terça-feira, 17 de junho de 2014

Entre risos a falar de Medeia


A propósito da peça Queda Medea — a partir de Séneca e Ovídio fomos conversar com o encenador, Carlos de Jesus. Uma entrevista amigável sobre Medeia: teatro, tradução, Ovídio, Séneca, Miguel de Unamuno.







É refrescante e enriquecedor ouvir as palavras de alguém com experiência profundade nas duas vertentes do drama antigo, a filologia e a dramatização propriamente dita. São dois polos que não se unem com tanta frequência quanto seria desejado, e por isso deixamos os nossos agradecimentos ao Carlos pelo tempo que nos devotou.


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[Miguel Monteiro] Estamos aqui para fazer uma entrevista à peça que encenaste, Queda Medea (a partir de Séneca e Ovídio) e que vai ser apresentada hoje no Teatro Académico Gil Vicente em Coimbra. Carlos, podes começar por nos falar muito brevemente da trama da peça?

[Carlos de Jesus] O mito de Medeia é bem familiar para a maioria das pessoas: a heroína que, por motivações diferentes nas várias versões, decide, com o fim único de se vingar de Jasão, o marido que tinha acabado de a abandonar (ou melhor, que nem sequer a tinha abandonado, que a ia abandonar definitivamente nesse dia), decide matar os filhos, precisamente no dia em que o ex-marido se volta a casar, agora com Creúsa, uma princesa mais jovem. E quanto ao enredo desta peça em particular, a história abre quando está a começar o dia e os preparativos para as segundas núpcias de Jasão, o que naturalmente é dito pelo coro. Medeia apercebe-se do que se está a passar (ou provavelmente já o saberia, não fica muito claro), mas o facto de assistir e sobretudo ouvir as conversas do coro faz com que confirme a disposição de fazer aquilo que provavelmente já teria planeado, vingar-se de Jasão. Mas a vingança não se resume ao filicídio, esse é apenas o seu término e expoente máximo; antes de dar morte aos filhos, envia um “manto”, um acessório, um vestuário de boda (seja este objeto qual for, não nos interessou muito o que era), envenenado com as suas poções e os seus encantamentos, de forma que Creúsa morra assim que o vista; mais, envia-o sob a forma de presente de casamento e por via dos próprios filhos, que assim são ao mesmo tempo arma e vítimas de um crime. Depois de dar morte a Creúsa e a Creonte, porque entretanto o fogo que teve início no véu envenenado de Creúsa espalha-se a todo o palácio (a cena que o Pasolini faz tão bem), então sim mata os filhos (supostamente, na versão de Séneca, em cena), na presença de Jasão.

[MM] Tu já tinhas encenado outras peças, nomeadamente com o Thíasos cá em Coimbra. Mas, sempre em Português. Como é que é encenar uma peça noutra língua que não é a tua? A saber, para o caso, em castelhano?

[CJ] O castelhano não é nem será nunca uma língua “minha”, como dizias; não estou sequer a trabalhar para isso. Mais importante do que a peça ser numa língua ou outra é trabalhar com bons textos, no caso com boas traduções. Se me estás a perguntar pelas dificuldades do próprio processo, como é que eu e os actores nos entendemos mesmo nas coisas pequenas (e claro, nas grandes) relacionadas com o processo de encenação, posso dizer-te que tive que contar também muito com eles. Naturalmente havia muita mímica pelo meio, havia por vezes coisas e situações para as quais sentia uma falta de vocabulário enorme, mas esses esclarecimentos cedo partiram deles, mesmo sem serem pedidos. O certo é que, ao cabo do processo, não penso que tenha havido nenhuma grande dificuldade acrescida por isso. Acho que a única coisa que posso dizer que foi diferente (além de toda a concepção da peça e do próprio método de ensaios, que eu mesmo fui alterando ao longo dos anos em que trabalho neste campo) é que, se em todas as peças que encenei em português, ao mês de trabalho eu próprio já tinha decorado todo o texto; com estas traduções em espanhol, isso não aconteceu.

[MM] Eu tinha aqui a nota de que para a próxima tinhas de experimentar em Latim.

[CJ] Já fiz bocadinhos, pedacinhos de Latim nas peças.

[Elisabete Cação] E em Grego, também! Lembro-me da Κύπρι, Κύπρι [na tua encenação do Hipólito] ...

