Há um certo discurso, com origem entre os pré-socráticos, retomado por Platão, e, mais tarde, muito aproveitado pelos Padres da Igreja (e ainda hoje ecoado — daí este pequeno post), segundo o qual a mitologia clássica exprime uma concepção primitiva do fenómeno divino, que os hebreus, dizem, teriam muito mais rapidamente superado, com a progressiva rarefacção da ideia de deus que se foi operando na sua cultura. Os deuses greco-romanos seriam deuses, à luz de Iavé e dos seus descendentes cristão e muçulmano, inaceitáveis: adúlteros, mentirosos, caprichosos. Já o monoteísmo teria cumulado deus com todas as perfeições, erigindo-o em modelo moral, daí a sua superioridade em termos do que poderíamos chamar a história da ideia de deus. O pecado capital da teologia pagã seria, assim, o da antropomorfização radical dos deuses (superior, apesar de tudo, ao teriomorfismo dos egípcios). Este discurso é, porém, contraditório, pois assenta ele mesmo numa lógica implícita de antropomorfização, ao querer submeter os deuses ao mesmo código moral que deve valer nas relações entre humanos, esquecendo a sentença de Heraclito: «para os deuses, todas as coisas são belas, boas e justas; os homens, porém, consideram injustas umas coisas e justas outras» (trad.: Alexandre Costa) [τῷ μὲν θεῷ καλὰ πάντα καὶ ἀγαθὰ καὶ δίκαια, ἄνθρωποι δὲ ἃ μὲν ἄδικα ὑπειλήφασιν, ἃ δὲ δίκαια] [B102].
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