Hoje por ser Natal resolvi ler as narrativas da Natividade presentes nos Evangelhos (não em todos, está por exemplo ausente em S. Marcos, e em S. João aparece apenas na forma lacónica com que Vos saudámos há 2 anos atrás). Peguei na minha edição bilingue Greco-Latina de Gianfranco Nolli, que contem uma edição crítica grega juntamente com a edição latina vulgarmente chamada a Nova Vulgata, sendo uma reedição do texto latino que circulou até ao século XX. Pelo que ouço, a Nova Vulgata resolve vários problemas a nível textual, mas foi aquando da sua criação (e mesmo ainda hoje) criticada por aqueles para quem o texto latino, porquanto seja uma tradução, adquiriu ele próprio o estatuto sacral que seria num contexto normal reservado à versão original, numa situação análoga encontramos a edição dos 70 na comunidade judaica da Antiguidade, ou a Authorized Version nas comunidades anglófonas; no que à Vulgata diz respeito, esta ideologia remonta à crítica protestante da fixação cathólica pelo texto latino, chegando-se ao ponto de as traduções cathólicas da Idade Moderna se gabarem de serem feitas a partir do texto latino, mesmo em casos em que os tradutores conhecessem o grego e o hebraico - é o caso da dita Bíblia Douai-Rheims.
Estou porém infelizmente muy longe de me poder gabar de conhecer as ramificações paralelas das diversas traduções bíblicas, mesmo ficando-me pelas versões gregas ou por estas duas versões latinas, digo a Vulgata e a Nova Vulgata. Hoje no entanto quanto como dizia lia as narrativas natalícias, reparei junto de S. Lucas que a tradução latina do hymno de louvor dos anjos Δόξα ἐν ὑψίστοις θεῷ [Glória a Deus nas alturas] aparecia traduzido como Gloria in altissimis deo. Familiarizado como estou com o famosa formulação do versículo enquanto Gloria in excelsis deo [Glória a Deus nas alturas], a minha primeira reacção foi a típica ignorância boçal de lamentar que a revisão da Nova Vulgata tivesse 'deturpado' uma versão tão consagrada quanto o era o excelsis antigo, ainda para mais quando a diferença entre ela e altissimis não é virtualmente nenhuma, e ὑψίστοις traduz ambos sem qualquer penalização semântica.
Decidi assim confirmar. Há duas grandes versões da Vulgata Latina, ou duas grandes edições, a mais importante é a Vulgata Clementina, nascida dos esforços da contra-reforma, que, como os seus inimigos protestantes, pôs a bom uso todo o aparato da imprensa para fins de propaganda religiosa, resultou na uniformização das diferenças apesar de tudo ainda existentes entre edições. A outra é a Bíblia de Stuttgart, uma edição crítica do texto latino, ateando-se a ele mais do que a uma tradução fiel dos textos gregos ou hebraicos. Conferi ambas, e não é que ambas me devolviam a versão Gloria in altissimis? Para confundir ainda mais, algures antes o texto do evangelho que o antecede reza Ecce enim evangelizo vobis gaudium magnum, que eu na mixórdia em que versava a minha cabeça já começara a emparelhar a um outro, Nuntio vobis gaudium magnum, com o resultado de pensar que também essa alteração se deveria a uma alteração textual da tradução. Como porém reconciliar esse facto com a situação em que o texto latino se apresentava idêntico para o que interessa nas três versões?
A solução apareceu em breve, um elegante desnodar dos problemas que teve como principal resultado aquela conclusão com a qual se não estivesse já habituado a ela teria diariamente problemas, um exercício de prática de humildade intelectual, que é um euphemismo para dizer um atestato de estupidez auto-passado: coalescera três textos para resultar na confusão final. O primeira era realmente o texto bíblico das três versões acima-citadas, "Ecce enim evangelizo vobis gaudium maximum [...] Gloria in altissimis Deo." O Segundo era o anúncio da eleição papal, esse sim com a fórmula de Nuntio vobis magnum magnum (aqui as más-línguas poderiam apontar que quem quer que escreveu esta formulação poderia muito bem ter em mente fazer ressoar o eco entre as duas passagens, entre a vinda do Christo e a do seu Vicário). O terceiro e último, a chave-mestra do enigma, é que o hymno a que fazia referência e que tem o incipit por Gloria in excelsis Deo na realidade não é modelado no texto latino das Vulgadas mas sim antecede-o, sendo uma tradução anterior à de S. Jerónimo levada a cabo pelo Doutor da Igreja S. Hilário de Poitiers; a versão dele a partir do grego, essa sim, segue Gloria in excelsis Deo, sendo que essa tradução faz parte do conhecido cântico, anterior como dizia a Jerónimo. Os dois textos, de Jerónimo e de Hilário, floresceram paralelamente através dos tempos, e foram hoje motivo de intriga.
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