[CJ] Uma peça completa em Latim só se fores lá tu. Se passares lá dois meses... (Risos)

[ΜΜ] ... a gente faz! (Risos) Bem, continuando. Há um certo pudor em torno da encenação das tragédias de Séneca — a capacidade dramática (por oposição à lírica) é posta em causa até pelos próprios filólogos, que tendem a dizer que eram escritas para serem recitadas, não encenadas. Evidentemente isso não te assustou.

[CJ] Isso não me assustou, nada. Pelo contrário, acho mesmo que foi uma motivação para fazer diferente, para tentar o que poucos – pelo menos ao nível do teatro universitário – se tinham aventurado a fazer. As desculpas filológicas, porque são filológicas, usadas para não pôr contemporaneamente Séneca em cena não são nada teatrais, não há nada na técnica teatral moderna e contemporânea que justifique esse medo a Séneca.

[MM] Há talvez a noção histórica. A ideia que se tem de que Séneca escrevia e recitava, não apresentava, portanto seria mais devido ao exemplo histórico do que propriamente a qualquer capacidade dramática do texto.

[CJ] Mas o teatro contemporâneo vive mais de metade de pôr em cena textos que não são teatrais. E, ao que julgo saber – embora confesse que a questão da performatividade senequiana não me tirou muito o sono – os estudos mais recentes e autorizados sobre o assunto já ultrapassaram essa teoria da declamação a que te referias.

[MM] Claro. E há ainda o teu caso, que inseres o Ovídio.

[CJ] Sim, e pode dizer-se em primeiríssima mão que, a correrem bem os projectos, toda a peça do próximo ano será construída a partir das mesma tradução das Heroides, do século XVI, que usei em Queda Medea. Um conjunto de três, quatro, ou cinco cartas de Ovídio, não sei bem ainda.

[MM] Deixo só a nota que vai sair um filme em Outubro do Cristophe Honoré, que é uma adaptação das Metamorfoses do Ovídio.

[CJ] A sério? Que boa notícia! Portanto, e só para concluir esta questão: aquilo que os filólogos apontaram como dificuldades para o texto de Séneca ser moderna- e contemporaneamente encenado não faz grande sentido. Uma das questões apontadas é, por exemplo e há muito, a extensão dos monólogos...

[MM] Não se encenava Shakespeare.

[CJ] ... haveria uma série de textos que não se encenava. E de textos dramáticos (como é o de Séneca). Claro que as coisas ficam facilitadas se se adoptar, como tentámos adoptar, uma estética contemporânea, algo mais conceitual e na ordem do simbólico. Nós trabalhamos muito com símbolos. Outra das dificuldades de encenar Séneca seria o facto de, em Séneca, supostamente as mortes ocorrem em cena. Mas isso é uma liberdade da encenação. Posso dizer que nunca compreendi bem (nem me esforcei por fazê-lo) a noção de teatro arqueológico. Afinal de contas o texto é o texto e uma pessoa depois pega-lhe como entende.

[MM] Se não enquanto encenador ias para o desemprego!

[CJ] O que constituiria certamente uma grande perda do rendimento mensal, como deves calcular! (Risos)

[MM] Eu estava ainda aqui na parte da adaptação, da tradição filológica, e cheguei à pergunta óbvia: a quem vai ver uma encenação da Medeia com base em textos clássicos, salta à vista que, ao mesmo tempo que aparece Ovídio, falta aquela peça que provavelmente teve o maior papel na popularização da história da Medeia: afinal de contas onde é que está o Eurípides? Foi um eco nietzschiano de desprezo pelo terceiro dos grandes tragediógrafos gregos? Ou foi simplesmente para deixar os outros textos menos representados respirar?

[CJ] Houve várias razões, houve razões dramáticas, mas também razões que não tiveram rigorosamente nada que ver com o teatro. Comecemos pelas últimas: junto dos meus contactos na Faculdade de Letras de Granada, foi do Departamento de Literatura Latina que partiu a proposta. Eu à partida senti-me um bocadinho, não diria pressionado, mas levado a escolher um texto clássico que originalmente fosse escrito em Latim. E depois lembrei-me da minha vontade antiga de fazer Séneca. Ainda pensei, "se calhar a Medeia já não", mas depois acabou mesmo por ser. E claro, misturada com os textos de Ovídio. Na realidade, o guião é cerca de 80% texto de Séneca, e 20% a Heroide de Ovídio, mas o texto de Ovídio traz para a peça a Medeia romântica, a Medeia donzela, quase outra Creúsa, que a Medeia de Séneca não tem ou na qual, pelo menos, não se centra muito. De nietzschiano a peça tem muito, mas sobretudo no que diz respeito à figura moral de Medeia, que a tradução de Unamuno, talvez por via do carro alado, muito ajuda a colocar num patamar que está para além do bem e do mal.

