικήσεις καὶ εσθῆτας καὶ ὑποδέσεις καὶ στρωμνὰς καὶ τὰς ἐκ γῆς τροφὰς ηὕρετο. οὕτω δὴ παρεσκευασμένοι κατ' αρχὰς άνθρωποι ῴκουν σποράδην, πόλεις δὲ ουκ ῆσαν· απώλλυντο οῦν ὑπὸ τῶν θηρίων διὰ τὸ πανταχῇ αυτῶν ασθενέστεροι εῖναι, καὶ ἡ δημιουργικὴ τέχνη αυτοῖς πρὸς μὲν τροφὴν ἱκανὴ βοηθὸς ἦν, πρὸς δὲ τὸν τῶν θηρίων πόλεμον ενδεής – πολιτικὴν γὰρ τέχνην ούπω εῖχον, ἧς μέρος πολεμική –  εζήτουν δὴ ἁθροίζεσθαι καὶ σῴζεσθαι κτίζοντες πόλεις· ὅτ' οῦν ἁθροισθεῖεν, ηδίκουν αλλήλους ἅτε ουκ έχοντες τὴν πολιτικὴν τέχνην, ὥστε πάλιν σκεδαννύμενοι διεφθείροντο. Ζεὺς οῦν δείσας περὶ τῷ γένει ἡμῶν μὴ απόλοιτο πᾶν, Ἑρμῆν πέμπει άγοντα εις ανθρώπους αιδῶ τε καὶ δίκην, ἵν' εῖεν πόλεων κόσμοι τε καὶ δεσμοὶ φιλίας συναγωγοί. ερωτᾷ οῦν Ἑρμῆς Δία τίνα οὖν τρόπον δοίη δίκην καὶ αιδῶ ανθρώποις· “Πότερον ὡς αἱ τέχναι νενέμηνται, οὕτω καὶ ταύτας νείμω; νενέμηνται δὲ ὧδε· εἷς έχων ἰατρικὴν πολλοῖς ἱκανὸς ιδιώταις, καὶ οἱ άλλοι δημιουργοί· καὶ δίκην δὴ καὶ αιδῶ οὕτω θῶ εν τοῖς ανθρώποις, ὴ επὶ πάντας νείμω;” “Επὶ πάντας,” έφη ὁ Ζεύς, “καὶ πάντες μετεχόντων· ου γὰρ ὰν γένοιντο πόλεις, ει ολίγοι αυτῶν μετέχοιεν ὥσπερ άλλων τεχνῶν· καὶ νόμον γε θὲς παρ' εμοῦ τὸν μὴ δυνάμενον αιδοῦς καὶ δίκης μετέχειν κτείνειν ὡς νόσον πόλεως.” οὕτω δή, ῶ Σώκρατες, καὶ διὰ ταῦτα οἵ τε άλλοι καὶ Αθηναῖοι, ὅταν μὲν περὶ αρετῆς τεκτονικῆς ῇ λόγος ὴ άλλης τινὸς δημιουργικῆς, ολίγοις οίονται μετεῖναι συμβουλῆς, καὶ εάν τις εκτὸς ὼν τῶν ολίγων συμβουλεύῃ, ουκ ανέχονται, ὡς σὺ φῄς – εικότως, ὡς εγώ φημι – ὅταν δὲ εις συμβουλὴν πολιτικῆς αρετῆς ἴωσιν, ἣν δεῖ διὰ δικαιοσύνης πᾶσαν ιέναι καὶ σωφροσύνης, εικότως ἅπαντος ανδρὸς ανέχονται, ὡς παντὶ προσῆκον ταύτης γε μετέχειν τῆς αρετῆς ὴ μὴ εῖναι πόλεις.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Quem sabe é como quem não lê

Trazemos mais uma vez à Origem Salvatore Settis, o grande historiador d'arte italiano. Na opinião deste humilde escriba este pequeno livro que vai aqui ser citado devia ser leitura obrigatória para qualquer pessoa que pretenda fazer uma apologia ou um ataque à cultura greco-latina. Se os deuses o derem ainda um dia o traduzirei integralmente.


