terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Philologias Natalícias dum Leitor Bilingue

Hoje por ser Natal resolvi ler as narrativas da Natividade presentes nos Evangelhos (não em todos, está por exemplo ausente em S. Marcos, e em S. João aparece apenas na forma lacónica com que Vos saudámos há 2 anos atrás). Peguei na minha edição bilingue Greco-Latina de Gianfranco Nolli, que contem uma edição crítica grega juntamente com a edição latina vulgarmente chamada a Nova Vulgata, sendo uma reedição do texto latino que circulou até ao século XX. Pelo que ouço, a Nova Vulgata resolve vários problemas a nível textual, mas foi aquando da sua criação (e mesmo ainda hoje) criticada por aqueles para quem o texto latino, porquanto seja uma tradução, adquiriu ele próprio o estatuto sacral que seria num contexto normal reservado à versão original, numa situação análoga encontramos a edição dos 70 na comunidade judaica da Antiguidade, ou a Authorized Version nas comunidades anglófonas; no que à Vulgata diz respeito, esta ideologia remonta à crítica protestante da fixação cathólica pelo texto latino, chegando-se ao ponto de as traduções cathólicas da Idade Moderna se gabarem de serem feitas a partir do texto latino, mesmo em casos em que os tradutores conhecessem o grego e o hebraico - é o caso da dita Bíblia Douai-Rheims.

Estou porém infelizmente muy longe de me poder gabar de conhecer as ramificações paralelas das diversas traduções bíblicas, mesmo ficando-me pelas versões gregas ou por estas duas versões latinas, digo a Vulgata e a Nova Vulgata. Hoje no entanto quanto como dizia lia as narrativas natalícias, reparei junto de S. Lucas que a tradução latina do hymno de louvor dos anjos Δόξα ἐν ὑψίστοις θεῷ [Glória a Deus nas alturas] aparecia traduzido como Gloria in altissimis deo. Familiarizado como estou com o famosa formulação do versículo enquanto Gloria in excelsis deo [Glória a Deus nas alturas], a minha primeira reacção foi a típica ignorância boçal de lamentar que a revisão da Nova Vulgata tivesse 'deturpado' uma versão tão consagrada quanto o era o excelsis antigo, ainda para mais quando a diferença entre ela e altissimis não é virtualmente nenhuma, e ὑψίστοις traduz ambos sem qualquer penalização semântica.

Decidi assim confirmar. Há duas grandes versões da Vulgata Latina, ou duas grandes edições, a mais importante é a Vulgata Clementina, nascida dos esforços da contra-reforma, que, como os seus inimigos protestantes, pôs a bom uso todo o aparato da imprensa para fins de propaganda religiosa, resultou na uniformização das diferenças apesar de tudo ainda existentes entre edições. A outra é a Bíblia de Stuttgart, uma edição crítica do texto latino, ateando-se a ele mais do que a uma tradução fiel dos textos gregos ou hebraicos. Conferi ambas, e não é que ambas me devolviam a versão Gloria in altissimis? Para confundir ainda mais, algures  antes o texto do evangelho que o antecede reza Ecce enim evangelizo vobis gaudium magnum, que eu na mixórdia em que versava a minha cabeça já começara a emparelhar a um outro, Nuntio vobis gaudium magnum, com o resultado de pensar que também essa alteração se deveria a uma alteração textual da tradução. Como porém reconciliar esse facto com a situação em que o texto latino se apresentava idêntico para o que interessa nas três versões?

A solução apareceu em breve, um elegante desnodar dos problemas que teve como principal resultado aquela conclusão com a qual se não estivesse já habituado a ela teria diariamente problemas, um exercício de prática de humildade intelectual, que é um euphemismo para dizer um atestato de estupidez auto-passado: coalescera três textos para resultar na confusão final. O primeira era realmente o texto bíblico das três versões acima-citadas, "Ecce enim evangelizo vobis gaudium maximum [...] Gloria in altissimis Deo." O Segundo era o anúncio da eleição papal, esse sim com a fórmula de Nuntio vobis magnum magnum (aqui as más-línguas poderiam apontar que quem quer que escreveu esta formulação poderia muito bem ter em mente fazer ressoar o eco entre as duas passagens, entre a vinda do Christo e a do seu Vicário). O terceiro e último, a chave-mestra do enigma, é que o hymno a que fazia referência e que tem o incipit por Gloria in excelsis Deo na realidade não é modelado no texto latino das Vulgadas mas sim antecede-o, sendo uma tradução anterior à de S. Jerónimo levada a cabo pelo Doutor da Igreja S. Hilário de Poitiers; a versão dele a partir do grego, essa sim, segue Gloria in excelsis Deo, sendo que essa tradução faz parte do conhecido cântico, anterior como dizia a Jerónimo. Os dois textos, de Jerónimo e de Hilário, floresceram paralelamente através dos tempos, e foram hoje motivo de intriga.

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