[MM] E se eu bem me lembro, na Heroide, ela ainda nem sequer se decidiu a matar os filhos. Sabe só que vai fazer alguma coisa.

[CJ] Penso que a grande interrogação da carta de Ovídio é lírica e romântica: "Caramba, porque é que me fizeste isto?" Portanto, traz para a cena essa Medeia apaixonada e jovem, um outro tempo, passado, em que o amor era autêntico. Aliás, talvez isto de alguma maneira se compreenda da peça, que de alguma maneira apresenta ao espectador duas Medeias e três tempos distintos. A primeira figura que entra em cena é uma Medeia que eu imaginei já velha, digamos 20 anos depois de tudo isto acontecer, e que diz um trecho de Ovídio; depois temos a Medeia senequiana; e temos ainda essa Medeia juvenil que recorda todas essas promessas que Jasão lhe fez, de amor eterno, etc. Um exemplo: imediatamente depois de Medeia dizer que não só vai matar os filhos como também “Se, por acaso, eu tivesse um filho no ventre arrancá-lo-ia a ferros para que a minha vingança e o teu sofrimento fosse ainda maior”, vem um trecho de Ovídio em que a Medeia recorda as promessas de amor da altura em que foi pedida em casamento por Jasão. Os dois textos ajudam portanto a criar estes contrastes, que vivem também do desdobramento da Medeia em duas personagens. Personagens essas que não pretendem ser fisicamente a mesma figura que simplesmente usa cores diferentes ou funciona em paralelo com a outra. Não: são duas personagens autónomas, que têm o mesmo nome, que de alguma maneira corporizam as duas Medeias que no fundo já existiam no Séneca e no Ovídio.

[MM] Eu ia fazer um bocado essa pergunta: essas duas Medeias são derivadas respectivamente uma de Séneca a outra de Ovídio, ou são duas Medeias presentes em cada uma das narrativas?

[CJ] São ambas Medeias presentes em cada uma das narrativas, e são sobretudo ambas muito presentes em Séneca. A ideia das duas Medeias, das duas actrizes a fazer de Medeia, foi anterior à inclusão do Ovídio. Depois funcionou, mas há trechos de Ovídio ditos por ambas as Medeias, não há essa relação directa.

[MM] Bem, avançando. Tu talvez antes de seres encenador, és um tradutor reconhecido da literatura greco-latina. A sensibilidade para a escolha de traduções certamente não terá sido descartada na selecção das versões escolhidas. Podes falar-nos um pouco dessas escolhas? O texto de Ovídio é renascentista, do século XVII, o de Séneca dos inícios do século XX, do Miguel de Unamuno. O que é que essas traduções têm de especial, para as escolheres no lugar de escolher simplesmente traduções contemporâneas?

[CJ] Não sei se serei um tradutor reconhecido, mas algo já fiz a esse nível, tendo já traduzido para teatro, diretamente, pelo menos duas vezes. O que estas traduções têm de especial é, simplesmente, o facto de serem traduções feitas por poetas. No caso do Unamuno é uma tradução feita por alguém que foi poeta, filósofo, político, ensaísta, a pessoa que proclamou a República Espanhola da varanda da Câmara Municial de Salamanca, onde era catedrático de Grego, e eu não conheço e duvido que venha a conhecer uma tradução da Medeia de Séneca melhor que a do Unamuno. O que é que essa tradução tem? Tem a concisão da palavra poética que ele dominava bem. Não há um acrescento grande de palavras na tradução. Se há uma frase que o Séneca quer que seja concisa e lapidar, o Unamuno mantém isso, e tem todo o humanismo que lhe é reconhecido e que está presente nessa tradução, além ainda da questão política. Eu escolhi localizar plasticamente a peça no contexto de finais da I República também muito por causa do Unamuno. O que vamos ver é uma Medeia — vá, duas — aristocrata. É uma peça da aristocracia. É uma transposição dessa época (como já os heróis gregos eram à partida aristocratas). Pareceu-me que era a época que melhor poderia transmitir a elegância do próprio texto do Unamuno, e a humanização, que é uma supra-humanização da Medeia. Mais, a cena de Queda Medea, situada algures nos anos 30 do século XX, acaba por ser um tributo à primeira encenação da tradução de Unamuno, que pela primeira vez foi levada à cena no recém-inaugurado Teatro Romano de Mérida, em 18 de Junho de 1932, protagonizada pela imensa (e elegantíssima, diga-se) Margarita Xirgu.