O tipo de concepção que assume instintivamente o valor sopranacional e fundacional do "clássico" é antes de mais uma herança ofuscada pelo elevado estatuto de que a educação "clássica" gozou até há bem pouco tempo; é no entanto muito característico do nosso tempo que essa mesma noção seja capaz de resistir, e até mesmo de se reforçar, ao mesmo tempo que o lugar da cultura "clássica" nos percurso educativos se vai diminuindo cada vez mais a cada dia. Nestas circunstâncias é de facto bastante fácil usar e perpetuar impunemente o estereótipo da "classicidade" como berço e baluarte do Ocidente, visto que decresce drasticamente o número de cidadãos com a capacidade de duvidar dessas afirmações com conhecimento de causa.

Salvatore Settis. Futuro del "classico". Einaudi (2004) Trad. minha.

Tale concezione, che dà per scontato il valore preternazionale e fondativo del "classico", è prima di tutto un'eredità appannata dello statuto alto dell'educazione "classica" che fu in vigore fin a ieri; ma è assai caratteristico del nostro tempo che essa possa resistere, e anzi consolidarsi, proprio mentre il posto della cultura "classica" nei percorsi educativi e nella cultura generale si restringe ogni giorno di più. In questo quadro è infatti piú facile usare e perpetuare impunemente lo stereotipo della "classicità" come culla e sanzione dell'Ocidente, dato che decresce drasticamente il numero dei cittadini che potrebbero essere in grado di dubitarne con cognizione di causa.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Classica Digitalia - Novidades Editoriais

(informação recebida pela Origem da Comédia)
Os Classica Digitalia têm o gosto de anunciar 2 novas publicações, de parceria com a Imprensa da Universidade de Coimbra (IUC). Damos ainda informação sobre 1 outro livro publicado de parceria com o Instituto de Investigação Interdisciplinar da UC, disponível igualmente em acesso aberto na UC Digitalis.

NOVIDADES EDITORIAIS

Série “Autores Gregos e Latinos” [Textos]
- Carlos A. Martins de Jesus: Baquílides. Odes e Fragmentos. Tradução do grego, introdução e comentário (Coimbra e São Paulo, IUC/Annablume, 2014). 241 p.
Hiperligação: https://bdigital.sib.uc.pt/jspui/handle/123456789/169
PVP: 15 € / Estudantes: 12 €

- Maria de Fátima Silva: Aristófanes. Rãs. Tradução do grego, introdução e comentário (Coimbra e São Paulo, IUC/Annablume, 2014). 181 p.
Hiperligação: https://bdigital.sib.uc.pt/jspui/handle/123456789/168
PVP: 12 € / Estudantes: 9 €

Série “Conferências e Debates Interdisciplinares” [Estudos]
- Carmen Soares (coord.), Espaços do pensamento científico da Antiguidade (Coimbra, IUC, 2013). 98 p.
PVP: 12 € / Estudantes: 9 €

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Safo e a vindicação de Heródoto

Safo beijando a sua lira,
de Jules-Elie Delaunay.
















Prometemos antes que regressaríamos aos novos poemas de Safo. Deixamos o link para um artigo no TLS de Dirk Obbink, que os trouxe à luz do dia, onde, contra West («The poem is not one of her most poignant: as I see it, we have a young Sappho, perhaps still a teenager, addressing her mother and worried about their domestic circumstances»), defende a qualidade dos novos achados e mostra a sua importância. No final, encontra-se anexada uma tradução de ambos os fragmentos em inglês. Relembramos que a Origem publicou já uma versão portuguesa, por Sophia Carvalho e Miguel Monteiro, do mais extenso deles, logo aquando da descoberta dos textos.