[MM] Ainda sobre a questão da escolha das traduções, confesso que tive uma reserva. Quer dizer, quando vemos uma tradução feita há 20, 30 anos, especialmente na tragédia (na comédia também, claro), já as palavra são pesadas. Não sentiste o peso dos arcaísmos? Não só no Unamuno, mas se calhar em particular na tradução do Diego de Rivera do século XVII?

[CJ] Senti, gostei, e procurei exagerá-los (Risos). Explico-me: a tradução que usei de Ovídio não dista de nós 60 anos, dista de nós muitos séculos, está cravejada de arcaísmos. Por exemplo, em alguns momentos não aparece a palavra pero (“mas”), mas sim a palavra mas, que é uma forma ainda usada, mas já muito menos usada que o equivalente normal; outro exemplo: a palavra usada para designar os encantamentos, os menjurjes, é uma palavra que já ninguém usa, mas eu quis tirar partido desses arcaísmo. Se mesmo em Espanha, na estreia, algumas, muitas pessoas não saberiam o que queria dizer menjurjes? Sim, provavelmente muitas não sabiam. Mas se vêem uma figura que está a destilar líquidos de diferentes cores o efeito dramático ajuda na compreensão. Portanto, os arcaísmos estavam lá, e ainda bem.

[MM] Voltando um pouco atrás, quando falaste da Medeia do Pasolini, lembrei-me que para mim há duas grandes referências visuais do drama da Medeia enquanto um todo, a Medeia do Pasolini e, mais recentemente, a do Lars von Trier. Há alguma coisa que pudesses dizer sobre a relação, se é que há de todo uma relação com uma ou com a outra. Já falaste do palácio em chamas na do Pasolini.

[CJ] Em primeiro lugar, ao que julgo saber, ambas essas versões se baseiam em Eurípides. Para mim a grande diferença entre as duas, para além das diferenças óbvias – porque dois génios não trabalham da mesma maneira –, tem que ver com os símbolos mais fortes. Para mim, a Medeia do Pasolini tem como símbolos principais a terra e o fogo, e a do Lars von Trier sobretudo a água. A simbologia da água é trazida para a nossa cena: os líquidos, os próprios encantamentos e as poções), além de que Séneca, sobretudo nas odes corais, reforça muito a imagem do mar: da viagem por mar, a transposição do mar vista quase com a carga de hybris com que a viam Ésquilo e Heródoto; por isso uma ode coral diz algo assim: “desgraçado do fulano que inventou a navegação, que teve a ideia de que, se eu pusesse um lenho em cima da água, flutuaria e poderia chegar a outro sítio, porque se essa pessoa não tivesse existido nunca, Jasão nunca teria ido à procura do Velo de Ouro, nunca teria encontrado Medeia, e esta desgraça toda não estaria agora a acontecer.” De alguma forma a própria cortina (que separa o palco a meio), as ondulações da própria cortina reforçam essa imagem; foi de propósito que eu não quis que fosse uma cortina lisa e passada a riso; ao mesmo tempo te dá a água enquanto vidro ou cristal, dá-te também a água enquanto espelho que transfigura e modifica a realidade, e foi isso que eu tentei fazer com o facto de ter público em ambas as laterais – proporcionar perspectivas diferentes do espectáculo, possibilitar que cada espectador pudesse, em momentos diferentes, assistir à cena com ou sem uma barreira translúcida, dada pela referida cortina.

[MM] Basicamente o que tu estás a dizer é que as pessoas têm de ir à peça mais do que uma vez.

[CJ] Não têm que, mas por certo experimentarão sensações diferentes se o fizerem. Embora não de forma confessada, foi talvez por isso que, na estreia, tivemos sessão dupla! (Risos)

[MM] Uma outra coisa: no início queria ter-te perguntado alguma coisa sobre as diferenças no ethos da própria Medeia do Séneca e do Eurípides, e o impacto delas na tua peça.

[CJ] Mesmo acrescentado Ovídio, a referência comum é sempre Eurípides. Nem Séneca nem Ovídio alteram a história no essencial; acrescentam um ou outro pormenor, e sobretudo o texto de Séneca, que é mais concreto nas indicações dramáticas, temporais e espaciais. Mas a diferença está, sobretudo e a meu ver, na força das descrições. Não estou a dizer que o texto de Eurípides não seja desses textos cuja força poética destrói qualquer pessoa, claro que sim, mas o Séneca tem algo que se aproxima de um, eu não diria masoquismo, mas sadismo. Anda ali próximo de um...

[MM] ... de um barroco descriptivo...

[CJ] ... que não tem de ser limite dramático a coisa nenhuma. E depois há naturalmente pormenores, coisas mais concretas que ele introduz, como por exemplo aquilo que eu dizia há pouco, quando Medeia diz que se estivesse à espera de um filho, também esse o mataria.

[MM] Isso só me traz à memória o facto de que, em versões do mito anteriores ao Eurípides, o mais das vezes a morte dos filhos é acidental. Normalmente ela não os mata intencionalmente, e quando vê o que que fez, aí é que vem todo o drama, mas o elemento do filicídio propositado, aquilo em que nós pensamos quando pensamos na Medeia, era algo que não estava lá.

[CJ] Sim, o filicídio só está a partir de Eurípides. Mas há ainda uma coisa interessante: no tempo cronológico em que situamos a produção da Medeia de Séneca, a forma de entender Medeia, e isso vê-se em Séneca, em Lucano — em Ovídio menos, que é um lírico —, mas sobretudo nesses autores comprometidos com o regime imperial, e depois também na Antologia Palatina pelo menos até ao século V da nossa era. É uma tendência que se vai prolongando e amplificando, a de privar Medeia de qualquer justificação, de qualquer explicação por processual que seja, transformando-a progressivamente na besta selvagem que não quer parar de matar nunca. Isto nos textos da Antologia Palatina vê-se muito: comenta-se um retrato de Medeia dum mural qualquer, e diz-se que “pelos olhos do retrato, vê-se que, mesmo na cera, Medeia continua a matar.” Ou seja, como se esse crime fosse sempre prorrogado pelas próprias representações, plásticas e literárias, do crime filicida. E Séneca está no início desse período, no qual Medeia se transforma no símbolo da crueldade e da tirania imperial.

[MM] O que é algo a meu ver um bocado estranho porque, reduzindo Medeia ao filicídio, reduzes também todas as considerações morais que podiam estar ligadas a isso e pelas quais o filicídio seria condenável. Deixa de ser um acto moral a ser investigado e censurado, e passa apenas a ser um gesto bárbaro e selvagem. Animalesco.

[CJ] Animalesco. Isso está ligado ao facto de ele, mais do que símbolo do poder imperial, Medea passar a ser símbolo (trágico-poético) da decisão imperial – numa lógica de propaganta anti-tirânica –, que não atende a X, Y, ou Z. Isto depois está ligado ao Segundo Estoicismo, e a outras coisas ainda.

[MM] Mas é uma figura um bocado improvável para retrato imperial, visto que ela comete crimes por impotência, não pode fazer mais nada por si, é o seu último recurso...

[CJ] ... por isso é que textos como o de Séneca — e o de Lucano seria ainda mais, segundo os testemunhos que temos, visto que fragmentos acho que temos nenhum ou muito poucos – não assentam numa lógica de impotência de Medeia, antes na sua caracterização como o monstro (o super-homem nietszchiano?) que racionalmente decide agir de acordo com o mal. O relacionamento de Lucano com o regime imperial ainda foi pior que o de Séneca, e, bem, sabemos mesmo que a Medeia de Lucano foi escrita e usada como propaganda anti-tirania.

[MM] Só para terminar, eu vi que o próprio Ovídio escreveu uma peça Medeia, da qual parece que só nos chegou um fragmento que diz feror huc et illuc, plena deo [sou arrebatada sem rumo, cheia de Deus].

[CJ] Escreveu, só nos chegou isso mesmo. E só confirmas o que digo. Ainda que a Medeia de Ovídio pudesse não ser ainda o monstro de que falava, este plena deo quer significar isso mesmo, que Medeia se assume publicamente como endeusada (o entheos ou o enthymos grego); uma vez mais, para além do bem e do mal, para além do humana, nessa posição que é dos deuses e onde o bem e o mal respondem à vontade individual.

[MM] Muito obrigado, Carlos, pelo teu tempo e pelas tuas palavras.

[CJ] Obrigado pelas tuas perguntas, e claro, o que é mais importante, espero que disfrutes do espectáculo desta noite!


Fotos do espectáculo de Claudio Castro Filho
Fotos da entrevista de Elisabete Cação

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